"Maria Firmina dos Reis, uma voz além do tempo": Diálogos entre Modos de Produção do Núcleo Atmosfera e Grupo Xama Teatr

Por Júlia Martins
06/02/2021

Resumo: O presente artigo busca analisar o espetáculo Maria Firmina dos Reis, uma voz além do tempo, a partir da investigação sobre os modos de produção dos grupos maranhenses Núcleo Atmosfera de Dança-Teatro e Grupo Xama Teatro, tendo como ponto de partida a síntese das experiências contidas num longo processo criativo da peça e do encontro entre duas mulheres negras: a atriz-pesquisadora Júlia Martins e a escritora Maria Firmina dos Reis.

Palavras-chaves: modos de produção, atriz-pesquisadora, Maria Firmina dos Reis, processo criativo.

 

INTRODUÇÃO

Para realizarmos esse estudo faz-se necessário analisarmos o encontro entre duas mulheres negras maranhenses: a atriz Júlia Martins e a escritora Maria Firmina dos Reis, onde narrativas sobre a história da escritora são o alicerce que sustenta as subjetividades da atriz-pesquisadora. Logo, partiremos da autobiografia e biografia dessas mulheres.

Onde a atriz-pesquisadora traz o seguinte relato autobiográfico:

              “Me chamo Ana Júlia Martins Ferreira, ou simplesmente Júlia Martins. Nasci em São Luís do Maranhão no dia 08 de janeiro de 1993. Filha de mãe solteira, criada em uma casa de mulheres, estudei a vida toda em escola pública. O gosto pela arte de atuar despertou muito cedo, aos sete anos. Olhava as atrizes nas novelas, e interpretava tudo aquilo, brincava falando sozinha, mas não se sentia representada nas telas, na verdade as poucas atrizes negras presentes na TV estavam em papéis bem estereotipados como as empregadas domésticas, mas isso é assunto para outra pesquisa. Iniciei meus estudos no teatro aos quinze anos em um projeto social, aos dezoito iniciava meus estudos no Centro de Artes Cênicas do Maranhão (CACEM). Logo comecei a integrar grupos artísticos em São Luís como o Núcleo Atmosfera de Dança-Teatro e a Casa do Sol Cia de Artes”.

Sobre a vida da escritora Maria Firmina dos Reis, sabemos que:

              “Nasceu em São Luís no estado do Maranhão em 11 de março de 1822. Filha de Leonor Felipa dos Reis e João Pedro[1] Esteves, mudou-se para a Vila de São José de Guimarães, município do Maranhão aos cincos anos de idade, sendo criada por uma tia materna”. 

Maria Firmina dos Reis nasceu destinada a ocupar um espaço social muito pouco acolhedor: como mulher negra, bastarda e de família de poucas posses, ela estava destinada ao silêncio. Contra todas as expectativas, invadiu áreas altamente excludentes da sociedade patriarcal escravista maranhense, sobretudo marcou presença no ambiente de São Luís, onde já vigorava, no meio do século, a crença de ser essa uma Atenas brasileira, um bastião dos valores europeizados em pleno mundo tropical. (RESENDE, 2007).

Firmina era muito além do seu tempo. Foi professora, escritora, folclorista e compositora, considerada como a primeira romancista afro-brasileira da história ao escrever o romance abolicionista Úrsula em 1859. Maria Firmina dedicou os seus noventa e cinco anos de vida à literatura, à escrita, à educação, à luta contra a escravidão e ao reconhecimento da mulher perante a sociedade em que vivia.

Maria Firmina dos Reis fundou a primeira escola mista e gratuita do Maranhão em Maçaricó, lugarejo do município de Guimarães. A iniciativa de Firmina causou grande impacto às autoridades, que a forçaram a fechar a escola dois anos depois de sua abertura. Na imprensa, Firmina teve grande atuação, escrevendo para grandes jornais da época, a citar: A Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense, O Domingo, O País, Pacotilha, O Federalista, entre outros. Mas mesmo sendo recebida por intelectuais e pela imprensa maranhense com grande estima, Maria Firmina dos Reis foi esquecida por décadas por aqueles que a aclamaram, vindo falecer no dia 11 de novembro de 1917, pobre e cega.

