O Teatro Documental do Grupo Carmin: uma Trajetória entre o Fato, a Ficção e o Audiovisual

Por Ivan de Melo
12/07/2021

Resumo: O presente texto deriva de uma pesquisa em andamento na qual investigo o diálogo entre o teatro documental e a história pública, campo que tem como uma de suas principais preocupações a produção de conhecimento histórico fora do ambiente acadêmico por meio de distintas linguagens e em diálogo com diferentes tipos de audiências. No final de 2018, interessado pelas temáticas abordadas no teatro documental produzido pelo Grupo Carmin da cidade do Natal/RN, realizei uma série de entrevistas com alguns de seus integrantes a fim de compreender como a história, os documentos, a ficção e o audiovisual eram articulados na criação de seus espetáculos. As falas possibilitaram a reflexão que apresento aqui em meio a um pequeno histórico das produções do grupo de Pobres de Marré (2007) à Gente de Classe, trabalho atual desenvolvido pelo grupo em processo de pré-estreia.

Palavras-chave: Grupo Carmin, teatro documental, história, documento.

 

O Grupo Carmin e o olhar sobre o cotidiano

          O Grupo Carmin nasce na cidade do Natal em 2007 a partir do encontro entre Henrique Fontes, Quitéria Kelly e Titina Medeiros e a produção de Pobres de marré (2007), primeiro espetáculo do grupo. Antes da criação do coletivo, os três já haviam trabalhado na peça Dos prazeres dos pedaços (2003), segundo Henrique, um texto sobre o Edifício Bila, na época uma construção em ruínas na cidade. A dramaturgia proposta junto às atrizes contava com histórias curtas adaptadas de textos de autores como Mário Bortolotto e Harold Pinter, e também com dois roteiros originais escritos pelo próprio Henrique, um deles sobre duas moradoras de rua, cuja pesquisa seria mais tarde retomada pelo trio como mote para o primeiro espetáculo do agora Carmin. Sobre o espetáculo, Henrique afirma

Pobres de marré [...] colocou a gente num lugar aí que eu achava interessante e apesar de não ser teatro documental, hoje eu olho pra trás e vejo assim, tem ali um olhar sobre o outro, um olhar sobre o cotidiano, tem uma coisa política em vários... às vezes até direto, quase panfletário, um ataque, no momento em que Maria [uma das personagens] ataca a plateia, ela desabafa, e tinha o elemento do cômico, esse cômico que que eu queria, esse cômico irônico, absurdo que abre caminhos pra gente comunicar coisas às vezes mais profundas. (Henrique Fontes)  

          Pobres de marré contou com uma pesquisa que envolvia a ida do grupo às ruas para observar a vida cotidiana de moradores de rua dos centros de Natal e alinhava a isso outro elemento que seria marca do grupo dali em diante, o cômico a favor da reflexão. Partindo do que trata o sociólogo Henri Bergson em seus ensaios sobre o riso enquanto crítica[1], Henrique reconhece:

[...] primeiro que você só ri do que você conhece, você só ri do que você se reconhece, talvez. E aí você tá ativando os seus canais críticos e suas reflexões, acredito muito nisso, acredito até demais e eu acho que isso é o que tem mais, esse aspecto é que tem mais chamado atenção no trabalho do grupo. (Henrique Fontes)

          Foi durante as apresentações de Pobres de marré que Henrique encontrou, já em 2010, uma frasqueira junto a um amontoado de lixo na Avenida Prudente de Morais, um trecho movimentado da cidade. O achado acompanhava uma nova investigação do grupo que buscava montar uma peça sobre a velhice. Tem início a produção de Jacy, embarque do Carmin na experimentação do teatro documental.

 

Jacy, uma iniciação

          A frasqueira encontrada então por Henrique continha uma série de objetos pessoais de uma mulher chamada Jacy que, num primeiro momento, parecia ser uma boa base para uma ficção sobre o tema da velhice que buscavam investigar. Num trecho da dramaturgia da peça, publicada no livro Década Carmin (2017), é possível verificar os primeiros insights do grupo sobre o material encontrado:

Henrique – Mostro a frasqueira, pensando que talvez Quitéria pudesse usá-la como elemento de cena, mas quando a gente foi olhar o que tinha dentro...

Quitéria – Uma ficção usando parte dos elementos reais da frasqueira.

Henrique -...Um lenço, um espelhinho, um pó compacto...

Quitéria - ...e a outra parte...

Henrique - ...pedaços de cartas, uma lista de aniversários...

Quitéria - ...a maior parte da peça, inventaríamos histórias de amores impossíveis...

Henrique - ...fotos 3x4 de uma mulher elegante...

Quitéria - ....histórias alegres ou tristes sobre esta fase da vida.

Henrique - ...uns cartões de taxistas, um cartão do supermercado Nordestão e algumas coisas curiosas...

Quitéria – Enfim, decidimos não ir atrás da história de vida daquela mulher, até porque vai saber o que a gente iria encontrar.

(GRUPO CARMIN, 2017, p.36)

          Das primeiras experimentações, de acordo com Henrique, foi criada uma cena em torno da frasqueira com cerca de 40 minutos e que ao ser apresentada em ensaios abertos causava um certo frisson por um elemento ausente na cena

[...] apresentávamos e as pessoas “ah, legal, essa coisa da velhice que você tá falando” e tal, eu dizia “isso surgiu porque eu encontrei essa frasqueira”, aí eu mostrava a frasqueira. As pessoas enlouqueciam, “como assim?”, aí nisso a gente gastava muito mais tempo conversando sobre o achado, sobre as coisas que tinham, sobre as relações que a gente fazia, sobre o que que a gente tinha acabado de fazer. Então assim, tem um erro aí, um problema. Isso aqui é muito potente. [...] isso já parava todo mundo meia hora do dia pra conversar sobre isso e a curiosidade de querer saber quem era essa mulher, né, aí eu disse “é, tem uma chave aí”. (Henrique Fontes)

          Entre as primeiras tentativas de investigar a vida de Jacy, em que o grupo convidou a poeta Iracema Macedo e o filósofo Pablo Capistrano - que seria a partir daquele momento incorporado ao Carmin no papel de dramaturgo - para elaborarem a seu modo narrativas ficcionais sobre a tal personagem, e a estreia do espetáculo em meados de 2013, é possível destacar dois pontos que culminaram na entrada do grupo na pesquisa sobre o teatro documental[2]. A primeira delas é quando, durante um hiato que ocorreu na montagem do espetáculo entre 2011 e 2012, Henrique Fontes fez duas viagens à Santiago no Chile para participar do Festival Internacional Santiago A Mil, um dos mais prestigiados eventos teatrais da América Latina. Durante a programação do festival, Henrique tem o primeiro contato com o teatro documental de Lola Arias.

