Encontros: A Experiência como Prática de Criação e Reflexão em Dança

Por Regis Oliveira
12/07/2021

 

RESUMO: Neste artigo, apresento reflexões acerca do espetáculo “Encontros” da Cia dos Pés, grupo residente em Maceió, Alagoas e que fizeram parte do estudo de mestrado deste pesquisador realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Dança na Universidade Federal da Bahia. Busco aqui discutir a poética deste espetáculo, entendendo poética como modo de operar, focalizando os aspectos da experiência e da alteridade como potencializadores da prática de criação em dança, amparado pelos escritos sobre “experiência” em Jorge Larrosa Bondía (2002) e Walter Benjamin (1986).

PALAVRAS-CHAVE: Cia dos Pés; Processo de Criação; Dança Contemporânea; Experiência; Alteridade.

 

Motivações

         No trato com ideias e assuntos de dança em Alagoas, vi-me diversas vezes frente ao fato de que, em todo o tempo dedicado à arte como artista, como docente e como espectador de teatro e de dança, permaneci em busca de questões sobre o corpo, o movimento, sobre a criação em dança. Em vista disso, meu percurso artístico esteve marcado por inquietações acerca do uso do corpo nas artes cênicas e de suas possibilidades criativas. Nesse território, a experiência vivenciada no espetáculo “Encontros” me marcou fortemente, sobretudo, pela forma de tratar o dançarino e o processo compositivo, o que contribuiu para que eu pudesse pensar o corpo enquanto discurso e a criação enquanto uma rede que se constrói e se materializa em meio às suas ondulações, instabilidades e incompletudes.

         Diante disso, focalizando a “experiência” como potencializadora da prática de criação em dança, proponho discutir a poética deste espetáculo, amparado pelos autores Jorge Larrosa Bondía e Walter Benjamin.

         É importante salientar que as reflexões apresentadas nesta escrita são frutos de minha experiência criativa enquanto dançarino compreendido ao mesmo tempo como um sujeito que pensa, reflete, discute, pergunta, responde e questiona junto com o outro, em colaboração. Isto é, um dançarino autor de sua própria dança, refletindo sobre sua atitude criativa, suas relações com o outro e com o mundo. Esse processo de criação foi compartilhado na Cia dos Pés com os dançarinos Edson Santos, Joelma Ferreira e Telma César.

 

Caminhos da Pesquisa

         No âmbito acadêmico, considerar a experiência como caminho para a pesquisa implica, conforme Telles (2007), em assumir a parcialidade do observador “como também sua participação efetiva no fato em questão, já que o entrelaçamento olhar-objeto é intenso” (TELLES, 2007, p. 4). O autor defende ainda a experiência como um caminho viável para a pesquisa e para a investigação de processos vivenciados pelo próprio pesquisador, por possibilitar uma assimilação “corpóreo-sensorial” a respeito do tema investigado. Assim, propõe a busca de uma “radicalidade do conceito de experiência, onde o olhar do investigador também passe por seu corpo, suas emoções e seu fazer” (TELLES, 2007, p. 4). A noção de experiência, portanto, ancorada em Bondía (2002) e Benjamin (1994) se ramifica, por um lado, como questão a ser localizada para o entendimento do objeto estudado e foco para as discussões acerca das problemáticas levantadas; por outro, como fio condutor para o posicionamento do artista pesquisador/pesquisado.

         Este estudo fez parte da minha pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia, entre 2012 e 2014 e teve como orientadora a Profa. Dra. Jussara Sobreira Setenta. Esta pesquisa encaminhou-se por meio de pesquisa qualitativa exploratória, com observação participante e análise de discurso, partindo da análise de oito entrevistas realizadas com integrantes e ex-intergrantes da Cia dos Pés, além de alguns artistas da cena alagoana de dança. Neste viés, o levantamento do percurso artístico da companhia foi realizado a partir de pesquisa bibliográfica e documental através das entrevistas e de documentos de espetáculos, tais como: matérias jornalísticas, programas dos espetáculos, registro em vídeos, cartazes e fotos. É importante lembrar que tal metodologia de pesquisa foi sendo organizada e reorganizada ao longo do percurso seguido, sofrendo alterações e modificações durante o tempo de pesquisa.