A partir desse encontro, a atriz-pesquisadora Júlia Martins, considera que Maria Firmina dos Reis e toda a sua obra encorajam a luta, contra o preconceito imposto às mulheres, principalmente negras, com muita garra e determinação. Firmina é atualíssima para a sociedade brasileira do século XXI. Logo, precisamos dar voz à poesia de Maria Firmina; precisamos que seus escritos e sua biografia cheguem às escolas, as periferias e em todos os lugares do Brasil.

O INÍCIO DO PROCESSO CRIATIVO

A partir de treinamentos corporais conduzidos pelo ator e diretor Urias de Oliveira na Casa do Sol Cia de Artes em 2016, a atriz-pesquisadora colaborou na criação de uma performance intitulada Procissão dos Ossos, baseada em uma lenda urbana da capital maranhense conhecida como Procissão das Almas.

A peça apresentava a lenda urbana composta por personagens que fazem parte da história da velha São Luís, dentre eles a personagem Maria da Conceição, ou popularmente conhecida como Mariquinhas Devassa.

Como exercício foi proposto pesquisar poesias que transmitissem à essência dos personagens, no caso de Mariquinhas Devassa, que apesar de sua condição social, era uma jovem sonhadora que amava e cuja vida lhe foi tirada de forma cruel. Encontramos na poesia de Maria Firmina dos Reis a essência da história de Mariquinhas Devassa. 

Aqui na solidão minh'alma dorme;

Que letargo profundo!... Se no leito,

As horas mortas me revolvo em dores,

Nem ela acorda, nem me alenta o peito.

No matutino albor a nívea garça

Lá vai tão branca doudejando errante;

E o vento geme merencório - além

Como chorosa, abandonada amante.

E lá se arqueia em ondulação fagueira

O brando leque do gentil palmar;

E lá nas ribas pedregosas, ermas,

De noite - a onda vem de dor chorar.

Mas, eu não choro, lhe escutando o choro;

Nem sinto a brisa, que na praia corre:

Neste marasmo, neste lento sono,

Não tenho pena; - mas, meu peito morre.

Que displicência! Não desperta um'hora!

Já não tem sonhos, nem já sofre dor...

Quem poderia despertá-lo agora?

Somente um ai que revelasse - amor.

(REIS, 1871, p. 177-178).

Esta poesia impulsionou nas construções de pesquisas e exercícios cênicos, onde a intérprete-criadora passou a apresentá-los em eventos locais, a citar a I Edição do Godôvirá Festival de Cenas Curtas[2] em 2016, sendo premiada como Melhor Cena Curta pelo Júri Popular do Festival.

A cena apresentada era um fragmento do romance Úrsula, onde a personagem Suzana, uma mulher negra escravizada, relata como chegou ao Brasil e as dificuldades enfrentadas durante todo o caminho.

A primeira parte do processo criativo foi encerrada após essa apresentação, porém o processo de pesquisa continuou a instigar a elaboração de novos olhares dos processos descritos a seguir.

A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO

Dando continuidade ao processo em 2019 foram iniciadas novas etapas na pesquisa, desta vez, com saltos mais amadurecidos, potencializando o material criativo já experimentado, alterando sua estética e dramaturgia. O diretor do Núcleo Atmosfera de Dança-Teatro, Leônidas Portella, foi convidado para participar desta nova fase e imprimir nela os seus procedimentos de criação.

Logo, alguns métodos foram utilizados por ele na busca das singularidades da atriz-pesquisadora. Podemos citar o método da pedagogia da pergunta, bastante utilizado nos processos criativos do Wuppertal Tanztheater, explorado na dança-teatro pela coreógrafa e diretora alemã Pina Bausch, expoente mundial dessa linguagem.

