Traços de um Nordeste Desobediente

Por Alex Cordeiro
06/02/2021

Resumo: Numa conversa franca Alex Cordeiro (RN) e Gyl Giffony (CE) traçam um mapa subjetivo de suas trajetórias artísticas, compondo assim, uma topologia simbólica que conduz o leitor ao universo múltiplo do teatro de grupo como modelo de convivência que gesta sujeitos desobedientes e do Nordeste como território criativo diversificado.

Palavras-chave: teatro, grupalidade, desobediência, território.

 

ALEX CORDEIRO: Gyl, falaremos de ti e das vozes vivas e mortas que te rondam. Falaremos do teatro que te habita, este que como ação simbólica arquiteta conceitos na mesma medida que os destrói. Teatro feito por gentes que se atritam no infindo desejo de responder artisticamente as perguntas do mundo. Somos, eu e você, da geração do teatro de grupo, essa que surgiu no fim dos anos 90 e se fortaleceu nos anos 2000. A primeira provocação tem como ponto de partida isso de ser um, sendo muitos. A noção de teatro de grupo te move?   

GYL GIFFONY[1]: Primeiro celebro as contribuições importantes que a cultura do teatro de grupo, principalmente de coletivos dos anos 1970 e 1980, em nos permitir sonhar em fazer em contextos tão adversos, muito mais do que passamos agora. É uma memória exemplar. Por outro lado, hoje eu me debato com a noção de teatro de grupo, com a cultura de teatro de grupo. Ela me traz muitas contribuições e inquietações, e tudo isso me leva a questioná-la. Posso falar com segurança, não porque eu desacredite do coletivo, mas por desacreditar de algumas formulações que criam determinados entendimentos e beneficiam determinados coletivos, especificados a partir de parâmetros contraditórios. Sabemos que as formulações de relações, dos modos de estabelecer relações, são contextuais, sofrem variantes de sociabilidade e que em alguns casos, de modo evidenciado, resultam num exercício subjetivo violento entre os sujeitos de partilha. Estão aí os lados entre capitalismo e socialismo, que muitas vezes mudam o conteúdo, mas não o sistema e suas violências sistemáticas. Vejo que muitas das construções, que vem de uma perspectiva histórica, localizada, no contato com uma ideia de organização coletiva importante a sua época tem sentido, porém, em 2021, questiono se deveríamos seguir com as mesmas ideias de grupos, do início dos anos 2000. Outro dia vi uma fala do Miguel Rubio Zapata, do Grupo Cultural Yuyachkani, que este ano faz cinquenta anos desse coletivo, reconhecia que a cultura do teatro de grupo foi a resposta de uma geração e que ele mesmo compreendia que as pessoas hoje têm outras urgências e formulações. Eu reconheço que muito do que compreendo de arte e militância vem da cultura do teatro de grupo, porém, nem sempre estive em grupo e essa distância me faz perceber a existência de práticas coletivas potentes não associadas a noção de teatro de grupo, mas de grupalidades. Devemos perceber que há praticas importantes também quando não se está em grupo, práticas essas atreladas aos sujeitos e a efemeridade do encontro. Sob essa ótica, o fim de uma agrupação não se torna doloroso. O que no Brasil me parece difícil aceitarmos diante da instabilidade e ausências de nossas políticas culturais, contudo, estou me provocando a considerar como não tornar menos importante outros modos de existência na arte, e também de compor coletivamente, e indo além do artístico. Há ainda pessoas que carregam multidões e multidões que carregam pessoas, isso serve para pensar a grupalidade hoje, principalmente ao evidenciar a fricção política desses encontros, não só micro ou macro, no entre e na conjunção do micro e do macro. Não me interessa a importância ou desimportância do teatro de grupo, pois sua existência nos é mais que necessária, porém, convido a reconhecer que podemos conviver com as experiências acumuladas ao longo da história, de modo a não estarmos amarrados a elas e encontrarmos o nosso próprio. Devemos considerar as existências, celebrando cada grupo, porém, muito atentes para a criação de totens ou insígnias monumentais, afinal, monumentos ao passo que marcam historicamente uns, apagam a existência de outros.

A.C.: Enquanto te escuto, percebo como temos aqui um papel histórico, político e artístico. Essa borracha seletiva que apaga existências é uma ferramenta colonial que além de silenciar, estimula uma conduta de mentiras. Nessa conversa interessa-me a sinceridade, por mais que eu saiba que a sinceridade tem seu preço, afinal ela pode desconstruir trajetórias, seja em grupo ou individuais, por isso estou me dando conta o quanto esse nosso encontro marca contrapontos... apagar individualidades me parecem ações castradoras. O que revelam as experiências grupais?

