Editorial

Por Diogo Spinelli
12/07/2022

Folguedos, festas populares, dramistas, danças folclóricas, mascaradas, brincadeiras.

Apesar dessas atividades, via de regra, terem sido relegadas a um espaço marginal dentro da História e da Crítica das Artes, atualmente nota-se um movimento de valorização dessas manifestações por parte de importantes instituições na construção de projetos e curadorias que buscam elaborar a cultura a partir de uma mirada cada vez mais decolonial. 

Nesse sentido, é possível perceber um aumento na presença de brincantes, mestres e mestras da cultura popular em espaços como debates ou mesas-redondas, bem como um maior número de pesquisas acadêmicas sobre o assunto, sem, contudo, que isso necessariamente se reflita em um número maior dessas manifestações nas grades da programação artística de instituições ou de festivais, ou da presença de brincantes nas universidades. Ao mesmo tempo, pode-se também argumentar que esse maior interesse visa apenas aproximar-se de princípios decoloniais a partir de uma perspectiva teórica, sem que necessariamente exista a preocupação com a permanência e a sobrevivência dos brincantes, de suas comunidades e das próprias manifestações em si. 

Tendo em vista esse panorama, esta edição da Revista Farofa Crítica convidou autores e autoras de todo o território nacional a contribuírem com seus olhares sobre as mais diversas manifestações populares tradicionais brasileiras e latino-americanas, a partir das seguintes questões: De que modos essas manifestações se vinculam à produção contemporânea das artes cênicas?  Quais são as problemáticas enfrentadas atualmente por essas manifestações? Que aspectos dessas manifestações contém indícios de performatividades originárias, africanas, ameríndias, brasileiras, latino-americanas, ou dos cruzamentos entre elas? Como, a partir delas, é possível expandir ou rever as noções ocidentais de performance?

Nos interessavam também textos que abordassem a história e a memória de fazedores, brincantes e grupos de manifestações culturais tradicionais pouco conhecidas e/ou documentadas, principalmente aquelas pertencentes ao Nordeste do Brasil, e sobretudo, ao estado do Rio Grande do Norte.

Atendendo a esse chamado, chegamos aos cinco artigos que compõem essa edição; artigos esses escritos por autores e autoras que habitam os cruzamentos entre a universidade e as ruas, entre as salas de aula e os terreiros. São professores, professoras, alunos, alunas e artistas que, mais do que terem determinadas manifestações populares como objeto de suas pesquisas, vivenciam-nas de dentro, rompendo as hierarquias entre observadores e fazedores, entre pesquisadores e brincantes.

Abrimos esta edição com o artigo “Repensando a tradição: performance enquanto escrita da memória nas culturas populares”, do multiartista Felipe da Silva Nunes (RN). Trançando suas reflexões teóricas sobre tradição, memória e performance com suas observações e vivências no Coco do Pé e com a Nação Zambêracatu, o autor discorre sobre a relevância das manifestações populares e do ato de performá-las, de brincá-las, para presentificar ancestralidades e marcadores identitários coletivos. Em suas reflexões, Nunes apresenta também uma série de questões-chave que podem servir como guia para a leitura dos demais textos que compõem a presente edição.

Seguimos com o artigo “Da continuidade de rasu-ñiti: um relato sobre a aprendizagem da Danza de las Tijeras ayacuchana em Lima a partir de processos de imersão cultural”, de autoria de Carla Dameane Pereira de Souto (BA), também conhecida por Nina Sonqo de Ayacucho, nome que recebeu quando se tornou Warmi Danzaq da Danza de las Tijeras ayacuchana, manifestação popular peruana. A partir de sua experiência como discípula na Escuela Danza de las Tijeras Puquio Ayacucho-Perú, a autora discorre sobre o modo como essa manifestação ancestral é transmitida até os dias de hoje, identificando sua importância enquanto elemento agregador e identitário a partir dos fluxos migratórios peruanos. Em seu artigo, Dameane também aponta para a questão da recente inserção da participação das mulheres nesta tradição, ponto que ainda parece passível de tensionamento ou invisibilidade entre alguns dos autores que descrevem a dança em seus escritos teóricos.       

Posteriormente, continuamos esta edição com o texto “O Afoxé Oju Omim Omorewá, Eugenio Barba e onde isso tudo passa a fazer sentido”, no qual a dramaturga e pesquisadora Daniela Beny (AL) compartilha com os leitores e as leitoras seu processo de ressignificação dos conceitos estudados durante sua trajetória acadêmica e teatral a partir de sua experiência com o Afoxé Oju Omim Omorewá, situado no bairro do Jacintinho, em Maceió/AL. A “‘conversa’ por escrito”, como o texto é descrito pela sua autora, aproxima-o da tradição oral, fazendo com que os aprendizados de Beny nos sejam transmitidos de maneira bastante pessoal e implicada, tornando-nos cúmplices de sua jornada.

Retornando ao Rio Grande do Norte, temos o artigo “Congos de Combate na qualidade de vida dos jovens brincantes de São Gonçalo do Amarante”, de autoria de Anny Kelly Gomes Dantas e Gláucio Teixeira da Câmara (RN), ambos brincantes dessa manifestação que possui vertentes espalhadas por todo o país. Além de contextualizar os Congos de modo geral, o texto contribui para o registro da história do Congos de Combate de São Gonçalo do Amarante, reunindo os perfis de alguns de seus mestres, numa linhagem que chega até um dos autores do texto: Gláucio Teixeira, também conhecido como Gláucio PeduBreu, que a partir de 2010 assumiu o mestrado deste congo são-gonçalense.           

Por fim, temos a partilha da pesquisa em andamento sobre os Bois de Reis do estado do Rio Grande do Norte, realizada por Daniel Fernandes da Silva (RN), compilada no texto “Mapeamento e catalogação dos Bois de Reis do Rio Grande do Norte”. Nesse estudo, Silva cataloga o impressionante número de cinquenta e sete Bois de Reis potiguares, separando-os pelas regiões do estado, identificando suas cidades e nomeando seus mestres e mestras. Neste mapeamento, o autor também sinaliza os dezessete Bois de Reis que seguem em atividades até o ano de realização da pesquisa (2021).

Com esta edição da Revista Farofa Crítica, procuramos mais uma vez aproximar as manifestações culturais populares e tradicionais do fazer teatral contemporâneo de nosso estado, país, e continente, dando seguimento às reflexões iniciadas nas mesas que compuseram o projeto “Panoramas da Cena Potiguar”, e que ainda podem ser acessadas em nosso canal no Youtube. Esperamos que, com ela, possamos contribuir para que essas manifestações e seus fazedores continuem cada vez mais presentes, ocupando todos os âmbitos do fazer-pensar artístico.

Reforçamos também que o Farofa Crítica funciona desde 2016 em formato independente, sem nenhum tipo de apoio financeiro contínuo e que o mesmo se aplica à publicação da Revista Farofa Crítica desde sua segunda edição em 2021.

 

Imagem do Banner: "Mateu", Rafael Santos, 2021.

Acesse os artigos da quarta edição da Revista Farofa Crítica - Dossiê "Performances Brincantes" clicando aqui, ou baixe a edição completa em PDF, abaixo.

 

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