O método baseia-se no desenho coreográfico a partir de perguntas, as respostas são trazidas através de improvisações. Estas improvisações estão sempre ligadas ao subtexto que a artista-pesquisadora traz em seu corpo a partir do seu olhar sobre Maria Firmina dos Reis. Para melhor visualizarmos esse procedimento, segue um quadro contendo as seguintes perguntas trazidas pelo diretor:

Pergunta 1: Como você sente Maria Firmina dos Reis?

Pergunta 2: O que você e ela tem em comum?

Pergunta 3: Como você imagina o lugar onde ela vivia?

Pergunta 4: Onde você se encontra em suas poesias?

Pergunta 5: Pra onde você quer ir com essa história?

Pergunta 6: O que é ser uma mulher negra nos dias atuais?

Pergunta 7: Você pode contar sobre algum bullying cometido por amigos na escola?

Pergunta 8: O que Maria Firmina dos Reis falaria da educação brasileira de hoje se ela retornasse do passado?

Pergunta 9: Quem é Júlia Martins?

Pergunta 10: O que Maria Firmina dos Reis falaria a você se a conhecesse?

Essas foram algumas das inúmeras perguntas feitas durante o processo, elas foram acionadoras de movimentos corporais. Cada pergunta conduzia a atriz-pesquisadora à elaboração de respostas, essas respostas eram trazidas principalmente através de ações. A fase inicial do processo foi marcada por um longo período de experimentações dessas ações, num constante jogo de improvisações que eram repetidas até ganhar um significado social e estético, até que o corpo se dilatasse e se posicionasse politicamente, emocionalmente e psicologicamente.

Nas obras de Bausch, o futuro não repete e nem se afasta do passado, mas segue “trabalhando retroativamente através” dele, transformando- o ao repeti-lo. O conceito de “trabalhando através” foi inicialmente colocado por Sigmund Freud, em contraste aos de “repetição” e de “lembranças”. (FERNANDES, 2007, pg. 127).

A repetição é um método bastante utilizado nos processos criativos do Wuppertal Tanztheater, através dela os atores-bailarinos parecem desconstruir padrões estéticos, ela desarranja esses padrões e os transformam em significado social, são repetidas ações, falas, gestos, sons. Nos processos criativos de Maria Firmina dos Reis, uma voz além do tempo, a repetição é trazida como uma forma de demarcar uma ideia de resistência, sendo no corpo da atriz-pesquisadora, a resistência da mulher negra na sociedade, a residência do corpo negro, a resistência da memória de Maria Firmina dos Reis, a resistência à escravidão. Cada ação repetida durante o processo criativo conduz a uma pré-expressividade que visa reforçar a demonstração dos anseios e das emoções traduzidas através do corpo a cada ensaio.

As respostas trazidas através da repetição das ações conduziam a atriz- pesquisadora na elaboração do desenho do espaço cênico. Esse lugar de experimentação de jogos foi subdividido em diferentes espaços que definiu o trajeto a ser percorrido pela intérprete.

              Os seguintes espaços foram encontrados como mostra a imagem abaixo:

Figura 1 – Esboço do espaço cênico.

Fonte: Júlia Martins.

Ao centro a atriz representando o tempo presente, eu sou;

À esquerda alta, a poesia de Maria Firmina (eu lírico atemporal), eu vejo;

À direita alta, a personagem Maria Firmina dos Reis, tempo presente- eu sei;

À esquerda baixa, a personagem do romance Úrsula, tempo passado- eu sentir;

À direita baixa, a personagem da poesia, eu lírico da intérprete, atemporal, eu sinto.

            A fusão dos processos citados anteriormente corrobora na tessitura da dramaturgia do espetáculo a ser descrita a partir das seguintes etapas:

Etapa 1- A construção das matrizes corpóreas de cada personagem.