G.G.: Alex, para alguns contextos a cultura do teatro de grupo faz o teatro efetivamente existir. Falo desde Fortaleza, e do que sabemos de nossa história no teatro aqui, nossa existência seria inviável sem os grupos. As pessoas se unem, se fortalecem num coletivo, se suprem encontrando modos de fugir de uma existência vazia. Encontram vida compartilhada. Isso é um dado. A gente sabe que essa formulação tem um contexto, ela não nasce assim, digamos, “um belo dia resolvi fazer”... Estamos falando de um fazer teatral, um “quehacer teatral”, formulado na diversidade... A tradição do teatro de grupo possibilitou muitas existências, e numa perspectiva do que vivemos em Fortaleza, localizando um eixo de pensamento geográfico numa colonialidade do saber e do ser, a gente foi traçando como parâmetro dos nossos movimentos coletivos por políticas culturais, ideias que se conectavam no início com os movimentos ali da capital do estado de São Paulo. De uns anos para cá, percebo que não encontrávamos mais parâmetros e respostas que fossem condizentes com o nosso lugar e esse tempo. E isso não por que uma experiência fosse melhor do que a outra, fomos também nos libertando e formulando nossas compreensões, dentro das nossas necessidades e fazendo muita coisa até então impossível acontecer. Partimos ao encontro de nossas próprias formulações políticas e de experiências de convívio e aprendizado, o que nos deu muito trabalho, erros e acertos, quando digo nossas, são de uma parte de Fortaleza, porque nosso olhar estava condicionado ao modo de organização dos grupos paulistanos – que tem uma formação muito diferente da nossa, ou agindo e pensando com as teorias nascidas nas universidades. Nossa subjetividade está repleta desses discursos, e muitas vezes vinculamos sem maior crítica nossas vidas e nossas práticas.

A.C.: Minando a possibilidade da alteridade, da construção de um comum a partir das experiências local...

G.G.: É além, pois reconheço que hoje a universidade, a partir de algumas pessoas que a ocupam e confrontam suas cristalizações, pode vir a exercer o papel de destruir paradigmas e colonialidades, mudando a própria universidade. Já temos experiências de pluriversidades, como na Bolívia. Fico alerta é para como nós nos relacionamos na construção do diálogo com a universidade. A Jota Mombaça, que é de Natal, diz “só existe um modo possível de se relacionar com universidade: a partir do crime”, e sinto que as gentes da arte tem subvertido, mas durante algum tempo, principalmente quando estávamos no processo de adentrar o espaço acadêmico no Brasil como um todo, e isso é recente, usamos o traje burocrático por um tempo, para que as novas gerações portem-se e vistam-se de modo a romper, pois já estão rompendo e construindo fissuras, sem que para isso peçam licença. Traje anti-normativo. Essa geração tem o movimento como princípio de vida.

A.C.: Diria que são desobedientes. Por mais automático que pareça, há no traje pistas sobre o modo político que lidamos com a vida. O traje que o grupo adota é parte dessa composição criminosa, para reviver aqui a afirmação da Jota Mombaça. Ainda sobre isso de ser um e ser muitos vamos para a próxima provocação. Você é da Inquieta Cia. O termo “Inquieta” é por si só um disparador de leituras. Inquieta pode ser uma pessoa, uma coisa, uma imagem, uma lembrança, uma sensação. Mas, o que é a Inquieta Cia.?

G.G.: A Andréia Pires, que é da Inquieta, deu uma resposta ótima para essa pergunta “é um grupo de teatro que faz dança, um grupo de dança que faz teatro e um grupo de performance que não performa” e eu complemento dizendo que nós não somos um grupo de teatro de grupo. Lutamos internamente para que não seja, exatamente porque viemos de experiências cujos parâmetros de relação nós estranhamos. Muita gente de Fortaleza não entende como nos organizamos, mas nós, internamente, temos a estratégia de não nos entendermos como nos organizamos. Pode parecer explosivo, e é, porque isso não é funcional, é vivo e aceita a perda. E pode parecer muito contraditório falar isso, sendo eu uma pessoa que atua na gestão e na produção. A organização que buscamos tem haver diretamente com nosso relato de vida. Até nos compreendermos que não nos formulávamos pelos modelos tradicionais do formato de um grupo de teatro, foi preciso viver, e sofrer um bocado. Nós não adotamos alguns pilares conceituas do teatro de grupo, como o de manutenção, que pressupõe que os sujeitos tenham que prover seus sustentos única e exclusivamente do grupo (retórica comum no início dos anos 2000). O que é difícil pelo nosso local, pelos tipos de trabalhos que realizamos, e por que ainda não nos engajamos nisso. Viver unicamente da Inquieta, somente criar entre a gente, pode vir acontecer, mas não é uma meta, hoje.