 

A Cia dos Pés

         A Cia dos Pés, companhia de dança contemporânea atuante em Maceió, Alagoas, surgiu em 2000 pela iniciativa da dançarina e professora-pesquisadora Telma César, buscando diálogo entre a dança contemporânea e elementos da cultura tradicional e popular do Brasil. Este grupo teve duas formações de elenco: de 2000 a 2005 (primeira formação) e de 2008 a 2021 (formação atual). Ao longo de sua trajetória, foram desenvolvidos treze espetáculos, dentre eles, “Pé, Umbigo e Coração” (2000), “Variações para Café com Pão” (2001), “Yerma Maria da Silva” (2003), “Miami dos Mendigos ou As Privadas” (2009), “Qual é a história que você quer que eu conte?” (2010), “Dentroforaadentro” (2010), “Azul Quente” (2010), “Encontros” (2010), “Você tem tempo para ouvir a minha história?” (2013), “Nuvens Enraizadas” (2014), “Dança baixa” (2015), “Dança Anfíbia” (2016) e “Dança Monstro” (2021 – em processo).

         A dança contemporânea que se produz na Cia dos Pés, sobretudo, na construção de seus espetáculos, tem como um de seus princípios fundamentais a busca por corpos disponíveis para propostas coreográficas plurais, por sua vez, baseadas na participação do dançarino em um processo em que a experiência possa atravessar o sujeito, ou seja, interessam “corpos ideias e não corpos ideais” (SETENTA, 2007, p.144). Imbricado por tal entendimento, o que interessa no fazer desta companhia são as questões que o corpo vai elaborando em meio às experiências que vai vivenciando no processo criativo. Nas palavras do professor alagoano Antonio Lopes:

A Cia dos Pés foi responsável por transformações e pela busca de desenvolvimento de uma linguagem da dança centrada na singularidade de cada corpo. Esse modo de operar em dança, de perceber o que cada corpo oferece enquanto potência, ao invés de organizar o corpo para se adequar a determinado tipo ou padrão de movimento, é esse o ponto de vista de verificação de um espaço privilegiado de experimentações e de possível realização que alimenta, sustenta e permite o amadurecimento de novas companhias, inseridas num momento de importante contribuição das atividades coreográficas para a nossa Alagoas (Lopes, 2004, p. 1).

 

A “Experiência” na Cia dos Pés

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

— Jorge Larrosa Bondía

         A fala que se anuncia no fazer-dizer (Setenta, 2008) da Cia dos Pés, como já comentado anteriormente, apresenta um tipo específico de criação em dança, o qual lança um olhar sobre a experiência do Sujeito Dançante, possibilitando a emergência da voz do dançarino no processo criativo, pois este é entendido enquanto um cocriador da obra artística. Nesse jeito de pensar a dança, o espaço da criação se organiza para que o sujeito se coloque no processo enquanto um pesquisador de sua própria dança, numa busca por encontrar nela o desvelamento de si mesmo.

Neste processo de comunicação, ocorre um fluxo discursivo entre falantes e ouvintes, onde esses discursos são transformados mutuamente, ou seja, ecoa no discurso do falante o discurso do ouvinte e, no discurso do ouvinte, o do falante. O sujeito não produz um discurso único. Ao contrário disso, é uma voz contaminada pela voz do outro (SETENTA, 2008, p.61).

         Na Cia dos Pés e, de modo mais específico, em “Encontros”, a criação em dança abriu-se para o espaço-tempo da experiência, buscando no diálogo com a alteridade a oportunidade para dar sentido ao que acontece com o sujeito que dança. Neste campo de construção de sentido, onde o dançarino encontra-se a si mesmo em meio a suas questões, ocorrem reorganizações constantes. Isso significa dar tempo e espaço para que os acontecimentos sejam reconhecidos pelo próprio sujeito. Em tal perspectiva, cultivam-se os mínimos e simples detalhes dos acontecimentos vivenciados pelo dançarino a partir do intercâmbio de suas experiências.

