A dimensão do que somos e dos nossos limites

Por George Holanda
29/08/2017

A imagem inicial de Cinzas ao Solo tem Alexandre Américo, seu bailarino e criador, sentado ao centro do palco, com uma luz fluorescente, que ocasionalmente falha, acima dele. Alexandre parece lavado pela brancura da luz. Seus movimentos, que de início envolvem apenas a parte superior do seu corpo, também possuem uma limpeza pelas bem delineadas ações e pelo som que ele emite ao executá-las. À medida que o bailarino se movimenta percebemos que ele está sobre uma fina camada de cinza, que passa a se deslocar pelo ar em razão dos seus gestos, chegando a criar uma nuvem. Esse começo sutil é contrastado por uma posterior etapa em que o bailarino dança na terra de forma enérgica, sujando-se, sob uma luz mais quente e amarelada.

Diante dessa descrição, pode-se perceber que Cinzas ao Solo é formado por dois elementos primordiais: a coreografia de Alexandre Américo e a cenografia, que ainda que não creditada no programa, pode-se entender pela direção artística de Mathie Duvignaud e pela luz de Laura Figueiredo. As contradições existentes e provocadas por cada um desses dá o tom do trabalho.

Em Cinzas, a figura que dança é a do homem que vive entre dilemas, ele se localiza entre o céu (luz branca acima) e o firmamento (cinzas abaixo), entre o racional (luz) e o sentir (cinza/terra). Alexandre é esse homem que sente, que mergulha na sensação, como a cinza que adere a sua pele ou a terra que o suja. Mas também é o homem que pensa e decide o que fazer, sem perder a consciência do que se passa, como faz o bailarino em várias passagens ao interromper abruptamente um movimento e passar a caminhar, como que decidindo por uma nova ação.

Se o uso das cinzas e posteriormente da terra ao longo do espetáculo pode apontar para uma propensão maior desse homem ao sentir, pelo gradativo impacto sensorial que esses elementos despertam, a luz e a coreografia não deixam a obra caminhar para esse entendimento, colocando o homem sempre entre os pólos (dilemas), experimentando cada um deles de forma equânime. 

A riqueza e delicadeza do cenário/luz de Mathie Duvignaud e de Laura Figueiredo se soma à dança de Alexandre Américo de modo que aquele passa longe de ser apenas uma ambientação ou a repetição de uma ideia que se poderia dispensar. Ele se une à coreografia na construção do espetáculo em si. O atrito entre a coreografia e o cenografia permite uma leitura da obra para além desses elementos isoladamente. Mas isto somente funciona tamanha elaboração de ambos. As oposições do cenário (luz/terra) funciona como metáfora das oposições que encontramos na figura que dança (pensar/sentir), mas também constrói um aspecto existencial do espaço em que ele se encontra.

Exemplo disso é a passagem em que, com o ar saturado por cinzas, Alexandre deita-se, apoiado apenas pelo seu tronco, como que voando, mas criando em seguida uma tensão física que foge da ideia de levitar. Alexandre com isso não apenas se utiliza da nuvem de cinzas para “voar”, mas ao tensionar evidencia o ambiente sufocante, gerando uma contradição inerente à existência desse homem. Um homem que ora atende à luz/ pensar, ora ao sentir/cinza, mas ao transitar pelos dois atende principalmente a si mesmo.

Este homem atenta ao sentimento mas também ao racional. E nisso Cinzas reconhece a crua e verdadeira dimensão humana, que não aceita limites e sofre por ter que lidar com eles.

Ao final, Alexandre coloca em sua cabeça um crânio de um boi, que permaneceu ao fundo do palco por todo o trabalho e antecipava seu uso em algum momento. Esta é uma última e forte imagem do espetáculo. Não à toa, o objeto resume bem os opostos que a obra discute: o racional por ser uma cabeça, mas também o sentir por pertencer a um animal, um ser mais guiado pelo instinto que nós. 

O trabalho nos afronta ao nos lembrar, o que muitas vezes na nossa pequenez não queremos recordar, que não somos apenas um, mas muitos. E que os limites podem estar fora ou dentro de nós, mas igualmente podem ser ultrapassados.

 

Ficha Técnica

Bailarino-Criador: Alexandre Américo

Diretor Artístico: Mathieu Duvignaud

Dramaturgia: Morvan França

Luz: Laura Figueiredo

Trilha Sonora: Toni Gregório

Voz: Ionara Marques

Adereço: Jô Bonfim

Exposição: Morvan França

Impressão de Fotografia: Estúdio P.

Fotógrafo: Brunno Martins

Produção: Celso Filho - Listo! Produções Artísticas

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