          Lola Arias é uma das artistas contemporâneas mais visadas da Argentina atualmente. Seus trabalhos possuem linguagem híbrida e perpassam áreas como o teatro, a literatura, a música, a poesia, a performance e o cinema. Em 2011 o espetáculo a que Henrique assistira era Mi vida después, obra em que a autora trata das memórias de uma geração de jovens argentinos nascidos entre as décadas de 1970 e 1980 e que convivem com a herança de uma memória recente do período ditatorial argentino. A partir de documentos pessoais como fotos, cartas, fitas cassetes, roupas e relatos, um grupo de seis atores tentam em cena fazer remake[3] de cenas vividas por seu pais. Em sua proposta de teatro documentário, Arias ainda faz uso de diversas tecnologias do campo audiovisual como projeções e filmagens ao vivo. Sobre este trabalho, Giordano complementa

A peça se caracteriza pelo seu teor político e pela sua tentativa de aprofundar a atualização do tema da pesada herança da ditadura a qual ainda hoje apresenta muitas questões não esclarecidas. Por isso, a jovem diretora reuniu seis atores profissionais cujos pais tiveram uma relação direta com os efeitos da ditadura. É interessante como a peça resgata a transmissão da memória da repressão a partir de uma geração que vivenciou o regime ditatorial a partir dos rumos distintos que tiveram as vidas de seus pais em função da representação política. A encenação de Mi vida después, de Lola Arias, é uma tentativa de resgate da memória coletiva através do registro de testemunhos, histórias pessoais e vivências relatadas da vida cotidiana de cada ator. (GIORDANO, 2014, p.101)

          A reação de Henrique Fontes, enquanto espectador e artista, não poderia ser diferente

[...] eu disse “caralho, é isso que eu quero fazer, isso é muito potente!”. E ela trabalha com o humor no lugar em que eu acredito, esse lugar da ironia, do fato que é cruel... você cria ali o distanciamento, sabe, a partir de um clique que você vai, você coloca a experiência também em cena, enfim. Aí tudo, né? O uso do audiovisual enquanto dramaturgia criada junto do processo. [...] Vi, voltei, fiquei louco, falei com os meninos, a gente passou aí um ano pesquisando, e começamos a experimentar [...]. (Henrique Fontes)

          Nesse movimento investigativo, agora em aproximação com as teorias sobre o teatro documentário, o grupo iniciou estudos sobre o tema a partir de leituras de autores como Marcelo Soler e Davi Giordano e de trechos disponíveis online do espetáculo argentino. Em 2012, munido de ideias, Henrique retorna ao Chile e desta vez assiste a montagem mais recente de Lola Arias El año en que nací (2012), um desdobramento de seu trabalho anterior desta vez a partir da história e documentos pessoais da vida de onze jovens atores para abordar as memórias geracionais do período ditatorial chileno. A apresentação deixou uma forte impressão em Henrique

[...] essa foi ainda mais arrebatadora porque ela apresentou na Universidade do Chile que foi o epicentro da noite sangrenta, né? Era doido porque os meninos falavam assim, os atores, “meu pai pegou aquela rua ali do outro lado da praça” e uns se refugiaram ali naquele prédio onde a gente tava, quer dizer, é quase você estar na história, é quase de novo a história no presente, e vi também vários outros elementos que ela também evoluiu como linguagem [...]. (Henrique Fontes)

          Além dos espetáculos de Lola Arias que serviram como propulsores do Carmin em direção ao teatro documental, um outro episódio destacado por seus integrantes durante as entrevistas foi o encontro com o diretor e dramaturgo Márcio Abreu em março de 2013 durante a edição anual do FRINGE, um festival paralelo ao Festival de Teatro de Curitiba. Na ocasião, o grupo integrava a programação com a apresentação de Pobres de Marré e contava com a presença de Pedro Fiuza no registro audiovisual da viagem que, mais tarde, também seria convidado a compor o Carmin.

[...] a partir do momento que o Márcio fala “bicho, peraí, vocês têm um documento aqui que é a frasqueira, investiguem isso, e vejam, deem conta de colocar isso no espetáculo porque essa é a parte mais impressionante, e realmente de fato era, eu fui acompanhando em vários momentos eles apresentando o que era o espetáculo para as pessoas e os olhos sempre brilhavam quando se falava “olha e a gente achou essa frasqueira”, “caramba, como assim, vamos investigar o que tem dentro, quem era essa pessoa”.  Aí quando Márcio dá essa chave da investigação, de investigar aquilo, eu acho que o espetáculo ele toma esse lado documental se é que já não tinha, mas assim, com mais convicção, e é também quando Henrique usa a estética de Lola Arias dos espetáculos que ele assiste lá. (Pedro Fiuza)

          Após o retorno do grupo à Natal, em relativo curto espaço de tempo o espetáculo é finalizado e finalmente apresentado. O que vemos em cena em Jacy é uma progressão processual onde o grupo narra todo o percurso que deu origem ao espetáculo a partir do momento em que decidem optar pela forma documental. Em trecho do espetáculo, os atores apontam

Henrique – E nós até tentamos construir os personagens do velho e da velha Jacy, mas a nossa ideia de uma peça sobre a velhice havia mudado, ganhado mais vida, envelhecido.