         Neste sentido, a dança experienciada e produzida na Cia dos Pés busca uma espécie de tateio noturno, um caminho sempre desconhecido, misterioso, incerto, enigmático, que se distancia daquele modo de operar em que a dança se configura num ideal de certeza, numa prática que estabelece um percurso   carregado de iluminações para atingir a máxima nitidez na tradução das impressões sensíveis do objeto.

         Deste modo, se falamos em dar tempo para que os acontecimentos se acomodem no corpo, cada indivíduo terá um tempo particular para afagar as suas dúvidas e sensações. O tempo da percepção, da pausa, do sentir. Um tempo lento e, nessa lentidão, o corpo se abre para receber o outro, o que implica em reorganizações constantes.

         Esse jeito de fazer dança da Cia dos Pés, atravessado pela experiência da alteridade, busca a comunhão entre os tempos de cada sujeito, compartilhados em um tempo comum. O tempo da relação, do intercambiar experiências. O tempo da capacidade e habilidade do sujeito em escutar o outro, uma escuta que dá sentido ao que acontece durante a criação, uma escuta sinestésica. Uma abertura para o afeto do outro, para produzir com este afeto uma ação que afeta, gerando e gerenciando seus próprios espaços, criando seus próprios meios de ação juntos, buscando uma multiplicidade de forças e ações compositivas em dança.

         Nesse entendimento, importou trilhar o caminho do tempo do aprofundamento, da investigação, da pesquisa, do decantar das ideias. O tempo para acontecer a experiência, para perceber o que nos toca. O tempo do abrigo das modificações, das alterações, das transformações reconhecidas pelos sujeitos. O tempo da inclusão, da diluição, da retirada, da desistência, da resistência, da existência, da transformação, do distanciamento, do mergulho. Outro tempo. Um tempo que buscou pausa e escuta. Paradas para ouvir o outro que dança. Calar para escutar o companheiro e a si mesmo, e “por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal” (BONDÍA, 2002, p. 27).

         Importa, então, tomar a abordagem de “Encontros” como transformação, o que contribui para levar em conta a complexidade do processo compositivo, evitando a sua redução a um circuito informativo e mecânico. Dessa forma, é possível considerar a construção do sujeito baseada na experiência vivenciada a partir de relações compartilhadas em dança, observando, assim, a construção de uma atitude crítica do artista. Dito de outro modo, “o sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião” (BONDÍA, 2002, p.25).

         Ainda conforme o referido autor, o sujeito da experiência é aquele que está aberto aos acontecimentos, definindo-se “por sua recepção, por sua disponibilidade, por sua abertura com [...] uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial” (BONDÍA, 2002, p. 24). Importa, então, pensar a experiência, remetendo-se a certa intercambialidade, a uma relação de deslocamento, ou seja, a uma faculdade de trocar experiências, de transmiti-las ao outro e, nessa transmissão, há a construção de propriedades compartilhadas.

         Portanto, quando o processo compositivo em dança pavimenta seu caminho a partir da experiência de cada dançarino, apostando no reconhecimento dessa experiência, que é sempre singular, permite a criação de um tempo-espaço que afaga a dúvida, acaricia questões, gera pontos de atenção e de escuta, pontos de fuga rumo ao desvelar do anônimo; proporciona situações de perguntas mais que respostas, possibilitando o encontro de vozes diferentes e, nesta interlocução, há um ato generoso de acolher o outro, pois, a partir da experiência da alteridade, do que é exterior ao sujeito, a experiência se assenta. Nessa lógica, importa pensar o sujeito que dança enquanto um Sujeito da Experiência, enquanto sujeito que reconhece em si os atravessamentos e as transformações para transmiti-las ao outro, intercambiá-las. Então, para que esse sujeito se mostre presente e exposto, há que haver momentos de pausa, de parada, de escuta.

