A ABSTRAÇÃO NAS ARTES

Por David Atencio
06/06/2023

Essa é uma tradução de Heloísa Sousa a partir do texto “Abstraction in the Arts” que se encontra disponível no site da Tercer Abstracto. Esse texto possui uma versão original em espanhol, publicado na dissertação de mestrado “Metodología de Abstracción a partir del Color Field Painting de Mark Rothko”, de autoria de David Atencio, para o Magíster en Artes da Pontifícia Universidade Católica de Chile (PUC Chile), em 2015.

 

Para o teatro assim como para a cultura, 

a questa?o continua sendo nomear e dirigir sombras.

Antonin Artaud, “O Teatro e seu Duplo” (1938).

 

Quando me coloco como um observador de um espetáculo teatral, eu sempre me preocupo com minha baixa capacidade para compreender o que está sendo dito ali, ou a mensagem que a peça transmite ou a simples história que está sendo contada. Muitas vezes, me vejo sendo forçado a estudar antes de assistir a peça, ou ao menos a ler o texto que vai ser encenado, já que no momento do espetáculo eu não estou, de fato, seguindo a história. Alguns podem pensar que minha experiência em assistir peças tem sido péssimas; que eu, provavelmente, tenha tido momentos muito ruins como espectador, entretanto, eu afirmo exatamente o oposto. Eu curto teatro e me deleito todas as vezes que o vejo. Para mim, é um lugar incomum, nada cotidiano, e que tem algo que eu não sei exatamente o que é, mas que me cativa.

Quando estou assistindo uma peça, estou sendo impressionado pelas luzes, que me afetam muito quando vejo como a cor de uma cena muda para outra. Fico animado ao assistir a entrada e saída dos atores, quando muitos deles entram e um sai, ou quando eles entram e saem por diferentes lugares e ao mesmo tempo. Mas, a coisa mais estúpida que eu sinto é, definitivamente, o desejo de chorar que me invade quando o gesto de um ator se junta à música em sintonia.

Quando eu assisto a uma peça, sempre tenho a sensação que existem dois lugares de onde eu posso perceber: de um lado, tentando entender o que ela está “contando”, e, do outro lado, percebendo o que, efetivamente, me ocorre por estar assistindo o que está diante de mim.

Eu abro este artigo com uma citação do Artaud porque isso explica diretamente o problema no qual minha investigação e criação estão inseridas: o problema é que o teatro nomeia e direciona sombras da realidade, ao invés de submeter a realidade como ela é. Acontece que o teatro, em geral, e especialmente na produção artística contemporânea, é constantemente considerado como “o que quer ser dito” ou “a mensagem da peça”, e põe de lado o que está efetivamente acontecendo do palco, e, o mais importante, ele para de se perguntar sobre o que está sendo gerado a partir dessa coisa específica que está acontecendo, restando apenas palavras que importam pouco na experiência do espectador. 

Nesse sentido, eu me posiciono contra o uso comum da palavra dentro da lógica teatral que deriva nessa questão sobre “o que quer ser dito”. A palavra, usada nesse sentido conteudístico, limita a percepção do real evento teatral, fazendo com que os criadores se limitem a colocar apenas “mensagens” e não ações particulares que transformam o receptor, o que, para mim, é o sentido último da arte.

É por esta razão que, e seguindo minha direção como pesquisador, me proponho a estudar o conceito de “abstração”, derivado das artes visuais, para abordar uma reflexão cênica em torno dessa questão. Eu vejo, nesse campo conceitual, a possibilidade de elaborar uma nova política de construção performativa que permita um trabalho sobre o próprio evento que está sendo encenado, ao invés de uma mensagem entregue através de palavras em um texto.

 