Quitéria – Já os objetos da frasqueira, as coisas de Jacy, ficaram do mesmo jeito. Como se já tivessem ficado velhos tempo suficiente. E só depois de três anos foi que nós percebemos que eles, os objetos, eram a coisa mais importante de todo o processo. Então, depois de encontrá-la no lixo e imaginar mil possibilidades... nós decidimos reabrir a frasqueira.

(GRUPO CARMIN, 2017, p.39)

          A montagem de Jacy, muito bem recebida pelo público local, é considerada pelo grupo como sua primeira incursão na pesquisa de um teatro documental. Chamam então a atenção dois aspectos-chave para o tipo de teatro que o Carmin começava então a experimentar e a forma como os compreende: o elemento histórico e o elemento audiovisual.

          O elemento histórico na forma de uma experiência coletiva do passado, mas também da história recente, permeia todo o espetáculo Jacy. A pesquisa desenvolvida pelo grupo que buscou retraçar a biografia de Jacy a partir de documentos e relatos coletados alinhada com a reflexão dos contextos históricos de sua época permitem assemelhar o texto criado a uma espécie de micro-história[4]

Henrique - Parece que a vida de Jacy ia ser uma vida banal como a vida de Natal, uma província perdida no mapa. Mais eis que estoura a Segunda Guerra Mundial. (entra áudio/imagem/mapa projetado/cenário de guerra) O Brasil entra na guerra e Natal vira ponto estratégico de decolagem para o continente europeu. A Cidade do Sol vira o trampolim da vitória, e Natal se enche de american soldiers. Roger.

Quitéria - Logo no começo da guerra, Dona Julieta, avó-mãe de Jacy, morre de uma doença no fígado. Luiz, seu irmão-tio, ficou tão triste com a morte da mãe que decide se alistar na Força Expedicionária Brasileira. Queria morrer na guerra. Os alemães haviam invadido a Itália para recolocar Mussolini, o velho ditador fascista, no comando. Luiz foi enviado para a região de Monte Cassino, na Itália, com mais 25 mil soldados brasileiros. Muitos não voltaram, mas Luiz não só sobreviveu como voltou para Natal com honras de herói. Enquanto isso, Jacy escrevia cartas.

[...]

Henrique - Nessa época, Jacy era igualzinha a Natal: uma donzela que sonhava com um príncipe que vinha de longe, e que a revelasse para o mundo. Ainda bem que mudou, né?”

(GRUPO CARMIN, 2017, p.43-44)

          A história de Jacy se desdobra revelando-se não apenas a história da cidade do Natal, mas também a história nacional e a história global. Em parte responsável por esta percepção e suas associações está o filósofo e professor Pablo Capistrano que assina junto a Henrique Fontes as dramaturgias do grupo. Romancista na prática, Pablo topou o convite de Henrique para experimentar um tipo de escrita para o teatro em Jacy e também, como os demais membros na época de montagem do espetáculo, buscou estudar as noções do teatro documentário que até então desconhecia. Sobre a presença do elemento documental e histórico no espetáculo, é interessante como a noção do dramaturgo alinha-se à de Marcelo Soler (2015) na compreensão do documento, do fato histórico, como metáfora para a/na criação cênica. Pablo relata

[...] como eu tinha feito muitas leituras sobre história do Rio Grande do Norte [...] eu tinha lido os textos de [Câmara] Cascudo, [...] e como eu tinha até uma ligação afetiva com a história da guerra porque meu avô trabalhou na base militar durante o período da guerra e tal, e eu tinha coisas da guerra em casa, quando veio a informação de que ela tinha namorado com um militar norte-americano me deu um estalo de que [...] a gente podia trabalhar ela como uma metáfora da cidade, [...] porque é como se Natal tivesse namorado com o americano, entendeu? [...] foi a ideia que eu tive, a gente pode fazer uma sobreposição da história, digamos assim, da macro-história, da história global da cidade com a biografia dela, então a gente meio que percebeu que tinha esse ponto de confluência, de que de repente contar a história de Jacy podia também ser um ponto aonde o biográfico, do particular, se conecta com o coletivo da cidade, da guerra, dos aspectos mais gerais né, e a gente foi fazendo o quê, foi tentando fazer essas pontuações, aí foi fazendo essa costura [...]. Então aí o documental apareceu nisso, nessa ideia da conexão entre o biográfico e o histórico. (Pablo Capistrano).

          No que diz respeito ao segundo elemento, na pesquisa, experimentação e prática do audiovisual em cena nos trabalhos do Carmin, Pedro Fiuza é parte fundamental. Pedro tem um histórico de formação e atuação no campo do cinema, sendo uma figura pioneira nas discussões da cena cinematográfica natalense e seu contato com o grupo Carmin, em início apenas com Henrique Fontes, desde o princípio envolveu a prática audiovisual na forma de coberturas, registros e making of’s. Com Jacy Pedro pôde de alguma forma começar a atuar com o tipo de produção audiovisual que objetivava

[...]o teatro começou a me fornecer isso, esse trabalho com parceiros, você ter pessoas, atores, iluminadores, pessoas fazendo trilha, a parte de direção de arte e figurino [...] eu falei “não, é isso, é isso que eu quero”, independente da linguagem eu sabia que era aquilo, eu queria estar dentro de um processo criativo que eu acho que sempre permeou meus desejos desde sempre, e isso foi possível e eu também achei que ali eu estava encontrando uma forma de fazer cinema, e não só teatro, mas de fazer cinema, dentro da montagem de Jacy. (Pedro Fiuza)