A.C.: Não é um relacionamento monogâmico, institucional, como um casamento que violenta subjetividades...

G.G.: Não. Não há promessas em passar o resto da vida juntos. Nosso compromisso é com a intensidade que vivemos cada aventura em que estamos metidos. Nossa ética de convívio atual não determina que seremos um coletivo fadado a passar a vida toda ali, juntos a qualquer custo. Tentando responder o que é a Inquieta. A Inquieta é um encontro de individuações, no qual cada pessoa que o faz tem a sua vertente, e isso reflete nos diferentes modos que agenciamos linguagens. Basta olhar as nossas proposições artísticas, o Metrópole, o Esconderijo dos Gigantes e o PRA FRENTE O PIOR, as exposições e residências artísticas que fazemos, são expressões muito distintas. Aliás, revivendo os processos eu reconheço o coletivo como reprodutor de violências, e nossa última proposição de realização cênica, o PRA FRENTE O PIOR é uma marca simbólica, afinal, o que está em performance são nossas consonâncias e ressonâncias como coletivo, dizendo de nossas violências. Foi um modo de enxergar as violências cometidas entre nós, e trabalhar com elas. Lidamos com realizações e fracassos e não nos responsabilizamos em suprir expectativas externas. Como deve ser nos relacionamentos, acredito, a gente está se reconhecendo enquanto indivíduo e parcerias o tempo todo. É inquieta por isso: toda ação artística parte da provocação: “O que me inquieta? O que te inquieta? O que nos inquieta?". Importante dizer que não procuramos uma resposta-chave intelectualizada. A resposta se faz em ação prática, o que envolve também uma lapidação contínua do pensamento envolto nela.

A.C.: É como se fosse um princípio filosófico individual que invade a existência coletiva. Inquietar a própria vida para sacudir a vida ao redor. Conversando agora, lidamos com particularidades de uma parcela da sociedade que tem o teatro como pulsão de vida. Esse viver gera imagens e, a partir do filtro de quem olha, estereótipos. O historiador Durval Muniz diz que o Nordeste, enquanto sociedade, é uma invenção das elites brasileiras. Isso me faz pensar nas muitas invenções que são construídas em torno da linguagem teatral nordestina, como por exemplo, a “estética da seca”. Superamos essas invenções?

G.G.: Alex, somos isso também. Não vamos dizer que não somos “seca”, porque estaríamos negando o que existe, sistematicamente, de fato. Porém, o que devemos questionar são os modos de representação. Aí sim, questionar a herança “estética”. Somos a seca, o cangaço, somos nossas culturas populares, mas muito e muito mais que isso. Nem essas questões param nelas...

A.C.: Somos muitos nordestes e isso racha a lente que cobre o olhar estrangeiro?

G.G.: É muito importante a gente lidar com nossas falências, que reduzem uma grandeza de manifestações e expressões em fitas coloridas. Temos que reconhecer que essa monomatiz está falida, ou lidamos com a diversidade, ou então faliremos mais ainda enquanto artistas e sociedade. Qualquer tentativa de compreensão dos territórios e imaginários que exclua a diversidade, está morta. Território, desde sua perspectiva de componente de um estado-nação, que está na circunscrição de um mapa, da área, porém, uma comunidade, principalmente as originárias, ao falar de território, não se refere unicamente a terra, superfície. O território como ser vivente possui subjetividade própria, como todes nós temos, por essa e outras questões, é impossível demarcar Nordeste na figuração de algumas estéticas e poucos grupos.

A.C.: Toda tentativa de monotematização do viver é atestar o fracasso?

