[Algumas considerações sobre 'desmontagens']

Por Heloísa Sousa
10/03/2018

Durante um micro-seminário de crítica organizado pela Revista Antropositivo em 2017, na cidade de São Paulo (SP), a artista e também crítica de teatro Ana Carolina Marinho (natalense, residente em São Paulo e fundadora do grupo Estopô Balaio) falou sobre a contradição em usarmos um instrumento literário – o texto escrito – para falar sobre uma obra de arte cênica que se manifesta através de outra mídia. Esse processo de “tradução” poderia apresentar algumas perdas em relação às peculiaridades da experiência estética, no entanto, poderia também explorar outras formas de discussão e de pensamento sobre a obra em si.

Diante disso, podemos nos questionar: como falar de teatro, de trajetória artística e de processo criativo, sem precisar – necessariamente – recorrer a escrita e publicação de textos em plataformas convencionais? Descobrindo essas outras formas de produzir pensamentos e discussões sobre as obras cênicas, não conseguiríamos atingir outras pessoas, diferentes daquelas que acessam os textos? A democratização do acesso ao pensamento artístico não deveria passar pela questão da “forma de expressão” para além do conteúdo discursivo em si? Tudo isso seria, de fato, democratização ou apenas outro modo de instituir novas “bolhas de interação”?

A partir dessas questões seria possível elencar muitas outras que nem estariam diretamente relacionadas ao (espetáculo?) “Desfazer A-MA-LA” da Humatriz Teatro (PR) apresentado durante o Festival Internacional Casa da Ribeira (FICA Natal 2018); mas que nos fazem refletir sobre esse movimento de “desmontagem” que tem interessado algumas artistas mulheres.

A atriz e palhaça Adelvane Néia é fundadora da Humatriz Teatro e autora do solo “A-MA-LA” que estreou em 1997 a partir de suas investigações e propostas no universo do clown. A artista é reconhecida nacionalmente por seus trabalhos e por ser uma das representantes do que seria a “comicidade feminina” que propõe o uso das imagens, ações e discursos associados a representação social da mulher para a construção de uma figura cômica que apresenta suas contradições e, por vezes, seu lado grotesco. Em um cenário artístico e social com predominância de figuras e discursos masculinos; a própria presença feminina como a de Adelvane Néia já se mostra subversiva e necessária.

No processo de desfazer/desmontar de A-MA-LA, somos apresentados à palhaça Margarida com uma caracterização colorida e com referências na moda da década de 1960, com forte presença cênica e uma movimentação que transita entre a rigidez e o desequilíbrio. Nos momentos de fala, percebemos uma necessidade da personagem em cumprimentar as pessoas, em línguas diferentes e, por vezes, incompreensíveis, como quem buscasse encontrar alguém – talvez um homem. Essa forma de se expressar, essa busca junto com suas falhas e desequilíbrios, me fez lembrar da personagem real Joan Crawford vivida pela atriz americana Jessica Lange no seriado “Feud”. Essa necessidade em sustentar uma forma feminina, heteronormativa, mas que ao mesmo tempo, evidencia muito mais complexidade do que a representação social de mulher permite. 

Após essa apresentação, Adelvane Neia se desmonta e senta diante de nós, espectadores. Inicia-se uma leitura de um texto escrito pela própria atriz e que fala de sua trajetória, suas questões e desejos até então. Talvez, mobilizada pela possibilidade de falar de teatro através do próprio teatro, a atriz se propõe a desmontar obra “A-MA-LA” mais de vinte anos após sua estreia. Mas, de onde vem essa necessidade de desmontar?

Duas outras atrizes e suas desmontagens inspiram Adelvane nessa proposta: a atriz Tania Farias (Ói Nóis Aqui Traveiz / RS) com “Desmontagem – Evocando os Mortos” e a atriz Teresa Ralli (Grupo Cultural Yuyachkani / Peru) com “A Desmontagem de Antígona”. Questões como o processo criativo da atriz, a construção da linguagem cênica e os discursos políticos e sociais ao redor desse fazer mobilizam todas essas mulheres.

Para além dos discursos, o formato da desmontagem é algo que desperta interesse – talvez, principalmente, em outros artistas. Os pesquisadores Caleb Farias Alves e Leticia Virtuoso escrevem o artigo “Nos meandros do processo criativo: o ritual de desmontagem no teatro”, onde analisam essa proposta cênica por uma perspectiva ritualística onde o espectador encontra a atriz, a personagem, sua vida pessoal e profissional, além de experimentações técnicas e descobertas oriundas de laboratórios de investigação cênica. Os autores citam Victor Turner ao dizer que esse ritual assume uma subversão da organização social. E eu completo, com o pensamento de que a produção de textos críticos em formatos convencionais, embora necessários, ainda fazem parte desse formato pré-estabelecido socialmente de democratização do conhecimento. E a cena, inquieta como o próprio artista, passa a utilizar de si mesma para falar de si mesma.  

A atriz nos traz, não apenas a personagem, mas o sujeito criador por trás do repertório construído e mostra seu percurso de pesquisa. Realiza uma reflexão coletiva sobre seu trajeto e sobre si mesma. Nesse sentido, é impossível uma artista falar de sua trajetória e não falar de si mesma enquanto mulher. Pois a crença sobre a inexistência de incoerências, desigualdades, opressões, assédios e violências em espaços onde se predominam as artes, as filosofias, as sociologias e outras formas de conhecimento é falsa.

Por fim, questiono apenas o apego ao texto escrito – em sua materialidade – durante a desmontagem de “A-MA-LA”, a separação quase cartesiana entre os momentos de declamação do texto e das aparições da palhaça Margarida que, por vezes, apresenta as ações e interações com o público de modo ilustrativo ao invés de ressaltá-los como descobertas do processo. A desmontagem, enquanto linguagem, fricciona teatralidade e performatividade; no entanto, dilui as ficcionalizações e se coloca como um rasgo na intimidade do artista. Nesse ponto, os diálogos com Adelvane Neia após a apresentação, a oportunidade de vê-la falando mais sobre si mesma, talvez complete a experiência e nos mostre um outro tom que poderia afetar muito mais o desfazer em si.

Atuação: Adelvane Neia

Direção: Silvana Stein

Iluminação: Iara Souza

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