          Nas primeiras fichas técnicas de Jacy, Pedro é creditado como dramaturgo audiovisual, uma função importada do cinema, mas também é ator, pois divide o espaço cênico com Henrique Fontes e Quitéria Kelly na reconstrução da vida de Jacy operando durante todo o espetáculo um retroprojetor, por onde mostra os documentos pontuados, cria desenhos e esquemas, e faz “colagens” visuais com elementos diversos; e uma câmera filmadora, realizando e projetando filmagens ao vivo do espetáculo. As formas várias como as tecnologias são manipuladas em benefício dos objetivos da cena surpreendem e ao ser questionado sobre possíveis referências, fica claro o aspecto experimental do qual o grupo lançou mão durante o processo

[...] a gente não tinha estabelecido nada, a gente não tinha estabelecido que eu ia estar em cena, a gente não sabia isso, e aí o que eu estou tentando responder quando você me pergunta de referências é que a partir do momento que a gente entra num processo e que a gente começa a ver as dificuldades de montar um espetáculo colocando o audiovisual, eu acho que em determinado momento, [...] a gente se distancia mais de procurar referências e se aproxima mais de como resolver as soluções cênicas daquilo ali, [...] aonde a gente vai colocar o projetor que é uma coisa que a gente não precisa pensar no cinema, porque no momento em que a gente tá exibindo não importa a materialidade do feixe de luz da projeção porque nada vai ficar na frente, você tem o projetor e a tela, não tem nada no meio, então como a gente vai resolver isso? Mas a gente vai descobrindo outras possibilidades também, não só os problemas, mas as outras possibilidades que eram interessantes. (Pedro Fiuza)

          O audiovisual foi um elemento base presente desde primeiras formulações do teatro documental com Erwin Piscator na Alemanha do início do século XX e não o deixou de ser até hoje nas produções da cena contemporânea, mas se por um lado o audiovisual no teatro era compreendido em seu princípio como um aporte para a comprovação verídica do objeto filmado, o teatro documental atual permite uma série de experimentações a partir desta tecnologia na relação entre o “real” e o ficcional. O próprio Carmin começa, a partir de Jacy, a questionar algumas de suas práticas

[...] a gente observou muito em Jacy, a estética da veracidade do cinema versus a estética da veracidade no teatro, porque quando você faz uma obra documental no cinema é uma coisa e no teatro é uma outra coisa. O que eu acho que é interessante no teatro é que quando você pega uma estética documental pro teatro, você ainda adiciona a camada do corpo presente e o corpo presente ele é sempre real, mesmo que você, enfim, não acredite no que tá sendo dito por ele, mas você tá vendo na sua frente o corpo de um artista que tá suando ali, de verdade, aquele suor não é de mentira [...]. (Pedro Fiuza)

          A criação do espetáculo Jacy se mostra como uma grande iniciação do grupo no campo do teatro documental. De forma livre e sem fronteiras, o grupo conseguiu experimentar, colocar em prática uma série de elementos que repercutiriam em questionamentos, de ordem estética e social, sobre aquilo que faziam. Neste ponto, o inquieto amadurecimento do Grupo Carmin em relação ao seu teatro pode ser observado na forma de seu espetáculo seguinte Por que Paris?.

 

Por que Paris?, uma indagação

          O segundo trabalho do Grupo Carmin com o teatro documental foi Por que Paris?, fruto da vontade do grupo em atuar em conjunto com a atriz e amiga Adelvane Néia e da provocação do também amigo e diretor da Aliança Francesa em Natal Laurent Camentini a respeito do centenário da escritora francesa Marguerite Duras comemorado em 2014. Em Duras, o elemento que chama a atenção do grupo é sua literatura que mescla sua autobiografia com a ficção, aquilo que se convencionou chamar no círculo literário de autoficção[5]. Em obras como O amante (1984) e, mais tarde, O amante da China do Norte (1991), a autora ficcionaliza sua própria iniciação sexual com um homem chinês rico durante o período em que viveu na Indochina Francesa, uma relação ambígua pouco favorecida por sua mãe. Sobre a relação da autora com o gênero, Márcia Letícia Gomes afirma que

A autora afirmou, certa vez, que “Não existe nada mais público que aquilo que é rigorosamente pessoal” e esta afirmativa revela uma constante na obra durassiana, qual seja, a ficcionalização de si, a narrativa do eu, autobiográfica e imbricada à ficção [...] para definir autoficção. (GOMES, 2014, p.71)

          A relação entre o biográfico e o fictício que já atravessava o grupo em Jacy é então aprofundada em Por que Paris? e a história de vida de Duras tornou-se pretexto para as autobiografias das atrizes Quitéria Kelly e Adelvane Néia que em cena transitam entre a representação da possível relação entre a escritora francesa e sua mãe, e as narrativas de si próprias enquanto mulheres e atrizes. A dramaturgia, escrita à três mãos por Henrique Fontes, Pablo Capistrano e o autor convidado James Edward Bailey, apresentou logo de início algumas dificuldades ao grupo

A gente tinha já uma situação que a gente tinha uma biografia, uma história já pronta dela e completa, [...] Jacy a gente que preencher as lacunas com a imaginação porque haviam lacunas na biografia de Jacy que a gente não conseguiu avançar na pesquisa, então a gente se deu a liberdade de algumas lacunas na biografia de Jacy a gente avançar com a imaginação. Com Marguerite Duras isso já era mais complicado porque a biografia dela, bem ou mal, já era bastante conhecida [...]então a gente pensou num recorte e o recorte tinha sido justamente o relacionamento dela com a mãe, essa era a ideia fundamental porque isso era um elemento que a gente percebeu no teor da peça, no início a gente pensou em trabalhar a relação dela com o amante chinês que era o texto, o famoso texto dela, mas a gente começou a perceber que o texto não era sobre o amante, era sobre a mãe, e como você tinha Quitéria e Adel[vane] no palco, [...] a gente queira trazer a vida do ator pra confluir com a vida da Marguerite né, então aí era uma coisa diferente de Jacy, porque em Jacy a vida real era a de Jacy, ali a vida real... a vida vivida era de uma personagem da literatura mundial e das atrizes. (Pablo Capistrano)

          No decorrer da peça, no entanto, outras indagações surgiram, sobretudo a respeito da própria forma como o grupo fazia teatro e como lidava com o aspecto documental, histórico e político. Em dado momento do texto, por exemplo, Quitéria, Adelvane e Henrique, acompanhados pelo registro audiovisual de Pedro, deixam o palco em direção ao camarim. Numa espécie de metalinguagem teatral que questiona o uso do elemento audiovisual em cena, o telão posicionado no palco continuava a exibir o que era filmado

Henrique - (entrando no camarim) Massa, Qui. É por aí. Adorei a Natália Lage, Adelva. Na próxima vez, pode até segurar mais a gargalhada e fumar mais louca.

