Editorial

Por Heloísa Sousa
02/03/2022

A virtualidade instaurou espaços de encontros, diálogos, comunicação, produção e disseminação de conteúdo dos mais diversos possíveis, que afetam desde as relações profissionais até as mais íntimas e pessoais. Pessoas se cruzam nesses espaços, recebem e propagam informações, se posicionam em mídias diversas operadas pela internet, aplicativos, tecnologias, plataformas de conferências, dispositivos entre outros nomes e invenções de formatos que conectam pessoas através de sons, imagens e palavras digitais para além das limitações geográficas e do espaço-tempo. 

Nas últimas décadas, vivenciamos um crescimento massivo dessas virtualidades e sua instauração incontestável quando o mundo foi tomado pela pandemia do COVID-19 que impossibilitou os encontros físicos por meses. Palavras como presença, realidade, ao vivo, corpo, virtualidade, verdade, digital, fisicalidade, ganharam outros contornos, por vezes, muito borrados e nos deparamos com ocupações e articulações perigosas nas redes que mudaram o curso da história. Dando destaque aqui ao avanço de regimes políticos fascistas e conservadores, em vários países pelo mundo, movidos pela disseminação de fake news e ocupação sistemática das redes como estratégias de controle de ações e pensamentos da sociedade.

Espaços e coletivos que valorizam a educação, a pesquisa, a cultura e a arte têm sido violentamente atacados e encurralados por políticas de sucateamento e movimentações que descredibilizam o trabalho empenhado por milhares de artistas, educadores e pesquisadores no país. Ao mesmo tempo, tornou-se evidente as distâncias promovidas entre os espaços, as pessoas que produzem pensamentos e práticas nesses campos e a comunidade em si, revelando que precisávamos organizar mais ocupações e hackear sistemas. 

Os anos de 2020 e 2021 foram marcados por sucessivas ações e tentativas de ocupação das redes sociais, hackeamento de plataformas, produção de conteúdo em mídias diversas e espalhamento de conhecimento de forma ampla e gratuita, por parte de inúmeros coletivos e grupos políticos de esquerda, artivistas, artistas, professores, pesquisadores, entre outras figuras que ganharam notoriedade e sustentam os encontros para além das presenças físicas. Essas ocupações não são inéditas, são tentativas que ocorrem há algum tempo e ganharam significativa aparição nos últimos cinco anos.

A ocupação da virtualidade por grupos conservadores, neofacistas e de extrema direita promoveram retrocessos inimagináveis e exigiram uma ação efetiva, radical e urgente do lado oposto em prol da permanência da democracia, da liberdade, do diálogo e da garantia dos direitos básicos de vida. Se pensarmos na ideia de hackeamento, é importante compreender que esta ação corresponde a uma exploração de outras utilidades e possibilidades de uso dos meios digitais, softwares e outras virtualidades.

Neste ano de 2022, publicamos a terceira edição da Revista Farofa Crítica e seguimos em um estado intermediário dessas dinâmicas. O avanço da vacinação em diversos países junto com a colaboração de diversas pesquisas científicas na área trouxeram a possibilidade de maior e significativa resistência à pandemia do COVID-19; o que nos permite uma maior liberdade de circulação e vislumbre de retornos às atividades que cumpríamos antes desse momento. Ao mesmo tempo, a pandemia não está completamente superada, o risco ofertado pelo vírus ainda é considerável e o mundo agora lida com esse “pós” ou “retorno” à algo que ainda não sabemos bem delinear. Depois de dois anos seguidos vivendo uma dinâmica intensa de virtualidades e distanciamentos, como voltar? Como hibridizar? O que fica e o que se abandona? 

Algo é muito perceptível: a necessidade política de ocupação da virtualidade por estratégias artísticas e críticas, assim como o aprimoramento das estratégias de hackeamento que foram exploradas durante esse período. Algumas coisas surgem na pandemia e, provavelmente, não irão embora com ela, mas permanecerão como ponto de revolução das relações e suas formas de elaboração.

Para esta edição, publicamos seis artigos de diferentes artistas, pesquisadores e pesquisadoras do país que versaram sobre suas experimentações nos campos artístico, crítico e pedagógico, pensando principalmente o emaranhado de conexão entre todos esses campos a partir da própria rede imagética e de vivência pela virtualidade.

Abrimos a Revista com o texto “#Ocupatudo ou Onde se faz crítica de teatro (?)” do artista, crítico e pesquisador Leandro Fazolla (RJ) tratando de sua produção de críticas através de vídeos divulgados na internet; junto a isso, Fazolla tece uma crítica também ao olhar estigmatizado e distanciado que usamos para ler as histórias e criações brasileiras, restringindo os campos de produção aos centros hegemônicos e descartando margens com igual potencial criativo. O autor fala a partir de sua localidade, na Baixada Fluminense, mas suas palavras ecoam perfeitamente em diversas cidades do Norte e Nordeste do país, por exemplo, que vivem a insistente invisibilização de suas criações. Será que a virtualidade, com sua ilusória e borrada “democraticidade” será a janela possível para que se enxergue além do que se convencionou como eixo?

