Algumas Reflexões sobre a Vontade de Estar Junto

Por Fernando Pivotto
02/03/2022

Este texto é uma espécie de continuação espiritual do meu artigo Curta, Comente e Compartilhe, integrante do projeto @critica_isolada que coordenei, em 2021, em parceria com Amilton de Azevedo, do ruína acesa, e com o Sesc Pinheiros. Sugiro a leitura de ambos os textos, a fim de entender o contexto ao qual me refiro.

 

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A crítica, para mim, tem a ver com estar junto.

Talvez isso seja óbvio para você. Mas, às vezes, o óbvio precisa ser dito e repetido. Então, deixe eu começar esse texto afirmando o óbvio: a crítica (pelo menos, aquela na qual eu tenho me investido) tem a ver com estar junto.

Pronto, eis aí o óbvio do texto. Se você estiver com o tempo curto, fique à vontade para passar para o próximo artigo desta revista. Já te dei o resumo, o ponto de início e o ponto de chegada deste texto aqui: é tudo sobre a minha tentativa de me aproximar de alguém.

Eu, assim como outros críticos e críticas da minha geração, comecei direto no mundo virtual, em blogs, sites, revistas digitais e outras plataformas.

Não estar num jornal ou revista nos privou de uma estrutura e um amparo (e uma remuneração), mas nos possibilitava maior margem de manobra e potencial de experimentação nos nossos textos. Não digo que isso é bom ou ruim – é ambos e nenhum – mas que foi assim que se deu comigo, e com outros colegas que eu leio e que me inspiram.

Neste processo de experimentação, de tatear aquilo que a (minha) crítica pode vir a ser, de ir por tentativa e erro, texto a texto, caso a caso, me dei conta de algumas coisas que eu tenho achado importantes na minha... “poética crítica”, talvez?

Primeiro: uma tentativa de achar um humor e uma coloquialidade naquilo que eu escrevo. Não como forma de desrespeito com quem me lê, nem com o trabalho sobre o qual eu escrevo, nem comigo. Na verdade, é o oposto: é uma estratégia de aproximação, de desarme, de tornar a (minha) crítica menos sisuda, engessada; de tratar quem me lê como um amigo e o trabalho sobre o qual escrevo como um tema que interessa a nós dois. 

Tento falar da peça que eu vi como tento falar do último episódio de RuPaul, mais ou menos. Ou, pelo menos, com o mesmo estado de espírito: tento falar como eu falaria com meus amigos sobre esse tópico, com o mesmo calor e alegria. Com o mesmo afeto.  Como quem fala de uma coisa superdivertida na sala de casa ou no boteco.

Segundo: tenho entendido, desde 2020, o Instagram como minha principal plataforma de postagem. Minhas críticas passaram a ser publicadas exclusivamente lá, no formato de carrossel típico da rede, na tentativa de experimentar coisas diferentes daquelas que eu fazia no Medium ou outros sites onde a palavra era o ponto central. 

Isso se deu porque diversos espetáculos/experimentos online que eu assisti/participei/acompanhei (uso os termos soltos assim mesmo, justamente para respeitar o caráter esparramado, investigativo, de fronteiras borradas tão interessante na produção cênica de 2020 e 2021) me movimentaram de tal maneira que só escrever sobre eles de modo tradicional não me satisfaria. 

Houve iniciativas como Ôma – Um Ex-Petáculo, Tudo Que Coube Numa VHS, Pandas ou Era Uma Vez em Frankfurt ou Amor de Quarentena que me deixavam com um problema: como escrever sobre aquilo que acabei de acompanhar? 

Era quase um desafio: eis aqui um modo de pensar, fazer e assistir teatro nada tradicional. Que tal tentar o mesmo com a crítica?

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Obviamente, não digo aqui que revolucionei a crítica, reinventei a roda, e que o tempo se divide entre antes e depois de mim. Dioniso me livre desse ego. 

O que digo é: a inquietação dos artistas me inquietou. Me colocou em movimento.  

Não digo que “cheguei lá” (até porque “lá” não existe), mas que estou me movimentando, testando, experimentando, e acho que isso é a parte que mais me diverte, atualmente. 

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Assim, escrever direto no Instagram me parecia uma provocação divertida: como cativar a atenção de quem me seguia? Como instaurar um momento de parada, diferente do tempo ágil comum das redes sociais? Como interromper o scroll e convidar a pessoa a ficar naquele post, a ir até o fim de um carrossel de 10 imagens?

Meu maior desafio, portanto, tem sido encontrar um formato chamativo o suficiente para que as pessoas parem no meu post, e engajante o suficiente para que elas queiram seguir para a próxima imagem do carrossel, e daí para a próxima, e assim até o final. 

Claro, tentar manter a atenção do leitor é aquilo que todo mundo que escreve faz. Estou tentando fazer isso agora, assim como todo mundo que submeteu seus artigos nesta revista fez. Mas a qualidade da atenção exigida por esta revista é diferente daquela exigida pelo Instagram. Faça o teste. Veja o seu foco lendo os artigos aqui e compare com seu foco vendo stories ou posts no feed. Tente reparar também o que cativa sua atenção, e quais mecanismos foram empregados para este fim.

No Instagram, eu preciso manter a atenção de quem me lê, justamente porque o Instagram sabe quando o usuário abandonou um post e passou para o seguinte. Não só isso: ele pune o post abandonado.

“Punir” significa que o algoritmo classifica o conteúdo como irrelevante, e diminui o alcance da postagem, garantindo que postagens mais relevantes tomem seu lugar no feed do usuário. Se, numa linha editorial, é possível negociar com o editor, conversar e argumentar, com o algoritmo não há debate: a relevância (medida aqui unicamente pelas métricas de permanência e engajamento, e não pela subjetiva qualidade do conteúdo) é a única métrica que importa. 

