[Sobre estética, revolução e democracia]

Por Heloísa Sousa
26/03/2017

Em 2014, o diretor chileno Guillermo Calderón apresentou Escuela na 1ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, onde abordava a formação de guerrilheiros urbanos chilenos na época da ditadura do general Augusto Pinochet (1973 – 1990). Nesta ocasião, a figura de Jorge Mateluna aparece no trabalho de Calderón como um ex-guerrilheiro e membro do Movimento Patriótico Manuel Rodrigues que organizava ações de manifesto contra o ditador da época. Durante o processo de criação de Escuela, Calderón e Mateluna se conhecem e trocam informações que ajudaram na composição da obra, surgem aí também alguns laços de amizade e admiração por essa figura revolucionária. Pouco tempo depois, Mateluna é preso pela segunda vez no Chile, no entanto, essa sua prisão não é movida por questões revolucionárias, mas sim por um roubo a banco sem propósitos aparentes. Este fato reverbera em Calderón e seus atores e os mobilizam a montar o espetáculo Mateluna, abordando especificamente esta prisão e suas possíveis causas.

Os questionamentos sobre o que levaria Jorge Mateluna, considerado por suas contribuições contra o regime ditatorial, a cometer um crime de modo tão banal é o que constrói o desenvolvimento desta encenação. Ao longo do tempo, vamos percebendo que talvez Mateluna tenha sido vítima de um erro judicial que o condenou a cárcere privado sem este ser culpado do tal crime; e talvez, esta acusação tenha se construído como uma forma da polícia chilena punir o revolucionário por suas ações libertárias no passado.

Apesar de apresentar um contexto muito localizado ao remeter em cena o processo de criação do espetáculo Escuela e também a uma realidade histórica e relações muito pertencentes aos chilenos, é possível encontrar conexões entre a sua realidade e a nossa. Países da América Latina sofreram com ditaduras em diversos períodos que marcaram a formação das sociedades e caracterizaram nossas estratégias de revolução. A força de uma onda conservadora que engradece no mundo e busca condenar os movimentos sociais, os ideias de liberdade, os questionamentos e manifestações políticas, a ideologia da esquerda. É possível também se identificar com uma realidade onde o sistema judiciário nos acusa ao invés de nos proteger, e parece existir como estratégia de silenciamento a qualquer possibilidade de democracia que vá para além de uma definição constitucional.

Calderón conduz a história contada nesta encenação de modo muito objetivo e claro. Com alguns recortes textuais, os atores revivem cenas de Escuela ao mesmo tempo em que nos apresentam a segunda prisão de Mateluna junto com as percepções dos artistas sobre tal fato. A encenação se apresenta quase como uma explanação dos atores sobre a situação, intercaladas por alguns momentos de estranhamento, como as cenas revividas e as músicas cantadas em inglês.

Mateluna foi o último espetáculo que assisti da Mostra e que me inquietou quando percebi a recorrência de uma construção visual semelhante em espetáculos que se apresentam como teatro documental. Em cena, podemos ver microfones utilizados para determinar o lugar de fala e potencializar a voz, mesas e cadeiras onde se instalam os equipamentos eletrônicos que dão suporte a encenação, projeção de imagens e vídeos, além das vestimentas cotidianas usadas pelos atores. Visualizem que todos esses elementos vêm sendo usados em seu modo convencional, na mesma disposição de uma palestra ou aula, por exemplo, em vários espetáculos distintos. Pudemos ver esta imagem em Branco: o cheiro do lírio e do formol (Alexandre Dal Farra e Janaína Leite), em Mateluna, nas três encenações da Mostra Rabih Mroué, em Black Off (Ntando Cele) e para aproximar do cenário natalense, também observamos essa configuração em Jacy do Grupo Carmin (uma das propostas mais bem sucedidas da cidade no teatro documental) e em Conversas com meu pai de Janaína Leite em passagem por Natal no Barracão dos Clowns.

Será que estamos diante de uma homogeneização estética de uma possibilidade teatral tão política e tão provocadora da realidade? Encontramos um modo de identificação visual do teatro documental? Por que estamos em um fluxo de uso dos mesmos elementos da mesma forma? O didatismo do teatro documental não fere a sua própria teatralidade? A precariedade da teatralidade não reforça o racionalismo na experiência cênica remetendo inclusive as nossas experiências pedagógicas defasadas e ineficientes? As potencialidades dos discursos e das palavras não revelam juntamente a fragilidade dos mesmos enquanto estratégias de conexão entre os corpos envolvidos na experiência estética?

Devo dizer que finalizei meu momento nesta Mostra em crise, questionando inclusive as minhas escolhas enquanto artista no processo de criação em que me encontro atualmente. Saliento que estes questionamentos não diminuem a qualidade e a força do trabalho de Calderón, assim como a sua necessidade de denúncia, fazendo do teatro um local onde os fatos se apresentam com mais coerência do que na “realidade” dos jornais veiculados pelos países. A cena vive em uma corrente de auto-transformação contínua e propõe sempre outras formas de apresentação que evidenciam os questionamentos do teatro sobre si mesmo, da dança sobre si mesma e da performance sobre si mesma. O que estamos fazendo em cena? O que estamos fazendo na vida?

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