Adelvane - (já fora do camarim) Ah, legal! Vou esticar mais o tempo.

Quitéria - (de dentro do banheiro) É... mas tem que ver esse tempo também, né? Tô achando meio lento esse começo...

Henrique - Eu acho também, mas é que as pessoas tão entrando na história de Marguerite.

Quitéria - Que nada, Henrique, o povo hoje tem outro timing. Eles dão conta de quatro, cinco coisas ao mesmo tempo.

Henrique - Eu não sei se a gente dá conta. E tem toda essa informação audiovisual...

Quitéria - (falando saindo) Que eu acho muito engessado, mas Pedro fica aí inventando...

Pedro - (deixando a câmera em cima da bancada e enquadrando ele e Henrique/Pedro fala com Quitéria, que não está em quadro e não responde) Aí é foda, né, Quitéria? É um processo ou era para eu ir lá, jogar as imagens e pronto?

Henrique - Na verdade, isso eu nem tô achando ruim. O que me preocupa é que o povo olha mais pra tela do para a cena.

Pedro - Mas a tela também é cena.

Henrique - Eu sei, só que competir com a tela é foda, né? O ator pode se matar que o povo só olha pra tela.

Pedro - Então, quando usar a tela, tira as atrizes da cena.

Henrique - Aí o povo vai ficar vendo a peça pela tela? Será que funciona?

Pedro - A gente experimenta.

(GRUPO CARMIN, 2017, p.66)

          Esses questionamentos demonstram forte preocupação com o uso do audiovisual em cena, mas também com a relação estabelecida entre a tecnologia e o que é comunicado ao espectador. Esta relação diz respeito também ao conteúdo histórico político de sua prática teatral, a partir do qual o Grupo Carmin passa a refletir também sobre a urgência do tempo presente em meio aos processos de construção dramatúrgica. Pablo Capistrano explica

[...] no processo a gente começou a ser atropelado por acontecimentos coletivos da contemporaneidade porque enquanto a gente tava discutindo o tema, enquanto a gente se reunia na casa de Quitéria pra pensar a dramaturgia e pra ver como é que a gente ia trazer os elementos da vida das atrizes, pontuar conexões com a vida de Marguerite e tentar colocar isso em cena, ocorreu o atentado do Charlie Hebdo [...] e assim, a gente tava discutindo Paris, a peça tinha a ver com Paris, Quitéria tinha morado em Paris, [...] quer dizer, então aquilo de repente entrou na nossa discussão, e como tinha sido um atentado contra artistas, a gente sentiu muito o impacto daquele momento né, então sentiu-se a necessidade de trazer aquele elemento pra dentro da peça também [...]

          O atentado ocorrido em Paris em janeiro de 2015, poucos meses antes da estreia do espetáculo em julho daquele ano, é inserido na peça como um rasgo, um rompimento, uma irrupção do real[6]. A cena, ou “movimento” como chama o grupo, inicia com o som de tiros emitidos de um vídeo aberto no YouTube. Pedro manipula o computador, acessando em seguida o Google, o Google Tradutor e novamente o YouTube onde um vídeo amador realizado por uma testemunha registrou o confronto entre terroristas e policiais na capital francesa. O diálogo que tem sequência após o vídeo coloca em xeque todo o espetáculo até ali promovendo o distanciamento completo do público

Adelvane – Pausa. E se eu dissesse que chamaram Marguerite Duras de terrorista quando ela assinou um manifesto contra a guerra da Argélia nos anos sessenta?

Quitéria – Pausa. E se eu dissesse que Duras escreveu um livro fazendo apologia à França como um império colonial?

Adelvane – Pausa. E se eu dissesse que depois ela mudou de ideia?

Quitéria – Pausa. E se eu dissesse que terrorismo é isso aqui: um bando de gente reunida querendo uma vida possível? Porque tá impossível!

Adelvane – Pausa. E se eu dissesse que a minha Paris me alimenta e me condena todos os dias. Morro de orgulho de ser artista e às vezes me entristeço também.

Quitéria – Pausa. E se eu dissesse que a minha Paris está aqui todo dia. No calor insuportável da sala de ensaio e no ar-condicionado gelado da sala de apresentação.

Henrique – Pausa. E se eu dissesse que, enquanto um grupo de artistas-ativistas de Paris, reunidos para apresentar uma nova obra em Paris, nesse momento, pela porta entrassem dois homens com fuzis AK-47 comprados lá mesmo em Paris, chamassem os artistas pelo nome e começassem a atirar neles?

[...]

Quitéria – E se eu dissesse que isso aqui não é uma peça sobre Paris?

Henrique – E se eu dissesse que isso aqui não é teatro?