Etapa 2- Criação da dramaturgia do texto.

Etapa 3- Criação da cenografia.

Etapa 4- Criação do figurino.

Etapa 5- Criação da iluminação.

Etapa 6- Criação da trilha sonora.

Etapa 7- Criação da identidade visual.

Etapa 8- Produção e execução do espetáculo.

Para sintetizar este estudo, faz- se necessário um recorte da primeira e segunda etapas.

Na primeira etapa, para a construção das matrizes corpóreas de cada personagem, a atriz-pesquisadora mergulhou em estudos e práticas voltadas a matriz de danças afro-brasileiras, como o Tambor de Crioula[1], Bumba Meu Boi[2] e a dança dos Orixás.

Para participar desta etapa, foi convidada a dançarina Shamach Pacheco para compor a equipe como preparadora corporal, onde a mesma selecionou movimentos a partir do material cênico produzido anteriormente, resultando no seguinte roteiro conectado as personagens.

Matriz 1 – A escrava: experimentações a partir do Tambor de Crioula que reforça a resistência da memória trazida no corpo da mulher negra escravizada. Ações elaboradas com movimentos súbitos, aterrados, dinâmicos.

Matriz 2 – A preta velha: experimentações a partir do Bumba Meu Boi que imprime o traço ancestral de Maria Firmina dos Reis, a mulher negra idosa, rememorando seu contato com a cultura popular. Ações lentas, aterradas, trêmulas e compassadas.

Matriz 3 – A poesia: experimentações a partir do eu-lírico da intérprete mesclada à dança dos orixás, mais especificamente a orixá Oxum, arquétipo da beleza das águas doces. Ações suaves, fluidas, expansivas.

Matriz 4 – Memória da intérprete-criadora: experimentações de gestos a partir do personagem espantalho, extraído de contos lidos na escola e depoimentos pessoais da atriz. Ações contorcidas, controladas e pausadas.

Matriz 5 – Educadora Maria Firmina dos Reis: experimentações de gestos a partir da releitura sobre a biografia da escritora. Gestos sociais, políticos. Ações firmes, fortes, determinadas.

Na segunda etapa, a criação da dramaturgia do texto, as respostas trazidas pela intérprete-criadora a partir das perguntas feitas pelo diretor, eram registradas em diferentes formas, em determinados momentos, traduzidas em gestos e em outros descritos através de palavras.

Durante o processo, alguns relatos, desabafos e pontos de vista foram gravados no celular, essas gravações eram transcritas pela intérprete e somaram na definição das cenas. Alguns áudios foram trazidos para o espetáculo.

A descrição dessa dramaturgia resultou no seguinte roteiro[3]:

Atriz já em cena entra o público;

Atriz se apresenta;

Personagem Escrava;

Atriz;

Personagem Velha;

Poesia – Orixá Oxum;

Atriz;

Maria Firmina dos Reis.

O ESPETÁCULO

O espetáculo Maria Firmina dos Reis, uma voz além do tempo carrega traços do teatro negro numa releitura contemporânea onde a biografia da autora e suas obras literárias mesclam-se à autobiografia da artista-pesquisadora Júlia Martins. O que apreciamos como resultado final, o espetáculo em si, é a síntese das experiências contidas num longo processo criativo.

O espetáculo Maria Firmina dos Reis, uma voz além do tempo faz uma releitura sobre a vida e obra da primeira romancista afro-brasileira da história, Maria Firmina dos Reis. Em paralelo a vida de Firmina, a atriz Júlia Martins traz a sua história de vida e de outras mulheres e homens negros que se intercalam com a história de vida de Maria Firmina dos Reis. Firmina é símbolo de resistência e luta contra a escravidão, seu discurso é o nosso passado, presente e futuro.