G.G.: Sim, mas é preciso lidar com isso para que possamos entender que o importante, ao falar de uma cena do Nordeste, não é ter um, dois ou cinco grupos que se reúnem e fazem um movimento. O que importa é ter uma cena forte! Cinco grupos de uma região não fazem uma cena forte. Cinco artistas numa cidade que falam a mesma língua não fazem uma cena forte. A diversidade de vozes e modos de fazer compõem uma tessitura imagética plural do Nordeste. E nesse sentido, trabalho para que reconheçam a amplitude de nosso léxico cênico, que perpassa a violência rural e também urbana. Das vozes que se levantam para exigir as reparações sociais que são bandeiras históricas arqueadas há muito tempo, mas que agora vislumbram o topo do monte, tudo refletido na movência vibrante de pessoas transexuais, indígenas, mulheres, negras e quilombolas.Tem muita vida se afirmando e compondo o mapa sóciocriativo do Nordeste, um mapa que para além de ser visto ou tocado, precisa ser sentido.   

A.C.: Digo mais, Gyl, mapa a ser sentido por sujeitos que tenham a esthesia como modo de ser e estar no mundo. Eu costumava conversar com meus alunos do ensino médio que há um projeto anestésico espalhado por aí com um objetivo muito óbvio: desumanizar os sujeitos. A arte e a diversidade de pessoas que a expressam estão aí para afirmar o sentir. Continuemos nessa esfera da linguagem artística como despertar desobediente, e mais que isso, despertar crítico. A Inquieta Cia. participou da MITsp 2020.  Além de apresentar o espetáculo PRA FRENTE O PIOR, você compôs a mesa de olhares críticos intitulada “Contradições no debate da cultura como bem comum”. Na ocasião você disse “posso estar errado, mas pela primeira vez eu não vejo o Nordeste representado pela obviedade dos grupos nordestinos (...) é muito bom pra gente tá aqui, mas é melhor ainda para São Paulo ter a oportunidade de conhecer outras gramáticas criativas, outras vozes (...) me espanta perceber mesmo em 2020, que alguns críticos do eixo RJ-SP adotam uma lente de análise que se embaça diante de certas propostas, e digo mais, não tem gramática para lidar com o que estamos fazendo” (informação verbal). É política essa ação de fechar os olhos para muitas visualidades cênicas nordestinas?

G.G.: É, porque é estrutural. É tranquilo ler o pop, assim como é aceitável a cultura popular bem-acabada. Esses critérios de avaliação que ditam como qualitativos artísticos um bom gosto ou uma ideia de técnica que exclui expressões.

A.C.: Forjado numa cultura que nega o ruído?

G.G.: Exato. Que avalia o acabamento de uma cena ou de um figurino pela excelência da costura, ou o virtuosismo de atuação, ou só a sincronia de um duo de dança. Esse sistema coloca as culturas populares e originárias num patamar inexistente, abaixo. Perde-se o encantamento da expressão em si, da vida, e se evidencia a apropriação forjada de releitura pela arte. Basta um olhar atento para as programações de festivais de quinze anos atrás para atestar o olhar monotemático para o Nordeste, e não por ausência de produções desassossegadas. Os poucos artistas e grupos que furam ou rasgam os circuitos de festivais e programações à muita custa desenvolvem sua própria voz, ou não, mas, muitas e muitos de nós acabamos por reproduzir comportamentos coloniais, já que muitas vezes forjamos escutas com nossos pares internos, nas nossas cidades, que não se efetivam. A validação de nossos trabalhos parece ainda dada por um outro que não ocupa nosso território geográfico, e quando surgem vozes potentes interessadas em fincar laços com seus territórios, são ainda em 2021 estimuladas a partirem. Fortaleza, e ainda mais as gestões públicas de cultura daqui, dizem o tempo inteiro que devemos, temos que ir embora, literalmente, pegue o beco! Como se a cidade nunca fosse oferecer condições dignas de trabalho e vida, e digo mais, é um jogo perverso, já que por vezes instituições de outros territórios pagam dignamente pelo trabalho, coisa que quase nunca acontece em se tratando de Fortaleza. É muito, muito perverso. Então, ao retomar a questão do léxico, do como se nomeia, do que se legitima ou não, que está associada sim a colonialidade, nesse ponto a gente não pode tirar o nosso: tem um trabalho desconstrutivo entre nós, subjetivo e intersubjetivo. Temos que aprender a nos aplaudir, a nos referir, e não achar sempre mais interessante quem carregue um sotaque que não o nosso e uma filiação artística, teórica já legitimada por cânones. O que se vive em Natal e em Fortaleza é situado, e não podemos ter medo de reconhecer isso já não como um problema, mas como uma riqueza, aliás, essa coragem eu aprendi também com Yuyachkani, ao escutar muito do Miguel Rúbio Zapata que a gente não pode ter medo de fazer desde os nossos locais, uma teatralidade que faça frente a qualquer teatro do mundo. Abraçar os nossos modos próprios de falar, mover, organizar a cena, sem medo. Habitar nosso aqui e nossas fronteiras, e fluir.