(GRUPO CARMIN, 2017, p.73-74)

          O espetáculo, que somado às questões citadas até aqui também trazia reflexões sobre a mutabilidade da cidade do Natal, tornou-se, em seu conjunto, uma obra considerada pelo Grupo Carmin como possivelmente hermética. Por que Paris? teve apenas seis apresentações e nasceu em um período movimentado para o grupo, pois foi durante o processo de criação do espetáculo que Jacy passava a ser apresentado e reconhecido em outros estados. Sobre esses entraves, Henrique e Pablo comentam

[...] eu acho que a gente não conseguiu, na minha leitura, fazendo uma análise crítica, [...] depurar a tempo por causa dos atropelos de Jacy e tal, a gente não conseguiu depurar pra dar uma consistência narrativa, então ali ficou a camada da personagem biográfica, da vida das atrizes, do elemento político externo do mundo contemporâneo que nos afetava, e uma discussão que a gente já tinha no grupo desde Jacy e que foi aprofundado e talvez radicalizado em Por que Paris? que é a discussão sobre o próprio processo de teatro, que isso é um elemento que a gente puxa muito em Por que Paris?, a gente queria também colocar o próprio processo do teatro, ou seja, era uma discussão também metateatral [...] (Pablo Capistrano)

A sensação que dava é que ela não se relacionou com o público, é engraçado, mesmo assim. Eu acho uma peça muito legal, até como material escrito eu acho ela legal. Mas eu não sei se ela ecoou tanto. Eu acho que as pessoas estão mais afim, é isso, [...] o que tem mais seduzido as pessoas é você apresentar dados históricos que elas não tenham acesso, coisas que elas não olharam daquela forma, por mais que elas saibam daquela história, “nunca pensei sobre isso”. Essa coisa da árvore genealógica do poder no Rio Grande do Norte [presente em Jacy], as pessoas sabem, tudo aquilo é sabido, e as pessoas não botaram aquilo junto pra pensar “putz, é assim mesmo né? Caralho, olha há quanto tempo isso tá rolando”.  (Henrique Fontes)

          Essa efemeridade da obra, no entanto, marcou um período de amadurecimento interno do grupo que afetaria o seu trabalho dali em diante. Durante a conversa com Pablo Capistrano, o dramaturgo afirmou mesmo que Por que Paris? foi uma etapa necessária para o grupo no caminho entre a experimentação presente em Jacy e as escolhas presentes no espetáculo seguinte A invenção do Nordeste.

 

A invenção do Nordeste, um exercício

          Uma palavra é recorrente nas falas dos entrevistados à respeito do mote que levou a criação do espetáculo A invenção do Nordeste: incômodo. Desde 2014, após os resultados das eleições que levaram a presidenta Dilma Rousseff ao poder e a uma espécie de retaliação xenofóbica de parte da população brasileira contra os nordestinos cujo número massivo de votos foi essencial para o resultado da disputa, a atriz Quitéria Kelly se sentia instigada pelo tema. Ao mesmo tempo, o grupo sentia os reflexos limitadores da compreensão de seu trabalho enquanto viajavam com o espetáculo Jacy pelo país dentro do circuito Palco Giratório promovido pelo SESC. Alguns comentários do público costumavam pairar sobre o teatro que faziam não parecer com um “teatro nordestino”. O incômodo é somado ao contato de Quitéria com uma entrevista do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. sobre sua obra, na época em processo de tradução para o inglês, lida na revista potiguar Preá. A ideia de unir o incômodo e o estudo presente na obra do historiador foi então apresentada ao restante do grupo que comprou a ideia

[...] ela [Quitéria Kelly] ficou muito curiosa e chegou no livro, começou a ler [...] e nos trouxe o desejo de a gente trabalhar a partir da obra A Invenção do Nordeste e talvez até preservar esse nome. Aí a gente foi estudar o livro e foi assim, super impactante, e aí como Durval era uma pessoa próxima, a gente tinha contato com ele, acessamos ele e quando a gente sentou pra conversar a primeira vez, aí pronto, aí é que enlouquecemos, querendo muito fazer a partir daqueles dados todos e de todos os apontamentos que ele faz [...]. (Henrique Fontes)

          O espetáculo, que de longe é aquele que trabalha mais elementos históricos na construção dramatúrgica e, portanto, faz uso de maior e mais variados tipos de documentos em cena, recorre novamente à ficção a serviço do fato. Henrique, no papel de um preparador de elenco para o cinema, divide a cena com Robson Medeiros e Mateus Cardoso que fazem as vezes de dois atores que disputam o papel de um personagem nordestino. A busca pelos moldes desse tipo nordestino procurado pela empresa contratante coloca em jogo a noção da identidade nordestina que é destrinchada pela biografia dos atores e também pela análise histórica presente na obra de Albuquerque Jr., originalmente sua tese de doutorado defendida em 1991 e mais tarde publicada no livro A invenção do Nordeste e outras artes (1999). Sobre as dificuldades e o novo desafio imposto ao grupo, como a criação cênica a partir de uma pesquisa histórica já consolidada, Pablo e Pedro comentam

A gente tinha um desafio diferente porque a pesquisa documental que nos apresentava a história já tava feita por ele, ou seja, ele tinha construído já isso no texto, aquilo é a pesquisa de doutorado dele, [...] a gente não precisava ir em fontes porque tava tudo lá, só que, por outro lado, a peça era uma tese de doutorado, como é que você vai adaptar uma tese de doutorado? Quer dizer, é muito complicado, como é que você vai conseguir traduzir uma tese de doutorado e fazer com que ela se transforme em algo interessante no palco de teatro? Daí surgiu a ideia da ficção. A ficção aí, ela entra como um elemento que permite que o documental, ou seja, que a informação, digamos da vida, que é a informação sobre a construção do Nordeste, a ideia do Nordeste, ela entre. [...] então ele [Henrique Fontes] teve a sacação de chamar Robson e Mateus, porque ele percebeu muito bem a dicotomia sertão e litoral e a própria dinâmica pessoal dos dois [...] e a própria personalidade deles, então essa dicotomia casou muito bem na hora da construção do texto e aí o nosso esforço foi o quê? Foi tentar mapear o texto de Durval pra pegar pontos significativos [...] e aí jogar em cima daquela dinâmica narrativa e tentar construir a partir do palco a base do texto, da fala, da discussão dos atores, dinâmica, pra poder dar suporte a isso. (Pablo Capistrano)