         Essa atitude de “parar” pode ser percebida como uma atitude política de quem para para expor-se e, nesta exposição, criam-se zonas de acontecimento onde se articulam atravessamentos, adaptações e transformações. Com essa tônica, o sujeito se apresenta como um sujeito exposto. Sujeito este que dá passagem para os afetos e acontecimentos gerados em sua experiência, deixando marcas e vestígios. Vale lembrar que importa não apenas dar passagem à experiência, aos acontecimentos, mas, sim, reconhecê-los, intercambiá-los, transmiti-los. Portanto, para que esses vestígios sejam reconhecidos, há que se dar tempo. Dar tempo para que algo aconteça e transforme o indivíduo. Nessa caminhada, o sujeito dançante passa a ser definido

não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial (BONDÍA, 2002, p.24).

         Essa abertura produz no dançarino a capacidade de olhar para si mesmo, para seus acordos e cruzamentos, para os acontecimentos vividos, com certa acuidade e paciência para entender e compreender o acontecido. “Parar” não remete a uma atitude de desistência. Em vez disso, passa a ser uma atitude para a existência, para outra maneira de existir na dança, no mundo. Diante disso, a dança, no âmbito da experiência, ocorre num “fluxo de transformação e agindo sobre o processo de construção de diferenças (SETENTA, 2008, p.39), em um campo de provisoriedade que apresenta aos sujeitos a experiência de alteridade enquanto anunciadora de outras ideias, vivências e significados.

         Envolvidos nesse processo, os sujeitos produzem significados permeados por contextos estabelecidos pela relação de alteridade, numa dinâmica de trocas evolutivas, mantendo viva a multiplicidade, abrindo caminho para processos de apropriação e transformação. Então, não se pode falar em um processo que seja produzido por um “sujeito exclusivo e sim por um sujeito atravessado, contaminado e modificado pelo próprio processo de exposição e diálogo” (SETENTA, 2008, p.58). Para Bondía (2002):

O sujeito da experiência [...] é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera do que quer (BONDÍA, 2002, p. 25).

         Por conta disso, o sujeito passa a confiar na experiência como território de surpresa, de vulnerabilidade, de desafios e enquanto espaço que possibilite a construção e produção de propriedades compartilhadas a partir da experiência da alteridade, em que a cooperação pode atuar como potente ação desestabilizadora de modos hegemônicos de pensar a dança.

         Aqui, busca-se refletir sobre o ambiente da criação em dança enquanto espaço-tempo de experiência em constante processo de transformação e modificação, que possa contribuir para que os acontecimentos entre sujeitos sejam transmitidos, compartilhados e refletidos coletivamente. Isso implica na construção de propriedades compartilhadas, intercambiadas, a partir da geração de conflitos, de dissensos e contrapontos entre diferenças, no reconhecimento da experiência da alteridade, fazendo do ambiente da composição um ambiente que possa dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. Para tanto, como afirmei anteriormente, torna-se necessário pensar o sujeito dançante enquanto um sujeito da experiência.

         Nesse sentido, o ambiente experienciado na criação do espetáculo “Encontros”, da Cia dos Pés, compreendeu a composição em dança enquanto espaço-tempo de transformação dos dançarinos, ao invés da reprodução de formas já determinadas. Partindo dessa visão, a construção do corpo do artista apoia-se no reconhecimento e intercâmbio de experiências e no exercício investigativo coletivo e compartilhado.

 

O processo de criação do espetáculo “Encontros”

         “Encontros” foi criado em 2010 e tomou como ponto de partida o encontro entre histórias, corpos e vivências plurais. O encontro de diferentes pessoas, a investigação das potencialidades desse encontro como o centro de seu projeto ético/poético, bem como a valorização da autonomia e da singularidade de cada intérprete-criador tornaram-se questões centrais do processo. Outro ponto norteador foi a questão do tempo. Pensar sobre o tempo, pensar sobre a falta de tempo, pensar sobre como utilizamos nosso tempo hoje, tudo isso atravessado pela simplicidade da ação e atitude de tocar o corpo em situação de nudez. Que tempo temos para encontrar e perceber a nós mesmos? Qual tempo dispomos para escutar nossos anseios e desejos mais íntimos? A nudez operou, então, como uma possibilidade de investigar e detalhar uma conexão mais profunda e complexa a partir da ação de tocar o próprio corpo em situação de nudez, conforme observamos na Imagem 1:

 

Imagem 01 - Encontros.