A.C.: Você considera que o artista cria arapucas para o seu fazer em prol da inserção em um mercado estabelecido?

G.G.: Eu não tenho medo de vender meu trabalho, pois tenho criticidade na relação de oferta e procura. Antes de vender meu trabalho, pois sou eu mesmo que vendo, antes de mesmo capitalizar ele, penso onde estou e o que mobilizo. Nós temos medo do negócio e isso revela, digamos, uma fragilidade, como se nós artistas não tivéssemos nenhum poder sobre os acordos que fazemos. Todo acordo é feito de partes. Uma vez vi uma entrevista da Grace Passô que mexeu comigo. Ela dizia assim “a gente como artista é posto numa lógica que nos divide em duas categorias: os célebres e os coitados”. Ou seja, ou você é uma pessoa referendada ou você é um nada, e, olha, nessa polarização, nos entres de ser célebre ou coitado, existem muitos modos de viver e trabalhar. Infelizmente, nas nossas formações não somos preparados para construir consciências críticas sobre nossas potências e vibrações nessa sociedade cafetinada. Não tenho medo da palavra negócio, nem de fazer ou fechar um acordo, ainda mais para nós artistas, que historicamente somos esmagados por um sistema que nos precariza. Quero saber do mercado, mas me interessa ainda mais nossos direitos. Por isso, temos que inverter e buscar nos posicionar, pois é muito difícil que o mercado ou o Estado vá tomar uma posição pela gente. Ou reconhecemos o lugar de potência de acordos, que não é só com empresa ou entes públicos, mas são fechamentos como esse que eu estabeleço contigo nessa nossa conversa, ou padecemos. Há potência no encontro entre eu e tu, que me mobiliza, e ela não é financeira, porém, se preciso for, por garantia de dignidade e fazendo jus ao que temos construído, falemos e saibamos de negócios financeiros. Pensamos pouco sobre como não queremos estar. Eu não quero estar na posição do coitado. Chega desse sedimento histórico sobre nós. Negociar com o mercado a ver, a premissa é o combate; depender dele, só dele não, pois o mercado não deveria ditar nossa potência de vida ou o nosso trabalho como artistas.

A.C.: A nossa conversa tem revelado trajetórias no teatro fortalecidas por experiências coletivas, evidenciando a potência de si, ou seja, do eu artista. Você desenvolve a pesquisa de doutorado O Lugar Invocado, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UNICAMP, que além de articular palavras como memória, teatro e direitos humanos, te permitiu transitar em territórios criativos do Peru, Chile e Colômbia. O que essa pesquisa invoca?

G.G.: Amigo, essa pesquisa em movimento me trouxe para casa e é interessante perceber que as pessoas ficam provocadas, pois tratar de América Latina cria muitas generalizações. Quer saber o que senti em contato com as obras e artistas do além fronteira, que me tocaram fortemente? Que existe algo muito próprio, e quando digo próprio não é afirmando que são trabalhos sobre histórias locais. Todos os trabalhos que mexiam com as linguagens e provocavam as dimensões da violência sócio-política, tinham um tom de escavação. Cavar com as próprias mãos, e só é possível escavar a si profundamente se você, enquanto artista, estiver aberto a viver o seu local, a sua tradição, nem que seja para negá-la. Fazer essa viagem me trouxe uma vontade muito profunda de estar com minhas raízes.

A.C.: Então, a busca pela latinidade no fora que representa outros países, te fez perceber a latinidade que te habita genuinamente? Reconhecer o Gyl, nascido na cidade Acaraú, no interior cearense, sem estereotipar a marca do latino...