Sobre o conceito de abstração

A matemática é um exemplo do pensamento abstrato. Dada suas formas e estruturas complexas, a matemática sempre apresenta um desafio para quem pretende estudá-la. É comum dizer que a linguagem da matemática é absolutamente abstrata, que é uma linguagem inacessível e que sua utilidade não é compreendida. Ela é pejorativamente vista como uma simples ferramenta de quantificação que, praticamente, só existe para que possamos saber como lidar com transações monetárias e nada mais. Entretanto, por trás disso existe um objetivo muito maior. O objetivo da matemática sempre foi “descobrir a lógica subjacente desse caótico e complexo mundo em que vivemos” (DU SATOY, 2009, p. 10), é aí que o matemático se coloca para observar e compreender a realidade. A matemática dispõe de um procedimento que, baseado em uma estrutura lógica, estabelece a abstração da realidade através de signos. Através da observação, o matemático elabora um raciocínio abstrato no qual ele ou ela constrói suas deduções e conjecturas para acessar a verdade tão procurada. O termo matemática, de origem pitagórica, significa “o que pode ser aprendido” (PLA I CARRERA, 2012, p. 07), e nesse sentido, a coisa abstrata da matemática não se apoia na sua complexidade formal, mas na sua aspiração para compreender a realidade. A matemática é o resultado de diferentes procedimentos baseados na observação do fenômeno físico que, separadamente, configura a ordem do universo, por exemplo, a observação dos padrões no nascer do sol e da lua constrói um caminho para a compreensão de quais eram os ciclos dos movimentos das estrelas, e a partir daí, através de conjecturas matemáticas, é possível desenvolver cada estrutura sobre o tempo, como o que agora entendemos como horas, minutos e segundos. 

Para começar a analisar o que é abstração, considero relevante expor o significado da palavra “abstrato”, de acordo com o dicionário: “Separar através de uma operação intelectual as qualidades de um objeto para considerá-los separadamente ou para considerar o mesmo objeto em sua pura essência ou noção”[1]. Por essa definição, eu compreendo o ato de abstrair como uma ação que separa elementos de um objeto para percebê-lo em sua forma mais pura.

Se tomarmos a fenomenologia, Edmund Husserl explica que apesar de entrar na essência das coisas, devemos entender o que percebemos em um determinado tempo e espaço, o que é, por si, a pura percepção. Após a experiência da percepção, a informação adquirida se constitui como conhecimento, o que nos torna capazes de dar um nome à coisa, de acordo com as nossas faculdades mentais. Geralmente, essa é a posição na qual estamos, nós vemos uma mesa como uma mesa genérica e não como “aquela mesa”. Para perceber a essência das coisas, Husserl propõe fazer um processo de redução fenomenológica, na qual a pura descrição do objeto, a percepção de todas as suas partes, irá nos ajudar a obter a fenomenologia pura disso, ou, em termos mais simples, os elementos que dão forma a isso. A partir desse ponto, ele propõe que devemos realizar um processo de pura abstração, para que possamos, finalmente, alcançar a essência das coisas.

A partir de todo progresso humanístico e científico ocorrido ao longo do século XX, começa-se a pressupor o campo das artes como uma suspeita sobre a realidade que trouxe junto grandes revoluções sobre a forma. Um desses casos memoráveis foi o período das vanguardas conhecido como “Arte Abstrata”, que se opunha ao conceito de arte figurativa e começa a abordar o mais essencial sobre a arte: sua cor, seus formatos e estruturas. Assim surge uma arte que enfatiza a forma, abstraindo, distanciando da imitação e da reprodução verossimilhante da natureza, e se “identificando com sua essência” (MONDRIAN, 1957, p. 86).

 

A arte abstrata é concreta

 

Significa ‘criar’ para os nossos sentidos uma realidade vívida e concreta,

embora dissociada da realidade da forma.

Harry Holtzman, no Prefácio de “Piet Mondrian” (1957).

 

Toda arte é abstrata.

Toda arte é abstrata no sentido de que sempre traz a abstração de algo observado, sentido, percebido ou tematizado da realidade. Quando tomamos o quadro “A Liberdade guiando o povo” (1830), de Eugène Delacroix, nós não temos uma mulher com uma bandeira sendo a metáfora da “liberdade guiando o povo”, mas nós temos um conjunto de elementos que pelos sentidos da nossa capacidade de abstrair são vistos como a metáfora do contexto no qual a criação foi feita.

Muitos artistas categorizados como “abstratos”, afirmaram serem realmente “concretos”, que o que eles estão fazendo na tela é a manifestação de elementos concretos dispostos, e como a abstração existe na relação entre o objeto e aquele que observa – ou experiencia – sua presença. Quando as criações desses artistas apareceram pela primeira vez nas galerias de arte, o público as consideraram ultrajantes. Por exemplo, quando, na exibição Russa de 1915[2], a obra “Quadrado Preto no Fundo Branco” de Kazimir Malevich, o público e os críticos gritaram: “Tudo o que amamos está perdido. Nós estamos em um deserto… Não existe nada diante de nós além de um quadrado preto em cima de um fundo branco!” (MALEVICH, 1926, p. 1). Vejo nessa crítica um grande medo da concretude da pintura, quase dizendo que não tem arte naquilo que eles tinham diante de seus olhos, que tudo o que eles amaram por séculos estava perdido.