Em seguida, os pesquisadores Henrique Saidel e Juliana Strehlau (RS), trazem o texto “Qorpo Crítico: teatro, haqeamento e afins” onde dissertam sobre a criação do site de críticas Qorpo Crítico – Teatro e Outras Cenas, um projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e que publica textos críticos de alunos e professores associados ao Departamento de Arte Dramática da universidade em questão. O texto é um relato que mostra a possibilidade da extensão universitária ocupar também a virtualidade e torna a atividade crítica uma prática pedagógica de expansão e conexão entre público, pesquisadores, estudantes e artistas. Para além dos muros da universidade, a iniciativa se materializa por várias mãos e promove outras pequenas comunidades interessadas nas discussões em torno de arte e política.

Fernando Pivotto (SP), autor do site Tudo menos uma crítica, também escreve para esta edição o texto “Algumas reflexões sobre a vontade de estar junto” para falar de suas críticas carrosséis e outras coisas mais. Com a afirmação de uma linguagem informal e uma apropriação inteligente dos formatos e lógicas operativas das redes sociais, Pivotto abre um espaço com muita potência dialógica no campo da crítica e impulsiona discussões e reverberações dos seus carrosséis, questionando os modos de escrever críticas de teatro. Em seu texto observamos tanto o relato desse processo de investigação de formas de crítica, quanto acompanhamos os desejos latentes do autor e alcançar e conversar com os leitores e espectadores de teatro. 

As artistas e pesquisadoras do podcast Pano pra Manga também estão presentes nesta edição com o texto “Pano pra Manga: Um podcast sobre figurino e caracterização”. Anna Kühl, Gabriela Schembeck e Laura Françozo (SP) escrevem sobre esse projeto com forte caráter pedagógico, que soa como um diálogo descontraído entre importantes figurinistas, diretores/diretoras de arte, cenógrafos/cenógrafas, iluminadores/iluminadoras e pesquisadores/pesquisadoras do país sobre um elemento cênico tão fundamental e por vezes tão abandonado nos debates críticos: o figurino. Através do recurso do podcast, as autoras descobriram formas de criar debates, informar e sugerir referências, o que tornou o projeto fundamental para pesquisadores, estudantes e interessados em figurinos, seja para o teatro, o cinema, a televisão e outras produções audiovisuais ou cênicas. Mostrando que o conhecimento, as pesquisas e sua disseminação não se restringem aos espaços universitários e alcançam centenas de pessoas através de estratégias virtuais. 

Para falar de experiências virtuais em práticas artísticas, Juliana Cerqueira (RJ) nos traz no texto “Ovo – Olho em volução orgânica: no caminho é onde acontece ou experienciar (dis)formações” um relato do processo de criação da live feita pelo Coletivo ACOCORÉ, que realizam performances coletivas e simultâneas envolvendo mais de vinte artistas em sua composição. O relato é apenas uma das inúmeras experiências que diversos grupos e artistas da cena elaboraram durante a pandemia e que nos fizeram investigar o corpo, o tempo, o espaço e a própria imagem em modos híbridos mais radicais. 

Por fim, encerramos esta edição com o texto “Criatura-de-Frankenstein do corpo vozes hackeadas” do artista e pesquisador Alexandre Américo (RN) que em forma livre de um texto poético, não somente em seu pensamento, mas também em sua materialidade escrita, versa sobre um diálogo-pensamento-obra-pesquisa contínua em dança e para além dela, atravessa(n)do pelo corpo. Isso porque as pesquisas e práticas desse artista estão em um movimento tão incessante, que o sistema convencional de escritas e conclusões não cabem e a subversão dessas formas é aqui apresentada também como estratégia de hackeamento.

A Revista Farofa Crítica pretende, a partir da publicação desses textos, colaborar com as discussões sobre essa temática, disseminar projetos e pesquisas revelando suas contribuições para a comunidade, além de gerar espaços de conexão entre diferentes interessados e articuladores culturais. A edição é também uma ferramenta pedagógica a ser debatida em espaços formais e não formais de educação, para que os autores e autoras que tenham seus textos publicados possam tornar-se referência na ampliação desses debates. Reforçamos que o Farofa Crítica funciona desde 2016 em formato independente, sem nenhum tipo de apoio financeiro contínuo e que a publicação da Revista Farofa Crítica segue assim desde sua segunda edição em 2021.

 

Imagem do Banner: Sem Título, 2020. Arthur Scovino.

Acesse todos os artigos da terceira edição da Revista Farofa Crítica - Dossiê "Hackeamento e Ocupações Crítico-Artísticas na Era do Engajamento" em nosso site, clicando aqui, ou baixe a edição completa em PDF abaixo. 

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