G.G.: Pois é. Eu percebi que as pessoas, que meu caminhar cruzou, lidam com o seu próprio, indo de encontro a sentidos e presenças que atravessam muitas temporalidades. Isso é dialogar com o passado que há no presente. Então porque eu, daqui, não busco essa ideia de América Latina que há em mim, no meu redor, na minha territorialidade? Invocar a nossa Abya Yala, que é o nome que nossas comunidades originárias escolheram para fazer frente a esse nome imposto de América Latina. Essa busca está muito veiculada a construção de laços solidários e reversos ao neoliberalismo, mas também o que o socialismo, e quem está perguntando isso é alguém desde a esquerda, sou de esquerda, o que o socialismo nos deu? Buscar países circunvizinhos me fez olhar para as naturalizações de violências em prol de uma cultura dominante: o capital. Eu não quero caminhar e envelhecer retomando aspectos de sociabilidade que ao invés de incluir, excluem. O sentido de Abya Yala é uma busca comum, do bem viver. Estando lá, em contato com o teatro de lá, foi que a ficha caiu: não é fora que encontrarei a resposta para a invocação, é no meu lar.

A.C.: A ida ao sul do sul te invocou para o retorno?

G.G.: Esse lar de mim, das minhas questões coletivizadas sempre, porque no teatro sempre será coletivo não só pela feitura do teatro, mas no teatro como convívio, pela partilha do encontro quando esse rito se dá. A prova é que eu posso estar na minha casa, abrir um celular e partilhar um encontro que tem suas teatralidades, numa disputa com o mundo que está ao redor de mim e do outro: que é a própria internet, e o que está fora do quadro de captura de uma câmera. Nisso que estamos vivendo em pandemia. O teatro é coletivizado porque gera um convívio e uma partilha. Seja ela entre quem faz, seja no encontro com as pessoas que não necessariamente estão lá para ver. Olha como somos colonizados, na organização do meu pensamento acabo reproduzindo a perspectiva grega do theatron, ou seja, teatro como lugar onde se vê. É um conceito excludente por excelência, pois se nega toda uma sinestesia, os sensíveis que nos habitam para além dos cinco sentidos compreensíveis, e por consequência afastamos todas pessoas cuja comunicabilidade não se dá exclusivamente pela visão. Porque, na colonialidade do saber, temos que pensar como os gregos. Abya Yala sempre pensou, a retomada começa pela reparação do nosso imaginário.

A.C.: Então, para deixar pistas que possibilitem a continuidade de nosso diálogo, eu proponho a ti uma projeção de outros mundos possíveis. Para isso uso a força da palavra poética, corporificada em Violeta Parra: “Volver a los diecisiete, después de vivir un siglo, es como descifrar signos sin ser sabio competente. Volver a ser de repente tan frágil como un segundo. Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios. Eso es lo que siento yo en este instante fecundo”. Gyl, o que queres fecundar?

G.G.: Suscitar Violeta, revive em mim um outro cantautor, diretor de teatro chileno, que é o Victor Jara. Conhecer a trajetória do Victor me fez refletir muito sobre o querer, esse querer que não só meu, mas sim de um todo. Para que as pessoas possam ter uma vida mais digna, não só no sentido jurídico da palavra, mas sobretudo para saber discernir o que nos faz construir um bem viver e assim alcançar uma plenitude que não está ligada somente aos bens materiais. Que as pessoas não sucumbam para fome ou para a borracha histórica que apaga subjetividades, visões de mundo e nossas diversidades. E fecundo agora e sempre uma semente com Violeta e Victor: o desejo manifestado na luta pela mudança do que nos está dado, sempre em prontidão também ao aprendizado. Meu presságio junto com a Parra, o Jara e você, Alex, é esse: caminhar no agora, com atenção ao que o passado nos mostra e sussurra. Nunca silenciemos para o que os mortos têm a nos dizer.

A.C.: Gyl, nada mais simbólico para o teatro que a escuta dos mortos. Que lutemos sempre por um teatro vivo, altivo e que provoque poética e politicamente a todas, todos e todes.

 

Foto de Capa: "Pra frente o pior", da Inquieta Cia. (PE). Foto: Eden Barbosa.

 

[1] Gyl Giffony trabalha com as Artes Vivas desde Fortaleza (CE). Integra da Inquieta Cia. É ator, encenador, professor, pesquisador e produtor. Dentre seus trabalhos estão PRA FRENTE O PIOR, Esconderijo dos Gigantes, Metrópole, METRÓPOLE ON-LINE e a publicação De quem é a cena? A regulamentação do exercício amador e profissional de atores e atrizes. Doutorando em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde desenvolve a pesquisa O Lugar Invocado: Teatralidades, espaços e memórias da violência política na América Latina contemporânea.

Clique aqui para enviar seu comentário