Necroperformance ¿Y SI MUERO AQUÍ? Escrevivência de Processo

Por Naara Martins
03/02/2021

 

Resumo: Este relato de processo cartografa a necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada nas cidades de Oaxaca de Juárez e Cidade do México / México, no ano de 2019, pela artista potiguar Naara Martins. Tratam-se de algumas das escrevivências que permearam a construção desse processo necroperformático, que partiu do conceito de “necropolítica”, de Achille Mbembe, enquanto política da morte, supressora e mantenedora das narrativas hegemônicas sobre os corpos negros. Trata-se, portanto, da escrevivência de dois processos de morte de uma artista negra fora de sua diáspora “de origem”.

Palavras-chave: Necroperformance; Escrevivência; Poéticas Pretas.

 

Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019 na Cidade do México, México. Registro: Marbella Figueroa.

Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Marbella Figueroa.

Essa escrevivência de processo é implicação e fruto de um Intercâmbio de Estudos realizado no México entres os meses de setembro e novembro de 2019, mais “incisivamente” na cidade de Oaxaca de Juárez, no Estado de Oaxaca. Tive contato com diversas/os artistas, pesquisadoras/es e com pessoas que não tinham aproximação com esses campos-bolhas; algumas dessas pessoas se tornaram grandes amigas/os; contatei danças, músicas, paisagens, me relacionei com o espaço timidamente, outras vezes compartilhando diásporas, outras vezes sendo negada e/ou me afirmando. Transitei por escolas, institutos de artes; teatros, universidades de sociologia e antropologia, ruas. A intensidade de choques culturais manifestada nesses três meses.

Foram muitos encontros em oficinas, laboratórios, orientações, eventos, reuniões em grupos de estudos, em grupos mais informais com outras discentes e pesquisadoras negras brasileiras, que estavam assim como eu passando por um processo de banzo e Intercâmbio.

Mas filtros se fazem necessários aqui, pois são imensidões de experiências e por isso ao invés de relatar passo a passo como numa receita de bolo, resolvi focar no quando e como a experiência e vivência artística é transformada pela vivência e experiência do racismo e da violência. No banzo.

São atravessamentos que tecem Poéticas Pretas[1].

Meu banzo teceu poética de morte.

Acabou por tecer uma necroperformance

 

Definição do Dicionário das Semânticas Ordinárias Cotidianas[2]:

Performar coisas que matam a (nossa) gente,
modo não vulgaris: ou eu faço ou eu morro ou eu morro enquanto faço.

 

A necroperformance é a performação de morte ou das mortes. Ela é escurecidamente uma encruzilhada com o conceito de necropolítica pensado por Achille Mbembe. Ela é um pulo do navio, um além-corpo mergulhado no Atlântico. A morte de corpos pretos fala incisivamente sobre poder, bem como sobre a sua representação nefasta em nossos imaginários. Essa performação, portanto, trata-se da construção de estado de emancipação do Estado e de várias outras políticas de morte que nos permeiam. Essa(s) morte(s) pode(m) ser “performada/s” através de resgates diretos ou indiretos de experiências, que assim podem ser escrevividas (em uma linguagem de encruzilhada) em lugares (seja esse lugar uma plataforma como essa – escrita / ruas / sala fechada / ambientes vários / lugares que não nos são “permitidos”/ lugares que dizem que podemos “ocupar” / etc.), de modo a nos reafirmarmos enquanto pertencentes desses lugares, seja ele um desses múltiplos espaços ou nosso próprio corpo, porque muitas vezes tendemos a não nos cabermos, porque dividimos espaço e aluguel com dores. Sim, a necroperformance entre outras questões, busca fazer uma reescrita da dor de morte. E é dor diferente da vivida obviamente – falo de memória de dor, visita de dor nossa (vivida por nós ou pelos/as nossos/as ancestrais). Trata-se de construir também através dela o entendimento ou consciência da importância dessa dor, já que ela existe. Escreviver sobre dor é liberar dor, por mais que doa. A necroperformance  diz sobre a necessidade – de formas bem plurais, visto que assim somos – de trabalharmos com o momento do nascimento dessa dor geradora de morte, para assim construirmos um novo caminho de nascimento-morte. A morte aqui não é entendida como fim, mas como processo para outra coisa: é caminhada, cortejo, andança, pulo, ebó. A performação da morte diz então sobre processos de curação, processos de macumbaria, diz sobre processo de emancipação de dor e medo, do que vem desse processo de colonização que mata nossos corpos, línguas, culturas, epistemologias, poéticas, enfim, as nossas existências. Morro porque isso é curso natural de vida. Causo minha própria morte para confrontar a morte que me causam. Mas essa morte é uma escolha. Escolher morrer. Escolher caminhar. Escolher pular.