Além disso, o que a arte abstrata apresenta é a percepção do mundo com materiais concretos dos meios que dão forma à pintura, ou seja, os elementos constitutivos da arte. Não existe nada além da apresentação daquilo que já está presente, eles não estão simbolizando nada e eles, certamente, não estão representando nada no quadro que não seja o que efetivamente é.  É o que é, ponto final, e isso é o que mais os assusta. O que esses artistas estão fazendo é uma intervenção no sistema de percepção das artes, eles estão redefinindo o modo de olhar o mundo, eles estão expondo a montagem da realidade, e eles fazem isso através do simples mecanismo de uso de elementos concretos que possuem: o ponto (e as linhas que geram seus movimentos), a cor e sua composição, saltando para “a criação de uma arte que deve revelar aspectos da realidade que parece inacessível às técnicas e convenções da arte figurativa” (GOODING, 2002, p. 6).

 

Metodologia de Abstração

Quando eu comecei o programa Tercer Abstracto, em 2012, os primeiros comentários que recebi foram que a iniciativa de tomar a abstração para o teatro era inconcebível, que eu nunca conseguiria suprimir o corpo do ator como sendo um significado. O motivo que me fez tomar esse conceito, oriundo das artes visuais para o campo do teatro, não estava apoiado, exatamente, nesse ponto.

A essa altura, eu já conhecia muito bem as tentativas de Oskar Schlemmer em traduzir os códigos visuais propostos por Wassily Kandinsky na Bauhaus para uma composição rítmico-cênica. Eu conhecia sua posição acerca da desconstrução dos corpos através do uso de figurinos abstratos, a compreensão do ritmo cênico como um resultado do movimento dos atores pelo espaço, etc. Na realidade, o que eu vi na abstração foi uma possibilidade político-estética de configurar os procedimentos cênicos que poderiam orientar a criação de novos lugares desconfigurando a convenção dramática.

Juntamente com o desenvolvimento da minha pesquisa ao longo dos últimos anos, eu fui entendendo que o meu ponto de vista sobre a abstração estava apoiado em um método de trabalho. No meu caso, as referências vinham desse conceito extraído das artes visuais, mas que também centrava no processo criativo ao redor de um estudo sistemático das partes que o compõem – em relação à definição abstrata, que dei anteriormente – e que se alia aos objetivos dos artistas abstratos que “distanciam eles mesmos das convenções da representação naturalista, que tenta replicar a aparência visível dos objetos da realidade” (GOODING, 2002, p. 8), a fim de entrar no fenômeno da percepção.

Nesse ponto, considero pertinente falar sobre que metodologia é essa. Metodologia é o que compreendo como um sistema de métodos/procedimentos usados para alcançar objetivos propostos em um trabalho de pesquisa. Sobre isso, Borgdorff (2010), no seu artigo The debate on research in the arts, afirma que a pesquisa em artes se estabelece na elaboração de uma metodologia que permite que o processo criativo se torne reflexivo. “A arte é sempre reflexiva. É por isso que a pesquisa em artes tenta articular parte do conhecimento expressado através do processo criativo e do objeto de arte em si mesmo” (BORGDORFF, 2010, p. 30).

Deste modo, eu nomeio como “Metodologia da Abstração”, o procedimento que aplico para formular uma investigação cênico-performativa baseada nos princípios dos artistas abstratos através de uma reflexão teórica que auxilia a prática a produzir novas estratégias de criação.

Esquema "Metodologia de Abstração"

O esquema mostra três segmentos que correspondem às fases que aplico no processo criativo dos meus trabalhos. A primeira fase é nomeada de “estudo dos materiais” e é, prioritariamente, teórica. Essa etapa começa com a seleção de um artista abstrato para trabalhar ao longo de uma criação-pesquisa. Depois dessa seleção, nós aplicamos diferentes métodos que vão variar de acordo com a natureza de cada projeto, e que nos permite estudar a produção do artista selecionado, enfatizando suas posições estético-políticas e estudando o contexto no qual eles estão inseridos, sua biografia e influências, para, finalmente, compreender as fases de sua produção. Eu caracterizo essa etapa de investigação como uma etapa, predominantemente, teórica por causa dos métodos que são aplicados: exposições, debates, leituras de seus escritos e manifestos, análises de suas obras, etc. O principal objetivo dessa etapa é encontrar uma pergunta de pesquisa que irá guiar as fases seguintes.

