Quais são os mortos que ainda temos que enterrar?

Por Diogo Spinelli
14/05/2017

Se no interior de Pernambuco os urubus se deleitam com as sobras de bois mortos, na capital paulistana a carniça que alimenta esses animais é de outro tipo de boys. É isso o que nos conta o agourento coro de urubus de Ossos, adaptação do Coletivo Angu de Teatro para o livro Nossos ossos, do também pernambucano Marcelino Freire, apresentado no Trema! Festival.

Ao adentrar o espaço do teatro, a contraluz vermelha que preenche o ambiente associada às imagens dos atores seminus em seus últimos aquecimentos pré-cena nos transportam para o ambiente característico de um inferninho. E é justamente no trânsito entre esse universo marginal paulistano e as tradições do interior pernambucano que se desenvolvem tanto a encenação quanto a dramaturgia, que nos contam, entre idas e vindas temporais, a jornada do escritor e dramaturgo Heleno na tarefa de entregar de volta à sua família e à sua terra o corpo assassinado de Cícero, garoto de programa pelo qual havia se apaixonado em São Paulo.

A estética de cabaré marginal é reforçada tanto pela iluminação pouco usual da obra, composta de inúmeros efeitos, cores vibrantes e fontes de luz diversas, cujas recorrentes sobreposições resultam por vezes conflitantes, quanto pelos figurinos dotados de forte teor fetichista e erótico, e pelas presenças dos corpos desnudos dos atores que – com a exceção do narrador/protagonista Heleno – podem ser observados em meio às trocas de roupas realizadas às vistas do público, numa espécie de camarim que ocupa as duas laterais do palco.

Entre comentários sarcásticos proferidos pelo coro de urubus-gogo-boys e leituras de trechos do livro original no qual a dramaturgia se baseia, acompanhamos Heleno em seu percurso no qual procura enterrar, literalmente, sua história de afeto com Cícero. Nessa trajetória, Heleno se depara tanto com figuras algo estereotipadas da noite gay paulistana, como a travesti Estrela e o garoto de programa Alceu, quanto com personagens arraigadas às crendices populares, como Lourenço, motorista destinado a transladar o corpo de Cícero de volta à Pernambuco. Somos apresentados também a algumas memórias de Cícero, dentre as quais destaca-se aquela na qual há em cena a emulação explícita do ato sexual entre ele e Heleno, e na qual é possível entrever de forma mais clara a relação estabelecida entre aqueles dois pernambucanos perdidos na capital paulista.

Soma-se também a narrativa a presença de números musicais que permeiam toda a obra. Ainda que em determinados momentos esses números adicionem certo lirismo ao espetáculo, é nas poucas vezes nas quais, de alguma maneira, se aproximam do universo dos karaokês que lotam a região central de São Paulo com músicas bregas, que eles mais se harmonizam com a encenação proposta.

É possível vislumbrar no excesso de informação em todos os campos que constituem a obra uma poética da cena, composta de elementos não necessariamente coesos, mas que podem simbolizar a grande babel do submundo paulistano. No meio do caos, surgemmomentos de beleza e poesia, mas esses logo se perdem em meio à solitária e dolorosa tarefa que Heleno destinou a si mesmo.    

Em certo grau, a montagem acaba por reforçar estereótipos relativos à marginalidade e à homossexualidade – inclusive na associação histórica entre esses dois termos –, sendo o final destinado a Heleno (independentemente de fiel ou não à obra original) digno de reconsideração dada a carga preconceituosa que nele se encerra.  Numa sociedade na qual a homossexualidade ainda é tratada de forma estigmatizada e na qual ainda se fazem raras as representações de homossexuais que fogem a esses mesmos estigmas em todos os setores da vida pública, é necessário que estejamos sempre atentos na verificação de como através de nossas obras podemos, ainda que inconscientemente, reiterar preconceitos em vez de destruí-los.  

Afinal, são esses os mortos que devemos, para sempre e cada vez mais, enterrar.

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