 

A necroperformance reverberou da sensação forte da diáspora em meu corpo. Reverberou desta investigação do que poderiam ser as Poéticas Pretas. Percebi que não conseguiria falar sobre elas de forma “ampla” ou “geral” como gostaria; no momento, por enquanto, eu consigo falar sobre elas através da minha própria experiência, através do meu corpo diaspórico – em curso – em movimento pela Latinoamérica. Esse relato, portanto, diz sobre esse (meu) corpo diaspórico em outra diáspora.

Quando cheguei ao México me deparei com outra realidade de negração. Pude perceber nesse território estrangeiro (para mim) outras perspectivas sobre a encruzilhada e sobre o que o meu corpo estrangeiro (para os/as outros/as) suscitava. E por muitas vezes foi nela, a encruzilhada, que eu me fortaleci, por entendê-la como lugar metafísico de múltiplas travessias e também como reversão do que é atravessado ou nos atravessa. Por muitas vezes também me vi como encruzilhada ambulante atravessando outros caminhos, de pessoas que se dizem não estarem acostumadas com a minha existência (esse é sempre o argumento), mas que na realidade só endossam um racismo estrutural e estruturante, permeado por toda uma ideologia de branqueamento.

A população “negra”[3] no México é pouco mencionada em livros e nos sistemas de ensino – e quando o é, tratam-se de estudos a partir das perspectivas de pessoas brancas e não-negras. População que não escreve sobre si, que está à margem e que só recentemente teve o seu reconhecimento jurídico. Sim, raça e racismo no México tratam-se de temas complexos pela ótica da população em geral, mesmo sendo temas vivenciados na pele.

Talvez entender isso como uma complexidade só nos sirva para nos afastar desses temas, para não discutirmos e problematizarmos essas violências e fabulações[4].

 

Cartografia de uma necroperformance      

 

07 de setembro de 2019

Oaxaca de Juárez, Oax. / MX

 

Ruínas, Fragmentos e Narrativas –

 

Penso em morte desde que cheguei aqui. Vejo a morte santificada em algumas ruas e em alguns santuários, protegidas por vidro, rodeadas de velas. Esse tipo de morte me conforta e sempre me inspirou... O que explica um pouco dessa curiosidade que tenho pelo México. A morte e a sua celebração de alguma forma me trouxe até aqui.

E estando aqui me deparo com relatos e notícias sobre sequestros de mulheres (de que tenho que tomar cuidado e não andar sozinha nas ruas, tomar cuidado com os taxistas, principalmente à noite), relatos de mortes violentas por causa do narcotráfico (mais fortemente na região norte do país). Vejo corpos ensanguentados nos jornais, fico sabendo de pessoas que morreram no dia anterior.

A arte que tive contato aqui (teatro, performance, fotografia, música e dança) de alguma forma permeia esse espaço da violência. E penso: a subjetividade gera ou é gerada por ela?

São/somos corpos em estado de guerra. Enfermos.
O BR também está em guerra nesse momento. Queimando.
Alvejando muitos corpos pretos.