A segunda etapa é chamada de “estratégias de encenação” e tem um caráter misto, sendo teórico e prático ao mesmo tempo. Essa etapa começa com uma abordagem prática do material estudado. As abordagens são executadas através de improvisações, performances e/ou jogos cênicos que tomam como premissa uma das fases da produção do artista ou da pergunta formulada na etapa anterior. Eu determino essa fase da pesquisa como uma etapa teórico-prática, por causa dos métodos aplicados nela: depois de cada apresentação “cênica” vem uma discussão sobre a execução do exercício. O uso de uma bitácora[3] do processo criativo é fundamental como uma ferramenta de pesquisa da prática, e é por meio de sua análise posterior que nós, finalmente, criamos aquilo que chamamos de “estratégias de encenação”, que são aplicadas e articuladas na seguinte etapa da pesquisa. 

Por fim, a última etapa é chamada de “construção espaço-temporal” e é, prioritariamente, prática. Depois da definição das estratégias de encenação a serem usadas e sua aplicação nos exercícios cênicos, nós iniciamos um momento de estruturação no qual os fatores de espaço e tempo são a base onde a peça é construída. Essa etapa responde a questão de como produzir uma peça a partir da pesquisa desenvolvida ao longo das etapas anteriores, e a resposta se baseia na execução de uma estrutura que apoia em diferentes caminhos – lógico, argumentativo, sensorial-rítmico, etc – a montagem da peça. Nessa etapa é crucial considerar as pesquisas como instância de “tentativa e erro”, então, podemos articular, na prática, as estruturas cênicas e teóricas que reunimos nas etapas anteriores. 

Essa metodologia é baseada na proposta de Josette Féral, chamada de prática como pesquisa, que considera que uma peça está inserida em um campo, e que esse campo requer uma análise artística, “orientando o processo, e não o produto” (FÉRAL, 2009, p. 325).

A razão por trás de nomear esse plano como “Metodologia da Abstração” corresponde com a definição mencionada para o termo “abstrato”. De um modo esquemático, nós temos um material – a coisa – que começamos a olhar por diferentes perspectivas para que possamos dividi-lo em partes. Tendo cada parte, nós adicionamos uma ação nisso – estratégia de encenação – e, para além do resultado dessa operação, nós reorganizamos as partes – construção espaço-temporal.

 

Referências Bibliográficas

ARTAUD, Antonin. El teatro y su doble. Buenos Aires: Sudamericana, 2005.

BORGDORFF, Henk. El debate sobre la investigación en artes. CAIRON 13 Revista de Estudios de Danza, Universidad de Alcalá, p. 25-46, 2010.

DU SAUTOY, Marcus. Simetría: un viaje por los patrones de la naturaleza. Barcelona: Acantilado, 2009.

FÉRAL, Josette. Investigación y Creación. Estudis Escénics. Quaderns del’Institut del Teatre, n 35, p. 327-335, 2009.

GOODING, Mel. Arte Abstrata. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

HUSSERL, Edmund. La idea de la Fenomenología: cinco lecciones. México: Fondo de Cultura Económica, 1982.

MONDRIAN, Piet. Arte Plástico y Arte Plástico Puro. Buenos Aires: Editorial Víctor Leru, 1957.

PLA I CARRERA, Josep. Euclides: La geometría. Las matemáticas presumen de figura. Madrid: RBA Ediciones, 2012.

 

Notas de Rodapé

[1] Fonte: RAE, Diccionario de la Real Lengua Española.

[2] Exposição 0.10: A última exposição futurista.

[3] A tradução para o português do termo bitácora seria bitácula, estruturas contidas em embarcações onde se guardavam os diários de bordo. Em países como Chile e Argentina, desenvolveu-se a prática de escrita de bitácoras que, apesar da tradução para o português indicar uma proximidade com nossos diários de processo, na realidade, estes estariam mais próximos do que nomeamos como memorial; embora não corresponda estritamente a nenhum dos dois. Nas bitácoras, o artista descreve e analisa o processo criativo de uma obra específica, podendo ser escrito após o processo de criação embora contenham elementos e conteúdos do percurso, o material é mais estruturado para permitir uma análise da trajetória de criação da obra ao invés de corresponder apenas a um registro diário (Nota da Tradutora).

 

Foto do Banner: Jorge Sanchéz

 
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