Registro do espetáculo "Encontros". Fonte: Jul Sousa, 2010.

 

         As reflexões tecidas sobre a experiência por Benjamin (1994) e Bondía (2002) nos abrem possibilidades de conexão com questões aqui discutidas, se pensarmos, por exemplo, que a criação de “Encontros” se desenvolveu num processo compositivo a partir da própria experiência dos dançarinos, em que a relação de troca com o outro proporcionou a criação de possibilidades poéticas no espaço-tempo por meio das particularidades e diferenças das corporeidades específicas de cada dançarino, deixando, em si mesmo e no outro, registros de experiências, marcas, vestígios no corpo.

         “Encontros” foi composto num partilhamento entre os seus integrantes e, nesse cruzamento de afetos, falas, dizeres e escutas, abriu-se caminho para a alteridade, para o reconhecimento dos acontecimentos no corpo, para o intercâmbio de ideias e questões, para o respeito mútuo entre os integrantes. Nesse trânsito e cruzamento, construímos o outro em nós mesmos e nos construímos no outro, criando possibilidades de autoconhecimento a partir das diferenças que o outro apresentava, agenciando um contato consigo mesmo e com a própria cultura.

         Esta ação contaminadora entre os sujeitos presente neste espetáculo sobre um estado poético e estético se construiu a partir de uma partilha sensível, de uma organização coletiva que implicou não em uma atitude simplista do tipo “todo mundo faz tudo”, mas na disponibilidade que cada indivíduo teve ao se colocar e participar da discussão da obra, das propriedades operativas que engendravam o grupo e a configuração artística, e, por isso, as propriedades compositivas se tornaram compartilhadas. Na Imagem 2, observamos o modo como uma ação está sendo partilhada e compartilhada entre os dançarinos em “Encontros”, algo que, com base nas argumentações de Jacques Rancière, poderia ser considerado um exemplo de partilha do sensível:    

         Denomino partilha do sensível o sistema de evidencias sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se fundam numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte dessa partilha” (RANCIÈRE, 2005, p.15).

 

Imagem 02 - Encontros.

Registro do espetáculo "Encontros". Fonte: Jul Sousa, 2010.

 

         Como uma atitude de afirmação do sujeito e de suas particularidades, neste processo, o artista sobrepõe-se ao passo de dança. A improvisação foi o procedimento que circulou todo o universo de composição das cenas, tanto como elemento de pesquisa de movimento quanto como dispositivo estético da obra. Dessa forma, o que se observa no trabalho não é o grau de dificuldade ou de elaboração da coreografia (embora ela tenha tanto uma quanto a outra), mas, sim, o intérprete que, nesse caso específico, foi também cocriador da obra artística, realizando seu discurso através do movimento e de sua experiência. Isso enfatizou a importância da autonomia dada ao dançarino nesta criação, ou seja, a construção de um discurso pessoal imbricado no coletivo. Como afirma Lopes a respeito do espetáculo “Encontros”:

Este processo de criação e investigação explorou as singularidades de cada dançarino, desafiando a capacidade expressiva por múltiplas vias, além de encontrar a particularidade de cada indivíduo numa movimentação de conjunto, num corpo poético, compartilhado e exposto na cena (LOPES, 2014, p.1).

         O discurso corporal em questão remete à proximidade dos dançarinos com (e seu pertencimento às) Danças Tradicionais Populares, a saber: coco alagoano e pernambucano, dança dos orixás, frevo, caboclinho e cavalo-marinho. Para essa composição importou o temperamento dessas danças e não o passo em si. Para tanto, esse processo foi alimentado e construído numa rede de interlocução entre danças tradicionais brasileiras e dança contemporânea, observado e tratado a partir de suas peculiaridades, o que envolveu mudanças no modo de se organizar corporal e esteticamente. Tal diálogo possibilitou conexões do indivíduo consigo mesmo, com o outro e com sua cultura, proporcionando uma relação crítico-reflexiva de seu fazer/estar no mundo. Além disso, as danças tradicionais populares na construção dos corpos desses dançarinos desestabilizaram modelos de imagens do corpo que sustentam os vários tipos de representações dominantes na dança, na mídia e na sociedade, pondo em evidência o caráter político da arte. Pois,