 

Dias atuais,

Natal, RN / BR

 

Necroperformance

 

E me questiono: tinha que ir para tão longe para falar sobre o que me atinge? O que me atinge não me atinge enquanto ser humano, porque a minha dor não é universal. Tampouco minha morte. E se eu morrer aqui? Isso foi uma das primeiras coisas que pensei quando cheguei no México. Não tenho seguro, então como seria para levar meu corpo de volta pra casa? Pensei sobre a segurança de morrer em casa, veja que absurdo. A segurança em morrer “perto”. Pensei mais na minha mãe, porque enfim, eu já estaria morta de toda forma, e morta não me importaria tanto com a geografia dessa morte. Mas a geografia dita a morte! A morte lá é sagrada, celebrada, festejada.

São abundantes: as festas e a violência – porque o México, assim como o Brasil é um país de muita desigualdade, e sabemos que onde ela está a violência reina. Narcos, tráfico de pessoas, sequestros, feminicídios. Por onde passava ouvia sobre morte e violência.

+ e + morte

+ e + violência

Me questionei incontáveis vezes sobre quais os papéis da arte diante dessa violência e da morte. São papéis em branco que geralmente se pinta de vermelho? No México essas mortes não são racializadas – a população negra afromexicana (e boa parte do cânone branco acadêmico que fala por ela) está debatendo sobre o censo populacional que ia acontecer em 2020.

Como trabalhar com essa violência de forma não estereotipada, inflamada, sensacionalista, high fashion, por mostrar o que vende e o que querem ver? Sangue na tela, nos holofotes, sangue banal. Mas o sangue é banal quando nós sabemos de que corpos eles escorrem, mesmo que esses corpos não sejam contabilizados.

“Eu não comovo”, penso em voz alta aqui neste papel.

Quem vai chorar? Quem vai reparar a minha morte?

 

¿Y si muero aquí?

Através do conceito de Necropolítica de Mbembe pensei em necroperformance, por assim dizer – que são como performances de/da morte. Não num sentido literal de morte, mas também nesse sentido. Me propus a pensar em uma necroperformance com essa pergunta disparadora/diasporadora.

Porque a morte tem me afetado nesses últimos meses e a violência, sobretudo a sexual, tem me afetado já faz uns anos. A ideia dessa necroperformance seria a do medo – e essa pergunta em questão era o meu medo naquele momento.

Sempre foram questões que me afetaram, mas de forma óbvia eu passei a me sentir menos segura (por estar num território distante, com outra cultura e língua). E foi a partir dessa pergunta que comecei a pensar – muito atravessada por Lélia Gonzalez – sobre o quanto elas (a violência, o medo da morte e a morte em si) podem ser pensadas através de geografias distintas, diásporas distintas, “não-lugares”.

Lá o racismo e o sexismo que vem dele me afetaram muito fortemente. Sair na rua era sempre um acontecimento. As pessoas não estão acostumadas com uma “performance de fenótipo” como a minha. Me achava tão “normal” e de “passabilidade” no Brasil, por ser uma negra-da-pele-não-retinta. Lá quando não sabiam que eu era brasileira, achavam que era uma “mestiza” estrangeira, depois que descobriam minha nacionalidade se calavam – mas eu sentia no ar que me viam como uma “afromestiza brasileña”, ou apenas “brasileña” (essa era minha racialização, digamos assim), me entendiam como diferente das outras “mestizas”. Era frequentemente sexualizada, em espaços conhecidos e desconhecidos.

Principalmente na rua. Principalmente por homens: comerciantes, policiais, passantes, donos de teatros. Era constantemente olhada com nojo por mulheres. Era constantemente chamada de puta por homens em seus carros velozes – “how much, puta?”. E eu sempre andava coberta na rua, mas não é disso que se trata. “Hey, Morenita”.

O medo da violência sexual voltou a me visitar. E consequentemente esse medo vem acompanhado de um medo de morte, de sequestro, de silêncio... O medo de me verem apenas como um corpo, um corpo para além das potências que eu tenho, um corpo que não abre a sua boca, mas que “sabe sambar”, como boa mulata.

Comecei a pensar sobre essas geografias tão impressas em meu corpo, tão distintas das geografias dos corpos que aqui estão[5]. Ele já comunica então, meu corpo sempre comunicou, mas eu não conseguia perceber isso. O distanciamento me afetou e assim então me mostrou.