O espetáculo estreou em São Luís, no Maranhão, nos dias 30 e 31 de outubro de 2019, no Museu de Artes Visuais do Maranhão em duas sessões lotadas em cada dia. A peça teve o patrocínio do Banco da Amazônia. Para descrever os traços da dramaturgia do espetáculo a atriz-pesquisadora propõe um diálogo com os métodos utilizados nas produções do Grupo Xama Teatro. A performance da atriz em cena se traduz de forma narrativa em primeira pessoa (atriz-pesquisadora), em segunda pessoa (diálogos com o público) e terceira pessoa (referindo-se a Maria Firmina dos Reis). E isso nos remete a seguinte proposta de espetáculo produzido no Grupo Xama Teatro:

“A Besta Fera”, biografia cênica de Maria Aragão (2008) é um solo teatral, com a atriz-contadora Maria Ethel que apresenta a vida da maranhense, médica e comunista Maria José Camargo Aragão e sua luta por uma sociedade justa e igualitária, o que a fez ser presa e torturada por cinco vezes. Nele, identificamos aquele ator-contador que narra em primeira ou terceira pessoa, como personagem ou narrador, uma história de vida, podendo ser autobiografia, biografia ou depoimento pessoal e que segue os rastros do sujeito épico. (VASCONCELOS, 2016, p. 17).

Outro traço importante a ser citado é a dramaturgia pautada na memória, a força poética trazida pela intérprete Júlia Martins sobre Maria Firmina dos Reis é semelhante à força trazida pela intérprete Maria Ethel sobre Maria Aragão.

Apesar dos diferentes contextos aos quais estavam inseridas ambas foram mulheres à frente do seu tempo, que lutaram por uma sociedade igualitária e justa.

A arte de narrar é a raiz que sustenta o trabalho do Grupo Xama Teatro, e a opção pela investigação da figura que conta, canta e fala faz referência à prática artística do grupo, do qual participo como atriz-pesquisadora-educadora. Denominamos ator-contador a figura que reveza o diálogo entre personagens e a fala direta para o público, a voz em terceira e em primeira pessoa, o canto, o verso e a prosa. (VASCONCELOS, 2016, p. 16).

No caso do espetáculo Maria Firmina dos Reis, uma voz além do tempo, a arte de narrar é também a raiz que sustenta a dramaturgia, uma vez que ela é trazida com o corpo e fala inserido o público como participante da ação.

Na busca de um chão para caminhar o ator-contador principia nas trilhas dos portadores da palavra pública e divina e seguindo esse vestígio encontra a arte dos griots. Os griots são os senhores da palavra, são propagadores da memória do continente africano, são responsáveis pela transmissão oral da arte da palavra no âmbito da música, da poesia lírica, dos contos e da história. São “espécies de trovadores e menestréis que percorrem o país ou estão ligados a uma família. (VASCONCELOS, 2016, p. 25).

As narrativas trazidas durante o espetáculo nos remetem aos vestígios dos griots, a citar o fragmento extraído do romance Úrsula, depoimento da personagem preta Suzana:

Meteram-me a mim me a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio, trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes de nossas matas. (...) Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de leva-los à sepultura asfixiados e famintos! (REIS, 1859, p. 116-7).

Nessa narrativa a atriz-pesquisadora negra reafirma a sua ancestralidade como senhora da palavra, abrindo espaço para Maria Firmina dos Reis propagar sua história maranhense e isso parece remontar o jogo do corpo-voz dos atores-contadores nos espetáculos propostos pelo Grupo Xama Teatro.Todas as etapas descritas falam de um processo em constante movimento, assim como a vida da atriz-pesquisadora Júlia Martins, em sua busca incessante por mais representatividade de mulheres negras na cena teatral, assim como Maria Firmina dos Reis na literatura brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que os diálogos entre os diferentes procedimentos de produção existentes no Núcleo Atmosfera e no Grupo Xama Teatro acrescentam a esse espetáculo uma gama de possibilidades não só criativas, mas também ao que tange à ampliação do olhar sobre a arte, sobre a composição do trabalho da artista-pesquisadora dentro e fora da cena. A cena é um lugar que expõe as experiências pessoais de Júlia Martins reforçando seus discursos e lutas no palco da vida. A atriz-pesquisadora, a intérprete-criadora, a atriz-narradora, a atriz dançarina, todas elas se conectam para tornar viva a memória de Maria Firmina dos Reis, e consequentemente valorizar a imagem da mulher negra na atualidade.

