Inovar sem esquecer a tradição

Por George Holanda
20/03/2018

 

Num momento em que o teatro parece cada vez mais apagar as bordas entre o ficcional e o real, chega a ser impressionante a resistência representada por um espetáculo como A Casatória c´a Defunta, da Cia. Pão Doce, dirigido por Marcos Leonardo. Enquanto o teatro tem optado por uma cena que flerta com uma postura mais cotidiana, sem “teatralidade”, como se tudo fosse improviso (ainda que não seja), A Casatória investe considerável energia em um trabalho que se mostra o oposto disso, o que não quer dizer que seja uma obra antiquada, longe disso, ela apresenta suas ousadias dentro da tradição em que se insere.

O cuidado e a precisão nos gestos dos atores, o apuro visual, a bem executada música, a atenção aos detalhes do figurino e do cenário, tudo isso coloca a obra num elevado patamar de requinte plástico. E como se isso se não bastasse, há no conjunto de todos esses elementos uma reunião harmoniosa em favor da encenação. 

Talvez o melhor exemplo disso seja o seu elaborado desenho de cena. Não poucas vezes uma ação realizada por um ator encontra um som executado por outro. Ou o gesto de um ator dura o tempo necessário para que um outro possa mudar de figurino. Ou ainda a colocação de um elemento em cena por um ator parece encontrar o momento exato para que outro o utilize. Tudo isso poderia não causar surpresa, já que não é prática pouco usual no teatro. Contudo, o que chama a atenção em A Casatória é a recorrência dessa prática, ainda mais numa contramão do que se tem feito hoje com mais frequência. Tamanho apuro também se destaca por ser um trabalho de rua, que costumeiramente prescinde de uma cena tão desenhada, o que torna compreensível a possibilidade de uma apresentação em ambientes fechados, como aconteceu no FICA Natal - Festival Internacional da Casa da Ribeira ano I. Resulta que as ações como desempenhadas constroem uma elaborada engrenagem da cena e que trabalha em prol do caminhar da narrativa. Cada gesto realizado ou elemento cênico utilizado está inserido num conjunto de ações responsáveis pelo desenrolar do espetáculo e por seu ritmo. A sensação despertada é que A Casatória é composta de peças que se encaixam precisamente e que fazem a máquina teatral funcionar.

Com essa descrição se poderia pensar que o espetáculo corre o risco de ter um ritmo incessante ou ser sufocado por um excesso de formalismo. Entretanto, é o oposto. Se todos esses elementos formam um esqueleto em que cada osso está ligado a outro para sustentar toda a estrutura, é na narrativa construída - que conta a história de amor e de desencontros de Maria Flor e Afrânio - que formam os órgãos desse corpo, colocando vida e humor, o que aí também se deve ao desempenho inspirado dos seus atores.

Em A Casatória nada se apresenta desnecessário, cada precisa ação remete a uma ideia de concretude, um evidenciar de uma técnica fruto de ensaios a se chegar naquele resultado. Assim, é bastante simbólico que o maior conflito da história se dê pelo fato de uma mulher que já morreu se apaixonar por um homem vivo (Afrânio) que, por sua vez, ama uma mulher viva (Maria Flor). No final das contas, faz todo o sentido Afrânio querer encontrar sua amada viva e nunca se contentar com sua pretendente morta, pois assim como ele, o desejo da Cia. Pão Doce é pelo concreto e não pelo etéreo. O desejo de Afrânio pela vida, nesta perspectiva, encarna o espírito do grupo que aspira pelo real labor do teatro. 

O ambiente dos mortos se encontra abaixo do dos vivos, por isso os atores enquanto estão no mundo real caminham sobre tamboretes, presos aos seus pés, para demonstrar essa esfera superior. Mas a altura causada pelos tamboretes não cria um tom de elevação. As ações executadas de forma exata, a fala com expressões nordestinas que referenciam o mundo real, o figurino que transforma o simples em requintado pelas mãos de Marcos Leonardo, tudo isso aponta para o real, mas um real que se dá pelo trabalho, pois é mais difícil caminhar sobre tamboretes do que no próprio chão.

A história de Maria Flor e Afrânio serve de metáfora também para as sutis inovações dramatúrgica proposta por Romero Oliveira. Obrigados a casar sem se conhecer, eles querem enfrentar esse costume da sua cidades. O espetáculo se encontra ligado a um teatro popular, de rua, que trabalha com o cômico. Mas a dramaturgia apresenta ousadias que fogem dessa tradição. Um bom exemplo é a cena inicial, em que Maria Flor e Afrânio declaram não querer casar, como num diálogo com seus pais mas sem a presença e a fala destes. Essa concisão dramatúrgica dá espaço para o gesto, a encenação, o humor e escapa de uma dramaturgia que poderia pecar pelo didatismo. 

A Casatória sabe fugir das emboscadas que poderia cair e centra forças no teatro como potência e técnica. Aliás, essa mesma técnica que por vezes se evidencia, na ação ou no canto por exemplo, revela uma outra faceta do seu viés contemporâneo, ao criar um delicado distanciamento, ao revelar que tudo ali é teatro e que não tenta a todo momento nos convencer da sua ilusão. Ao encontrar a tradição, A Casatória escolhe no que inovar, firmando sua assinatura e criando sua identidade, tudo com muito afinco e beleza.

 

Ficha Técnica

Direção: Marcos Leonardo

Dramaturgia: Romero Oliveira

Elenco: Mônica Danuta, Paulo Lima, Raull Araújo, Ligia Kiss e Romero Oliveira 

Direção Musical: Romero Oliveira 

Preparação Vocal: Flávia Maiara

Apoio Técnico: Bárbara Paiva

Cenografia e Figurino: Marcos Leonardo

Confecção dos Jarros: Isaías Medeiros

Confecção dos Bancos: Evanilson

Confeccção das Máscaras: Cia. Pão Doce de Teatro

Bonecos: Romero de Oliveira e Edgley Almeida

Costureiras: Iranir Marques e Evilene Costuras

Ferreiro: Josenildo

Iluminação: Júnior Félix

Maquiagem: Marcos Leonardo e Romero Oliveira

Fotografia: George Vale

Filmagem: Adreilson de Castro

Design Gráfico: Igor Castro

Coordenação: Chico Window

Produção: Cia. Pão Doce de Teatro

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