O meu fenótipo é performativo aqui, porque se destaca, causa reações diferentes. Meu cabelo causa reações diferentes. A mais comum é o estranhamento. Mas não tenho a pele muito “morena”, como chamam em seu omisso racismo – e negra/o aqui é que tem a pele muito-muito-muito “morena”. Aquele tom de “moreno” que não dá pra fugir de ser nêga/nêgo – ou prieta/prieto, no espanhol.

Vi a necessidade de parir essa necroperformance pra fora de mim, escoamento de fome e de medo. Pensei então no seguinte programa performativo, onde foquei nas seguintes ações e objetos:

  • Estar em espaço considerado público: a rua, lugar-alvo
    com mais abordagens e situações de assédios;
  • Pegar um pano com a seguinte pergunta-disparadora-diasporadora bordada:
    ¿Y si muero aquí? (E se eu morrer aqui?) – esse mesmo pano tem flores também bordadas e que estão próximas à frase;
  • Caminhar de braços rígidos segurando esse pano;
  • Parar em cada encruzilhada que passe;
  • Deixar um ebó-ação-movimento-fotografia pensado naquele momento com a relação estabelecida com o espaço, com as pessoas e com a caminhada;
  • Partir para a próxima encruzilhada quando achar necessário, em cortejo, com os braços rígidos segurando o tecido.
  • Fazer essas ações até acabarem as encruzilhadas ou
    até eu estar morta de cansaço.

 

Essa foi parte de uma cura para as violências que passei nas ruas, violências institucionais e artísticas, violências de existência – envolvendo esse Intercâmbio, mas que vem de muito antes dele. Pelo racismo, mesmo que não assumido e que articula meu sumiço (de várias ordens) por causa da minha origem – e não falo de BR, falo da origem que se faz visível no meu corpo, corpulência, nos meus rasgos.

Essa necroperformance foi um parto difícil, a pensei no primeiro mês, mas só a fiz no terceiro e último, pois tive medo de realizá-la – por ser na rua, por ser num ambiente que eu frequentava bastante e que me deixava desconfortável de várias formas. E ela foi pensada mediante a influência que recebi naquele mesmo lugar (Centro de Oaxaca de Juárez e alguns pueblos que visitei), com os vários panos bordados sendo vendidos para turistas. Mulheres dos pueblos ou lojas que compravam esses bordados por um preço baixíssimo e vendiam a preços absurdos.

A exploração turística de pessoas indígenas é uma realidade no México. E não é o indígena que é valorizado, mas sim o seu “artesanato” (palavra esta que, inclusive, é utilizada para diminuir aquilo que é arte). Souvenir mexicano.

No terceiro mês veria que o bordado também é bastante feito pelas mulheres negras da Costa Chica, porém não tem a mesma “notoriedade” que a arte indígena. Por se tratar de algo mais comum e que não “se destaca” por ser “algo negro”, como é o caso de algumas danças representativas dos pueblos negros[6].

Mas bem, eu queria algo que conversasse com aquele espaço e que ao mesmo tempo abraçasse a minha estranheza naquele mesmo espaço. O bordado me atravessou – não pela beleza, mas pela crueldade que aquilo tudo envolvia, pela recordação familiar que também me trazia (a minha avó era bordadeira, costurava também a tarrafa que meu avô usava pra pescar).

Pensei num pano branco com aquela pergunta bordada. Só tinha um problema, o bordado havia morrido com a minha avó, nenhuma de suas filhas ou filhos aprenderam o ofício, nem as suas netas e netos. Eu não sabia e ainda não sei bordar.

Uma das pessoas que me recebeu no México, a artista-dançante Beatriz Robles, me disse que sabia bordar, que aprendeu com a sua mãe em seu pueblo e que poderia fazer. Me senti estranha com aquele autoconvite afetuoso, porque pensei inicialmente que teria que ser uma tarefa minha. Aceitei, mas se fosse um processo nosso. Ambas toparam. Compramos o material no Centro. Esse material ficou parado por um tempo. Nem Betty nem eu demos conta naquele momento, o tempo passava e já já teria que ir embora. Tinha desenhado a frase no tecido, viajei para um estado vizinho e lhe disse que quando retornasse poderíamos retornar o projeto. Retorno então e Betty me diz que deixou o tecido em seu pueblo, que falou com a sua mãe e ela fez questão de bordar o tecido. Emma Reyes Reyes – a havia conhecido semanas antes, nos comunicávamos com sorrisos e gargalhadas, ela me achava bonita e eu a achava bonita também. Eu aceitei.