o que mais nos interessa nas danças populares é a corporalidade, que relaciona cotidiano e dança. Trata-se de um saber corporal especializado relacionado com ações cotidianas de práticas que, de um modo geral, não existem no ambiente urbano e ampliam a exploração das potencialidades anatômicas do movimento humano. De acordo como nosso modo de pesquisar, esses movimentos se relacionam com metáforas, portanto, trata-se de um aporte que resulta em ganhos técnico-poéticos. Essas danças e ações corporais, de fato, estão relacionadas a modos de vida e subjetividades bastante específicas (DOMENICI, 2010, p. 4).

Percebemos, então, que a aproximação, diálogo e interlocução entre essas duas línguas (danças tradicionais e dança contemporânea) atuaram em

um processo de construção de uma zona de transitividade, baseada na cooperação entre condições relacionais de cada área, em busca de conexões que mobilizem experiências reorganizativas de seus respectivos regimes de funcionamento e estados de equilíbrio, de modo que favoreçam a produção de novos sentidos (BRITTO, 2008, p. 5).

         Tal processo estava baseado numa ideia, não de somar uma coisa sobre a outra, mas investigar as possibilidades de articulação e interlocução entre as línguas em exposição, construindo caminhos que promovessem “a expansão de um campo no outro” (BRITTO, 2008, p. 3), compreendendo e afirmando seus contrapontos e semelhanças. Isso gerou a produção de vozes singulares no coletivo, distantes de uma homogeneização ou de sujeição de uma língua sobre outra, entretanto, próximo de um jogo de pluralidades, multiplicidades e diferenças, que foi traduzido/recriado no espetáculo, como pode ser visto na Imagem 3.

 

Imagem 03 - Encontros.

Registro do espetáculo "Encontros". Fonte: Jul Sousa, 2010.

 

         Em “Encontros” a tradução das danças tradicionais brasileiras se deu de modo a acomodar estas danças, gerando, nos corpos e na composição, ajustes, reajustes e rearranjos que criaram e recriaram modos de organização estéticas diferenciados. Por exemplo, o uso do movimento das pernas em eloquência no nível baixo, caminhadas agachadas, mobilidade da coluna no eixo cabeça-cóccix. Assim, nesse processo, pretendeu-se que o dinamismo, o ritmo, corporalidades e imaginários específicos da cultura popular pudessem contaminar a gestualidade da dança contemporânea da Cia dos Pés. Dessa forma, o diálogo compositivo coevoluiu numa retroalimentação, proporcionando a construção de uma dança que foi capaz de fazer uma língua expandir-se na outra, pois:

Toda dança resulta de modo particular de um corpo organizar, com movimentos, o seu conjunto de referências informativas (biológicas e culturais). Do mesmo modo, o contexto cultural corresponde ao ambiente do corpo, no sentido de que o conjunto de informações que caracterizam os modos de pensar e operar vigentes na sociedade em que está inserido delineia seu campo particular de possibilidades interativas. Os ambientes interferem na configuração de suas estruturas, ao mesmo tempo em que tais estruturas, geradas sob as condições dos ambientes, interferem na sua reconfiguração (BRITTO, 2008, p. 72).

 

Considerações finais

         A motivação deste artigo foi refletir sobre o processo de criação do espetáculo “Encontros”, da Cia dos Pés. Este processo faz parte de uma pesquisa compartilhada em que a experiência emergiu como prática de criação e de reflexão em dança. Isso significou a necessidade de lidar com diferenças, singularidades, pensamentos heterogêneos e possibilidades de movimentos. Nesse percurso processual, a criação se constituiu a partir de um modo particular de tratar o corpo e a dança, no qual o indivíduo foi o foco da pesquisa.