[...] na Invenção eu acho que isso foi mais complicado né, como que a gente adapta um texto acadêmico, científico que [...] não tem a necessidade de escrever um texto teatral e dramatúrgico, narrativo, um romance, uma prosa, enfim. E aí eu acho que essa foi uma das dificuldades, tipo assim, “tá, peraí, a gente vai falar nessa cena do cabra macho”, [...] nesse sentido, a gente elegeu os temas né, deixou vários de fora, deixou uns dentro, dos que a gente deixou dentro, como é que a gente pega o que Durval falou e a gente transpõe pra uma cena? (Pedro Fiuza)

          O contato com o historiador foi fundamental para vencer algumas das dificuldades encontradas pelo grupo durante a construção dramatúrgica do espetáculo. Os encontros com o historiador em torno do processo criativo do Carmin tomaram a forma de consultorias e não à toa o autor é creditado na ficha técnica de A invenção do Nordeste como consultor intelectual. Esse processo consistiu em quatro encontros do grupo com o historiador, momento em que ficou acordado que o trabalho do Carmin não objetivava uma adaptação ipsis litteris do livro, mas que se buscaria ali inspiração para dar conta de algumas inquietações do grupo, havendo total liberdade do mesmo na criação dramatúrgica e cênica, cuja forma seria apresentada ao historiador no seu último encontro. Sobre a parceria com o historiador, Mateus Cardoso e Henrique Fontes destacam

[...] o fato de [...] a gente ter tido contato com Durval pra mim foi como... me legitimou como pesquisador junto com ele, [...] porque quando ele entrou no processo e foi nos explicando “ó, vocês tem que ter cuidado porque a temática que vocês querem trabalhar é essa” [...] ele foi nos ajudando a separar o que era terapia do que era história mesmo, o que em nós é coletivo, o que em nós reverbera essa história com H maiúsculo. (Mateus Cardoso)

[...] a gente tava com muito medo quando a gente chamou ele pro primeiro ensaio aberto, mas ele adorou e disse “senti falta disso” e os apontamentos dele eram muito pertinentes e a gente disse “é, a gente podia englobar”, e já foi dando ideia “naquela cena porque você não inclui isso e tal”, e a gente “é, que massa”, foi um diálogo muito assim. (Henrique Fontes)

          O trabalho em conjunto entre o Grupo Carmin e o historiador funcionou a favor da criação espetacular. Enquanto espetáculo baseado no livro, A invenção do Nordeste pode ser visto como uma forma de expansão do conhecimento histórico ali contido para outros públicos, outras audiências, sob uma nova linguagem, não mais a historiográfica, mas a espetacular. O grupo e o autor também estiveram juntos durante algumas apresentações da peça, promovendo rodas de discussão pós-espetáculo.

          O trabalho, que venceria a seguir alguns dos mais importantes prêmios do teatro brasileiro como o Shell e o Cesgranrio, lançou o grupo à visibilidade nacional e assentou as principais características do fazer teatral do Carmin. O grupo passou a estabelecer - e Mateus Cardoso comenta em nossa conversa que Quitéria Kelly diz com frequência que os artistas são as “antenas do mundo” – os espaços críticos em que o teatro documental que produz busca meios para criar diálogos com o seu espectador. Em A invenção do Nordeste, por exemplo, é interessante destacar como é expandida a noção do grupo sobre o que é o documento. Para além dos suportes comuns como as imagens, os vídeos e os objetos, o próprio corpo é interpretado pelo grupo como documento manipulado na cena. Essa concepção parte de outra referência do grupo que também diz respeito às práticas contemporâneas do teatro documental, o biodrama. Este conceito é cunhado pela diretora e curadora argentina Vivi Tellas em 2002, quando à frente do Teatro Sarmiento em Buenos Aires cria o projeto Ciclo Biodrama, convidando diretores e dramaturgos argentinos a encenar biografias de pessoas vivas. O projeto durou até 2009 e, coincidentemente ou não, teve como uma de suas participantes a diretora Lola Arias que ali produziu o espetáculo Mi vida después visto em 2011 por Henrique Fontes. Sobre o biodrama, Giordano (2014) destaca

O Biodrama tem como material de inspiração a biografia de uma pessoa viva. Trabalha-se a ideia de que cada pessoa é e tem em si própria um arquivo, uma reserva de experiências, saberes, textos e principalmente imagens. Todas as situações biográficas quando colocadas em cena ganham um coeficiente de teatralidade, porque tudo o que é colocado acima do palco (ou em qualquer espaço de representação) se transforma automaticamente em signo teatral. [...] Estar em contato com o biodrama é experimentar uma tensão dos limites entre a vida e a arte.” (p.3)

          Este uso do corpo enquanto documento cênico também é utilizado pelo grupo em Jacy, pontualmente entre as colocações de Quitéria e Henrique sobre suas vidas, e em Por que Paris?, no qual a autobiografia das atrizes mesclavam-se à de Marguerite Duras e o próprio corpo se colocava como manifesto; mas em A invenção do Nordeste, essa noção se amplia e Robson e Mateus se cristalizam enquanto experimentos da tese defendida pelo grupo em cena e pela obra do historiador. O último trecho de A invenção do Nordeste deflagra ao mesmo tempo um estandarte do corpo-documento e uma crítica à história

Mateus - Eu sempre achei que eu queria tá aqui, nesta construção. Nesta luz, olhando para vocês. Eu achava que o fato de eu ter nascido onde eu nasci não devia definir o que eu ia ser. Eu sempre me imaginei diferente. Em outro lugar. Aí eu chego neste “outro lugar” e eu percebo que o problema não era o lugar. O problema era o que eu achava que eu devia ser. Porque os outros têm sempre muitas certezas, muitas verdades. Eles sempre querem que a gente seja o que a gente “nasceu pra ser”, no lugar que a gente “nasceu pra ficar”. Eu acreditei nisso por muito tempo. Por muito tempo o Nordeste era eu. Eu carregava comigo uma região. Você sabe o que é você carregar uma região no corpo? Na fala? Quem botou essa região em mim? Será que fui eu mesmo? Hoje, eu não tenho certezas. Elas foram queimadas pela história. Reduzidas a cinzas. Hoje eu sei que o dilema não é "ser ou não ser”. É “ser e não ser”. Viver “entre”, viver “quase”. Andar nas frestas, nas fronteiras. Cruzar os limites, deixar a poeira subir e, mesmo com a vista embaçada, olhar pra frente e continuar.