Eu estava recebendo um presente no meio de tudo aquilo que me puxava pra baixo: afeto e trabalho, juntos. Isso tudo fez parte da minha cura. Isso e a felicidade de ter conhecido várias bordadeiras, mães e avós de amigas que fiz. Pessoas que me alimentaram, me receberam em suas casas, me contaram histórias de abuso e de dor também. Confiaram e compartilharam.

E tiveram outras pessoas que me ajudaram a realizar essa necroperformance: Alma Navaerz, outra pessoa que me recebeu na cidade e que também costurou a barra do tecido utilizado; Viviana Lorenzo, que topou filmar a necroperformance realizada em Oaxaca; Marbella Figueroa, que me recebeu em sua casa na Cidade do México e que topou filmar a necroperformance por lá; Shayane Santana, que me recebeu durante um mês em sua casa (e que literalmente me salvou) e aceitou registrar por fotografia as duas ações, em Oaxaca e na Cidade do México.

Super clichê e tenho problemas com eles, mas...

Essa experiência foi sobre dor e muito afeto envolvidos. Não conseguiria me curar sozinha, eis uma realidade. Então dou por encerrada essa escrevivência de processo de morte com duas autópsias:

 

Cartografia-Autópsia da morte Nº I

Oaxaca de Juárez, Oax. / MX

10 de novembro de 2019

Decidi realizar a necroperformance pela primeira vez no dia do meu aniversário (10/11), não por coincidência ou insistência de um expurgo. A escolha da data foi porque sempre achei curioso pessoas que morrem no mesmo dia do seu nascimento. E quis ter essa experiência de ter nascido e morrer no mesmo dia.

Fui para o Zócalo Oaxaca, Vivianna e Shayane me acompanharam. Conversei com elas sobre o trajeto que caminharia, sobre as paradas nas encruzilhadas, sobre as possíveis ações em cada encruzilhada – os ebós, trabalhos que deixaria ali, falei também sobre estar na rua e bastante nervosa. Combinamos um sinal entre nós três, pois disse que a partir do momento que começasse eu só seguiria.

Atravessei o Zócalo e passei em frente a Catedral de Nuestra Señora de La Asunción, dobrei para a direita na Av. de la Independencia e em seguida passei boa parte do percurso na Calle Macedonio Alcalá – por ser uma rua de maior fluxo de pessoas e sem circulação de carros. Essa rua é um “andador” – onde o fluxo de carros só acontecia nas ruas que a transpassavam, por isso que nas encruzilhadas eu tinha que escolher algum dos quatro pontos na calçada ou em alguma parte da rua que era andador, antes ou depois da zona de carros.

Em seguida, ao encontrar o Templo de Santo Domingo nessa mesma rua, eu dobrei na Calle de la Reforma e parei na encruzilhada do Jardín del Pañuelito[7], finalizando a necroperformance. Foram seis encruzilhadas no total. Seis ebós.

 

Cartografia-Autópsia da morte Nº II

Ciudad de México, CDMX / MX

18 de novembro de 2019.

A minha segunda morte também aconteceu no Centro Histórico, mas dessa vez na Cidade do México, capital do país. Partimos do metrô em direção a Estação Bellas Artes. No metrô estava segurando o tecido, contei de algumas situações de violência que tinha passado naquele espaço. Pensei que poderia levantar e abrir o tecido, assim o fiz. Foi uma encruzilhada de outro plano que esteve ali. Eu, em pé e o pano sendo aberto e mostrado.