         Foi nessa perspectiva que procurei construir este trabalho. Uma reflexão sobre um processo em que não houve corpos pré-definidos nem uma técnica única: os corpos são gerados a partir da vivência, a experiência fazendo parte do processo criativo e, assim, transformando corpos e movimentos. Nesse processo, que privilegia uma escrita do movimento próprio, o dançarino se comporta e se forma a partir de suas próprias experiências, passando a ser coautor de suas criações. Ele não é, portanto, um mero objeto ou um simples executor de códigos preestabelecidos, permitindo-se ser um corpo criador. Nesse sentido, “Encontros” investiu em um dançarino criador da escrita que dança, refletindo sobre e, ao mesmo tempo, questionando o seu processo criativo. Nesse modo de tratar o fazer dança, ideias hegemônicas passaram a dar passagem para conversas dialógicas, criando pontes e conexões variáveis, heterogêneas.

         Observamos, então, que o processo de criação deste espetáculo construiu sua trajetória num território de sensibilização, transformando artistas e público. Dessa forma, a ação de refletir sobre tal processo criativo contribui com a construção do conhecimento artístico, clareando ideias e modos de fazer, quando revisitamos a trajetória percorrida de forma distanciada e crítica. Esse processo de reflexão “é o que aciona a produção de subjetividade num trânsito de informações que torna visível o que estava invisível no início do processo” (SETENTA, 2008, p. 57). Por conta disso, conseguimos perceber a construção de uma atitude crítica nos artistas envolvidos nesse processo baseado na experiência, o que contribuiu para a construção de autonomia frente ao próprio movimento, tornando os dançarinos críticos de suas danças na partilha de sensações e reflexões com os outros dançarinos.

         Benjamin (1994), ao problematizar a questão da pobreza de experiência na modernidade, considera a questão do tempo e do espaço de troca com o outro como fatores importantes para que a experiência possa ser abrigada no corpo. Diante disso, a partir do processo vivenciado, conseguimos perceber que o estar com o outro, o encontro com diferenças de pensamentos e de movimentos, ao mesmo tempo em que não é uma tarefa fácil, é também um caminho prazeroso de descobrimento, de aventura, de mistério, que contribuiu para o amadurecimento dos integrantes do grupo e do trabalho artístico. Além disso, visualizamos também que a diferença possibilitou uma escuta mais refinada, na qual se abriu espaço e tempo para ouvir a si mesmo e ao outro. Essa escuta foi gerando partilha de ações e sensações que fortaleceram o ambiente de grupo dentro da Cia dos Pés, transformando seus integrantes e potencializando a criação artística.

         Por fim, sobre a reflexão apresentada, penso que o presente trabalho evidencia aspectos teóricos/práticos determinantes do fazer artístico de um grupo consolidado, os quais acredito ser importante fomentar e difundir no campo de saberes sobre os processos de criação em dança. Diante desses aspectos, pensamentos e conexões, pensamos, enquanto grupo, que estes serão válidos se imbricados pelo entendimento de composição enquanto processo que abriga experiências, ou seja, transformações e modificações por meio das quais o próprio sujeito dá sentido a seu corpo, tomando conta daquilo que acontece e articulando a cooperação e a cumplicidade na experiência da alteridade.

 

Referências

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. (Obras Escolhidas, v. 1)

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de João Wanderley Geraldi. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20–28, jan./abr. 2002.

BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em Dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo Horizonte: Fid editorial, 2008.

DOMENICI, Eloísa. Educação somática e dança: experiências com a reorganização postural dinâmica. Anais ABRACE, v. 11, n. 1, 2010. Disponível em: https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/abrace/article/view/3528. Acesso em: 11 jan. 2021.

LOPES, Antonio. O Movimento Contemporâneo de Dança em Alagoas. Gazeta de Alagoas, Maceió, 14 abr. 2004. Caderno B, p. B1.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34: EXO experimental, 2005.

SETENTA, Jussara. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008.

TELLES, Narciso. A experiência como atitude metodológica na pesquisa em teatro. Anais ABRACE, v. 8, n. 1, 2007. Disponível em: https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/abrace/article/view/1172. Acesso em: 11 jan. 2021.

 
 

Foto da capa: Encontros, da Cia dos Pés. Foto de Jul Sousa. 

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