[Pulsação]

Por Heloísa Sousa
11/08/2017

A segunda edição do Encontro de Dança 2017 abre sua programação com o espetáculo “Lub Dub” do Balé Teatro Castro Alves (BA) com coreografia do sul-coreano Jae Duk Kim. A persistência e a organização de um evento como o Encontro de Dança em um cenário artístico como o natalense, coordenado por Diana Fontes ao longo desses dez anos, já se configura como uma obra à parte. Eu acompanho o Encontro de Dança há cinco anos e tenho visto de perto a batalha pela manutenção das experiências oferecidas, além do público crescente que vem acompanhando este momento de ver (e encontrar) artistas da dança de várias partes da cidade, do país e do mundo. [Tudo isso gratuitamente]. A abertura deste ano me lembrou um momento significativo, quando no Encontro de Dança de 2015 pude assistir ao espetáculo “Darkness Poomba” do grupo sul-coreano Modern Table Company dirigido pelo mesmo coreógrafo de “Lub Dub”.

As semelhanças estéticas entre esses dois espetáculos são visíveis. Jae Duk Kim é um coreógrafo de precisão, os movimentos sugeridos em suas composições nos fazem lembrar a concentração e exatidão de algumas expressões culturais orientais como o kung fu e o tai chi chuan. A circularidade presente nas cenas, o minimalismo visual, a força sensorial dos ritmos das músicas que seguem na trilha sonora; tudo isso parece ser parte da pesquisa do coreógrafo que torna perceptível seu contexto cultural. A concepção de movimento de Jae Duk Kim é baseada na intensidade do corpo, na pulsação e em uma exploração da cinesfera do corpo que dança, buscando inclusive seus limites. Neste ponto, a vivacidade desse corpo que pulsa, transpira e se move parece se contrapor a artificialidade da perfeição.

No entanto, Jae Duk Kim tinha em suas mãos um desafio. Como cruzar suas concepções estéticas [orientais] com corpos afetados pela cultura nordestina, baiana e suas micropolíticas? Desse encontro surge “Lub Dub”, um espetáculo inspirado nas pulsações do coração, nas sonoridades do corpo enquanto o sangue corre pelas veias. Mas, para além disso, “Lub Dub” fala de transculturação e de resistência, porque por mais que todos os corpos pulsem, as vidas que reverberam dessa pulsação são completamente distintas umas das outras. E são desses encontros entre corpos pulsantes e discrepantes que surge a arte, ou seja, a vida.

Corpos negros, brancos, femininos, masculinos, singulares com estruturas físicas distintas e peculiares em relação aos corpos orientais; parece que o desequilíbrio, a imprecisão, o gingado, a abertura dos braços, a leveza dos quadris são próprios da nossa brasilidade. Percebe-se uma coreografia que grita exatidão, mas o que se vê são corpos que nem sempre atendem a essa qualidade [diferente dos corpos coreanos que dançavam “Darkness Poomba] e por mais que houvesse um esforço de sincronia, havia também naturais [des]encontros. No início, pensei que talvez isso prejudicasse a intenção da obra coreográfica, mas depois comecei a pensar sobre o quanto isso dizia sobre nós brasileiros, sobre a nossa arte, nossas necessidades, nossa cultura e nosso contexto.

O Balé Teatro Castro Alves foi a primeira companhia de dança pública do Norte-Nordeste, fundada em 1981. Em um contexto político atual, onde companhias brasileiras vêm ameaçando encerrar suas atividades, onde os teatros públicos vão se fechando sem novas perspectivas [como o Teatro Alberto Maranhão, onde a Modern Table Company se apresentou em 2015], onde eventos gratuitos como o Encontro de Dança sofrem para conseguir apoios para acontecer.... ali, sentada na cadeira do enorme Teatro Riachuelo, senti que aquela experiência estética do “Lub Dub” dizia muito mais do que o release nos apresenta.

As imprecisões, o cansaço, a diferença, o ritmo parecem revelar falhas da obra; mas não, elas revelavam a organicidade da mesma, a nossa batalha cotidiana para fazer pulsar essa vontade de mover-se. E falo do meu prazer em ver no palco não apenas bailarinos, mas artistas que compartilham do mesmo espaço e das mesmas necessidade que eu. “Somos todos irmãos da lua...”

“E o homem possui a fala, e a fala edifica o canto, e o canto repousa a alma, da alma depende a calma...”[1]. O bailarino e cantor Gilmar Sampaio permanece no palco durante todo o espetáculo e acompanha com a sua voz a trilha sonora, também assinada por Jae Duk Kim. A sonoridade do espetáculo é intensa, variante e um dos elementos mais marcantes da obra. Isso também parece ser uma característica do coreógrafo. Os movimentos acompanham as batidas da música que também revela traços da transculturação e funde pulsos intensos com canções afrodescendentes. A dramaturgia de “Lub Dub” é a própria sonoridade e enquanto cena contemporânea, o discurso da obra não está na enunciação de alguma filosofia a ser apreendida pelo público. Em “Lub Dub”, o sentir é primordial, é estar envolvido pelos sons e movimentos, quando as batidas do nosso coração se encontram com a música. Ver dança, sentir dança, entender dança.

Por fim, entendendo a experiência estética como algo que vai para além da apresentação do espetáculo, mas engloba também todo o seu movimento cotidiano enquanto espectador de se deslocar até o teatro e de sair dele após esse momento; há algo que preciso dizer. O Teatro Riachuelo estava [lindamente] lotado para a abertura do Encontro de Dança, assim como no ano passado com a apresentação de “Sobre isto, meu corpo não cansa” da Cia. Quasar (GO). Me pergunto onde estão essas pessoas ao longo do ano nos outros espaços culturais resistentes desta cidade, em apresentações de grupos de dança e de teatro locais que compartilham suas obras de intensas pesquisas artísticas com três ou quatro pessoas no público? O que nos faz evitar espaços periféricos como ABOCA Cultural, o Espaço A3, O Espaço Gira Dança ou a Casa da Ribeira no bairro da Ribeira; ou ainda o Barracão dos Clowns no bairro de Nova Descoberta? A ilusão de que a falta de segurança da cidade não atinge as avenidas principais ou espaços ditos “centralizados” vem provocando desistências de artistas e minando o cenário cultural de Natal. Se você está lendo essa crítica e também estava presente na abertura deste evento, peço que se questione: como você contribui para a pulsação artística desta cidade? Este coração pode enfartar[2]...

[1] Música: “Irmãos da Lua” de Renato Teixeira

[2] Enfarte: Morte de células no coração, causada pela falta de oxigenação.

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