Assim, fui descobrindo que tem um certo ritmo nos carrosséis, um jeito estratégico de organizar cada card para manter a fluidez na leitura e reforçar o convite para que o usuário arraste para o lado. Cada card num carrossel é um convite para que a pessoa continue conversando comigo. 

Esse modelo de crítica também tem similaridade com uma série, que termina seu capítulo com um gancho para o seguinte. Tem um quê de binge-watch, de séries feitas para serem maratonadas numa tacada só.

Na tentativa de manter a atenção de quem me lê, a crítica flerta com o copywriting. Ela envolve, em alguma medida, call-to-actions. 

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Bom, então chego agora neste texto no desafio com o qual me deparo em todas as críticas que posto: como ser convidativo sem ser sensacionalista? Como ser suscinto sem ser raso? Como ser ágil sem ser apressado, sem passar rápido demais por algo que precisava de mais tempo para contemplação? Como escrever numa rede social sem ser pautado pelo tempo apressado típico desta rede?

Adoro estar produzindo no Instagram – e para o Instagram, já que a rede se beneficia da minha produção – tanto quanto me sinto desconfortável em produzir no/para o Instagram.

Gosto do desafio pois acho que a crítica e o teatro precisam estar no maior número possível de lugares, falando com o máximo possível de pessoas. Acho que a crítica e o teatro são o máximo quando assumem um caráter despojado, dessacralizado, des-pedestalizado, que eu sei que eles podem assumir, e que sinto que assumem no Instagram e em experimentações em outras redes sociais.

Tem algo que eu procuro incessantemente no meu trabalho que é não me levar a sério demais, e não querer que as pessoas o levem a sério demais.

Obviamente, não quer dizer que eu faço meu trabalho com relaxo. Nem que quero que me tratem com relaxo. É o oposto. 

Levo meu trabalho com seriedade suficiente, e com olhar crítico suficiente, para saber que ele não é a resposta de todas as dúvidas, nem a definição absoluta e única do teatro, a epítome, o alfa e o ômega. Nenhuma crítica o é.

Olho para o meu trabalho com a seriedade de quem diz: “olha, essa é uma visão como outra qualquer. Tem a mesma importância que aquela, aquela e aquela outra. Nenhuma é definitiva, todas se complementam, vale a pena juntar todas para tentar tocar aquilo que é intangível no teatro – e que tanto nos maravilha.”

E acho que publicar no Instagram me ajuda manter esse contorno: “aqui estou eu, no meu máximo esforço, tentando falar com você, que eu respeito tanto, sobre um trabalho que eu assisti e me movimentou demais. Mas é só uma reflexão possível sobre esse trabalho, existem outras, vá atrás delas, formule as suas, e me conte.”

Produzir no/para o Instagram tem seus horrores, claro, e já falei deles no texto “Crítica Isolada #3 curta, comente, compartilhe (sim, esse é o título do texto)”, mas aqui, nesse artigo, queria falar de umas outras coisas. 

Queria falar que produzir no/para o Instagram me coloca num pé de igualdade com quem me lê, que escrever nas revistas eletrônicas, sites e livros nunca me colocou. E esse pé de igualdade tem me fascinado demais, é para me manter nele que eu sigo escrevendo no/para o Instagram. E paro de escrever lá quando isso mudar.

Saber que isso vai mudar e que posso mudar e que minha crítica também mudará me interessa profundamente. 

Saber que a minha crítica mudará e que tenho colegas experimentando, cada qual à sua forma, me interessa demais. Sou bastante apaixonado pela crítica no Instagram assim como sou por aquela publicada em revistas científicas, e por aquelas em jornais, e por aquelas no Youtube e por aquelas que surgirão em novos lugares. Sou apaixonado pela ideia de que tem gente que gosta de falar sobre teatro. 

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Mas, voltando aos meus desafios quando escrevo os carrosséis: o espaço limitado me obriga a ser sucinto. Meus textos passaram a ser curtos e pontuais. Então, minha inquietação se tornou a necessidade de ser sucinto sem ser raso. 

Bom, duas coisas surgiram daí: a primeira é a vontade de extrapolar a palavra e reorganizar a crítica em outros formatos, como gráficos e mapas mentais, estratégias que tenho aplicado sobretudo nas oficinas de crítica que conduzo. Tenho experimentado essas formatações, brincado com outras formas de organizar o conteúdo, e quero compartilhar estas experimentações num futuro próximo – mas elas valiam ser citadas brevemente neste parágrafo. 

A segunda, e sobre ela vale a pena falar mais, é uma tendência que notei nas minhas críticas-carrosséis: o espaço curto para textos significa que não cabem muitos pontos finais, mas cabem muitos pontos de interrogação.

Ou seja: tenho trocado frases longas por perguntas curtas, que faço ao leitor, na vontade de que ele leve o diálogo adiante, me envie respostas (ou novas dúvidas), escreva nos comentários, escreva na DM, ocupe espaços onde possamos conversar sem limite de caracteres. Quanto mais perguntas compartilho com quem me lê, menos chance minha crítica tem de ser um monólogo e mais chance tem de se tornar uma construção coletiva. 

Este, aliás, é o meu projeto futuro: críticas com cada vez mais perguntas, na tentativa de responder junto, somando novas perguntas e formulando teorias em parceria com quem me lê.

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Estas têm sido minhas principais buscas recentemente. Olhar para a crítica como quem olha para um brinquedo que ama, e que ainda está descobrindo todas as formas de brincar com ele. E chamar quem me lê e os artistas sobre os quais eu escrevo para brincar comigo.

 

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