Saímos do metrô e da estação e caminhamos em direção a Av. Juárez / Av. Francisco I. Madero, outro andador que funciona na mesma dinâmica do andador da primeira morte. Caminhei do início dele até o Zócalo da Cidade do México, onde finalizei a ação. Ao todo foram cinco encruzilhadas, mas dessa vez os trabalhos foram diferentes.

Não senti de realizar os ebós, não de forma direta com movimentações/fotografias, “apenas” ficava parada por um tempo em algum ponto da encruzilhada com os braços estendidos, segurando o tecido. Às vezes me cansava e o colocava como uma faixa de miss_muerte. Era um andador bastante comercial e de fluxo intenso, principalmente porque era feriado (Buen Fin – uma piada pronta). Geralmente parava na frente de alguma loja que estava na esquina ou então no meio do acesso à faixa de pedestre.

Os ebós aconteceram naturalmente e não necessariamente nas encruzilhadas. Encontrei uma vitrine de bonecas e parei na frente dela com o tecido erguido (segundo ebó); parei ao lado de um artista de rua pintado de verde e vestido de soldado (terceiro ebó); parei em frente a uma livraria, e foi o momento em que uma policial que estava do outro lado da esquina falasse com as minhas amigas e companheiras de necroperformance, onde insistiu que elas dissessem quem era pessoa responsável e que passassem os dados e explicassem o porquê daquela ação estar sendo feita. Minhas companheiras argumentaram que se tratava de uma expressão artística independente, que não estávamos ali a mando de nenhuma organização política. A policial continuou insistindo, disse que era para a nossa proteção, elas argumentaram que não andaríamos muito e que a ação já estava perto do fim, que estávamos resguardadas pela constituição mexicana com o direito de liberdade de expressão, por fim a policial cedeu e liberou as minhas companheiras (essa tensão com a polícia foi o quarto ebó – dessa vez numa encruzilhada).[8]

 

 

Referências Bibliográficas

MBEMBE, Achille. Crítica de la Razón Negra. Futuro Anterior Ediciones: Barcelona, 2016.

 

[1]  Noção explanada em minha dissertação de mestrado. Muitas palavras e processos que seguem aqui começaram a serem gestadas numa pesquisa intitulada A gente combinamos de escreviver: poéticas pretas e modos de autopotência nas Artes Cênicas (Pesquisa realizada no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte / PPGArC-UFRN, defendida no ano de 2020).

[2] Esse Dicionário – ou Diciordinário, como gosto de chamar – foi motivado pela vontade em ressignificar algumas palavras que atravessam a minha vida de forma mais latente. Aqui ele aparece de forma tímida, mas trata-se de um dicionário pessoal, onde me libero a desencaixar algumas palavras que me pulsam. A partir dessas reestruturas tento me ressignificar também perante o mundo, cercando-me assim de palavras e significados menos concretos e mais maleáveis.

 

[3] A população negra do México se identifica e se autodeclara com/como os seguintes termos: negros, afromexicanos ou afrodescendientes (termo utilizado pela ONU). Porém muitos utilizam a palavra “moreno” para definir o tom da sua pele. No censo comum, para população em geral chamar alguém de “negro” é algo ofensivo, por isso o “moreno” é bastante utilizado.

 

[4] MBEMBE, Achille. Crítica de la Razón Negra. Futuro Anterior Ediciones: Barcelona, 2016.

[5] Quando pensei nessa necroperformance ainda não havia ido à Costa Chica de Oaxaca, lugar mais pobre, precário e miserável de recursos que estive no México, e que não por acaso é o lugar em que mais convivi e vi pessoas negras – afromexicanas.

[6] A danza de los diablos, a danza del toro petate o de los vaqueiros, los sones de artesa, a danza de la tortuga, a danza del macho mula), que são dançadas também como forma de reconhecimento de sua existência naquele país (em especial a danza de los diablos).

[7] A ideia era terminar a necroperformance dentro desse Jardim, porém estava acontecendo um evento particular no local e o mesmo se encontrava “fechado”.

[8] Uma compilação de algumas imagens e momentos dessa necroperformance foi registrada por Marbella Figueroa e pode ser vista através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=ae9L-Q6kB8o&feature=youtu.be>.

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