 

Gente de Classe, uma projeção

         Ainda no finalzinho de 2018 pude acompanhar um dos primeiros laboratórios para a nova montagem do Carmin. Na época sem nome definitivo, o grupo buscava seu mote criativo em outro trabalho de não ficção, desta vez nas análises das elites brasileiras e das engrenagens políticas realizadas pelo sociólogo natalense Jessé Souza em obras como A elite do atraso (2017) e A classe média no espelho (2018). Num vislumbre um tanto assustador do futuro pandêmico a caminho, direção e dramaturgia já imaginavam naquele momento uma relação familiar mediada por câmeras e pelo distanciamento para expressar alguns dos valores superficiais da classe média brasileira. Entre as escolhas que marcariam o novo trabalho estava a estreia de Pedro Fiuza na direção, um olhar sobre a cena que já antecipava a maior incorporação da linguagem audiovisual como elemento cênico. Essa combinação seria fundamental para os rumos que o espetáculo em produção tomaria durante o período pandêmico vivenciado em 2020. Entre junho e outubro do ano em questão o Carmin estreou os fragmentos cênicos Desfocados e Transparentes a partir do espetáculo agora sim nomeado como Gente de classe. Nas cenas que misturam um humor sardônico a uma distopia asséptica, Quitéria Kelly, Mateus Cardoso e Robson Medeiros protagonizam uma família isolada em seu condomínio enquanto é assolada por uma suposta pandemia e pelos principais receios da classe média brasileira que ameaçam o seu status e seus “valores”.

          Apesar do pouco visto até agora sobre Gente de classe, este trabalho parece consolidar a pesquisa do grupo sobre aquilo que tem chamado de dramaturgia audiovisual no teatro, uma espécie de linguagem híbrida que tem sido ensaiada e experimentada pelo Carmin já nos espetáculos anteriores e apresentada também no formato de oficinas ministradas pelo grupo. Também a ficção parece surgir novamente a favor do comentário social e da tese sustentada pelo grupo em meio ao conturbado contexto histórico e político que vivemos que, de uma forma ou de outra, se dispõem a ser documentado pelo olhar da dramaturgia e da direção. A ver o que o Carmin reserva para as incertezas do futuro.

 

BIBLIOGRAFIA:

BURKE, Peter (org.). A escrita e a história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.

CARLSON, Marvin. Expansão do teatro moderno rumo à realidade. Art Research Journal, v.3, n.1, janjun, 2016, p.1-19.

FERNANDES, Silvia. Experiências do real no teatro. Revista Sala Preta. São Paulo, v.13, n.2, 2013, p.3-13.

GIORDANO, Davi. Teatro documentário brasileiro e argentino: o biodrama como a busca pela teatralidade do comum. São Paulo: Armazém Digital, 2014.

GOMES, Maria Letícia. Autoficção na obra O Amante de Marguerite Duras. Revista Eletrônica Igarapé, nº 03, Maio de 2014.

GRUPO CARMIN. Década Carmin. Natal: Fortunella Casa Editrice, 2017.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramatico. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2011.

SANTOS, Ivan de Melo. História em cartaz: o teatro documental do Grupo Carmin, um exercício de história pública. Monografia de bacharelado em História. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2018.

SOLER, Marcelo. O campo do teatro documentário: morada possível de experiências artístico-pedagógicas. Tese (Doutorado em Teatro e Educação). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

 

Foto da capa: Jacy, do Grupo Carmin. Foto: Daniel Torres


[1] Estes textos de Bergson são encontrados na coletânea O riso: ensaios sobre o significado do cômico. São Paulo: EDIPRO, 2018.

[2] É chamado teatro documental, segundo Patrice Pavis (2011) todo trabalho de linguagem espetacular que envolve em sua produção a construção, a pesquisa, a seleção, a manipulação e/ou a edição de documentos diversos para a/na cena. São tipos de tatro documental o biodrama, o teatro autobiográfico, o teatro documentário, o verbatim, entre outros.

[3] Segundo Davi Giordano, o termo remake é emprestado do cinema por Lola Arias para afastar ou romper com a ideia de representação dramática, uma das muitas formas como os artistas contemporâneos têm interpretado os elementos do real na cena ou na performance (GIORDANO, 2014).

[4] Considerada por Peter Burke como uma das práticas da nova história, a micro-história, segundo Giovanni Levi, tem como pressuposto a redução da escala da pesquisa historiográfica afim de observar e/ou melhor compreender alguns aspectos desconsiderados ou antes não notados pela “macro-história”, podendo a biografia de indivíduos ser um objeto de estudo, tomando “o particular como seu ponto de partida (um particular que com frequência é altamente específico e individual, e seria impossível descrever como um caso típico) e prossegue, identificando seu significado à luz de seu próprio contexto específico (BURKE, 1992, p.154).

[5] Autoficção é um conceito cunhado pelo escritor Serge Doubrovsky para definir seu estilo na escrita do romance Fils (1977) onde une, paradoxalmente, elementos da escrita autobiográfica e da ficção. Tornou-se comum na crítica literária, possibilitando pesquisadores como a própria Márcia Letícia Gomes aplicar a lente sobre outras obras.

[6] Autores como Hans-Thies Lehmann (2007) apontam práticas do teatro pós-dramático que flertam com o elemento extra-cênico a partir de irrupções do real em cena. Autores como Marvin Carlson (2016), por outro lado, não veem estas irrupções apenas como uma das técnicas possíveis no teatro contemporâneo, mas como um novo paradigma que se distancia da mímese tradicional do teatro moderno.

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