O que trazemos nesse momento através desse estudo é uma oportunidade de olharmos para a relação entre o processo e o produto, entre a cena e a vida, entre os caminhos percorridos pela artista-pesquisadora até aqui, estes que já chegaram a lugares que ela considera importantes. Logo um caminho aberto continua a ser percorrido nesta pesquisa de inúmeras trilhas e direções.

E assim, Júlia Martins segue de mãos dadas com Maria Firmina dos Reis nesse caminho de experimentações, memórias e afetos. Honramos e reverenciamos aqueles que vieram antes de nós!

 

REFERÊNCIAS

FERNANDES, C. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação. São Paulo: Annablume, 2007. 

IPHAN. Tambor de Crioula do Maranhão. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/63/>

IPHAN. Complexo Cultural do Bumba meu boi do Maranhão. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/80>

PORTELA, L. A criação de dramaturgias no Núcleo Atmosfera de Dança-Teatro. Disponível em: <https://www2.dti.ufv.br/danca_teatro/evento/apresentacao/artigos/gt4/leonidas.pdf>

REIS, M. Úrsula. 1859.

REIS, M. Cantos à Beira Mar, Nas Praias do Cuman / Solidão. São Luís do Maranhão, 1871.

RESENDE, R. S. Da Ágora ao Pantheon: intelectuais de “Atenas” e a literatura romântica no Maranhão. Outros Tempos, v.4, n.4, 2007. Disponível em: <https://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/outros_tempos_uema/article/view/413/348>.

VASCONCELOS, G. Ator-contador: a voz que canta, fala e conta nos espetáculos do Grupo Xama Teatro / Gisele Soares de Vasconcelos. São Paulo: G. S. Vasconcelos, 2016.

 

[1]O Tambor de Crioula do Maranhão é uma forma de expressão de matriz afro-brasileira que envolve dança circular, canto e percussão de tambores. Seja ao ar livre, nas praças, no interior de terreiros ou associado a outros eventos e manifestações, é realizado sem local específico ou calendário pré-fixado e praticado especialmente em louvor a São Benedito. Essa manifestação afrobrasileira ocorre na maioria dos municípios do Maranhão, envolvendo uma dança circular feminina, canto e percussão de tambores. Dela participam as coreiras ou dançadeiras, conduzidas pelo ritmo intenso dos tambores e pelo influxo das toadas evocadas por tocadores e cantadores, culminando na punga ou umbigada – gesto característico, entendido como saudação e convite (Portal do IPHAN).

[2]O Bumba Meu Boi do Maranhão é uma celebração múltipla que congrega diversos bens culturais associados, divididos entre plano expressivo, composto pelas performances dramáticas, musicais e coreográficas, e o plano material, composto pelos artesanatos, como os bordados do boi, confecção de instrumentos musicais artesanais, entre outros. Em todo seu universo, destaca-se também a riqueza das tramas e personagens. Em geral, dividem-se os sotaques em cinco -  baixada, matraca, zabumba, costa-de-mão e orquestra - contudo, estes estilos não são os únicos e existem ainda muitas variações, assim como os bois alternativos (Portal do IPHAN).

 

[1] Alguns escritos constam como ausente o nome do pai de Maria Firmina dos Reis.

[2] Festival promovido pelo curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Maranhão que visa promover um encontro horizontal entre profissionais e estudantes das artes cênicas, incentivando produções e processos de criação na área teatral.

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