A revolução que está por vir.

Por Diogo Spinelli
19/03/2017

A missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa, estreia do coletivo Legítima Defesa na 4ª edição da MITsp, tem início antes mesmo de adentrarmos o teatro do Auditório Ibirapuera. No foyer de entrada, encontramos dispostas estruturas com faixas brancas nas quais estão escritas em letras vermelhas passagens da dramaturgia com a qual iremos logo mais nos deparar. A intervenção, que remete imediatamente à faixas utilizadas em protestos, dá pistas da estética urbana, contemporânea e periférica que percorrerá as mais de duas horas da montagem. E mais: nos informa que o espetáculo já começou, e que, na verdade, ele teve início em meados do século XVI.  

Adentrando o teatro propriamente dito, e antes ainda do espetáculo [oficialmente] começar, espiamos por debaixo da cortina a um corpo coletivo que se movimenta numa coreografia incessante ao som de rap enquanto o título do espetáculo é projetado de forma a ocupar o restante de toda a grande cortina do Auditório, aludindo aos processos de video mapping. Essa ocupação do Auditório Ibirapuera como um todo, bem como a utilização de todos seus recursos técnicos a favor da poética da encenação, continuará a ocorrer no decorrer da obra, composta por uma cena frenética em constante movimento na qual estão em [estado de] jogo corpos, vozes, música e interferências visuais e na qual são raros e estrategicamente localizados os momentos que possuem apenas um único ponto focal.

É através dessa voz coletiva – mas que ainda assim não perde suas individualidades –  e em meio à movimentos de street dance e hip-hop, performances que remetem a microfones livres, slams e saraus poéticos, somados ainda a uma trilha sonora que inclui nomes como MC Daleste e Carol Conka a samplers realizados ao vivo pelo dj e também encenador Eugênio Lima, e a composições jazzísticas – outra manifestação extremamente ligada à cultura negra – de dois músicos em cena, que os treze atores do Legítima Defesa contam sua versão para a obra A missão – lembranças de uma revolução do dramaturgo alemão Heiner Müller.

Da obra original, o coletivo ressalta mais as relações sociais e raciais que envolvem suas três personagens –  Debuisson, branco e filho de senhor de escravos, Galloudec, camponês “quase-branco” e Sasportas, um negro – do que necessariamente o contexto envolvendo a possível promoção de uma revolta de escravos na Jamaica a pedido da França. Uma vez que sabemos que essa micro sociedade é composta por esses três estereótipos, o contexto brasileiro se impõe com relativa facilidade, mesmo estando a narrativa entrecortada e aos fiapos. Em meio às doze cenas que compõem o espetáculo, enredam-se à obra de Müller pensamentos de importantes figuras, pensadores, e artistas do movimento negro; interferências essas que trazem de forma mais presente e direta o discurso que o grupo promove.

Apesar da linguagem urbana e de enfrentamento utilizada pela obra, há uma separação e um distanciamento na relação palco-plateia – que talvez se torne ainda mais agigantado pelas dimensões do Auditório Ibirapuera – não havendo um diálogo compartilhado entre os dois ambientes. Esse fosso que se abre entre o que está sendo feito, falado, dançado no palco, e nosso local enquanto público talvez seja justificado pelo fato de, a partir de determinado momento da encenação, a plateia ser associada ao local no qual está [estão, estamos os] Debuisson. Ainda que a composição do público de A missão em fragmentos tenha sido aquela com maior percentagem negra dentre as que pude acompanhar nessa edição da MITsp, sendo branco não apenas uma identificação racial, mas uma posição de poder, como relembra um dos atores em uma passagem da obra, de fato, podemos considerar privilegiada a plateia que pode assistir a um evento que termine próximo da meia-noite na zona central da cidade de SP. Todos que compúnhamos o público de A missão tínhamos nossa parcela de Debuisson. Se os Debuisson estão na plateia, o palco pertence aos atores que representam Galloudec e Sasportas. É a vez deles protagonizarem, e de nós, calarmos para ouvir. Talvez não seja ainda o tempo da comunhão.

Nesse sentido, soa ambígua a frase “todxs somos negrxs”, que aparece durante quase a totalidade do espetáculo projetada em luzes de led ao lado do posto do dj, e que é projetada ao fundo do palco quase ao final do espetáculo. A que todxs se refere a frase? Todxs do lado de lá do palco, ou todxs daquela sala de espetáculos? A encenação não sugere uma possível reconciliação que pode ser interpretada a partir de tal afirmação.  

No último trecho de A missão em fragmentos, quando a falsa harmonia entre as três figuras se dissolve e a realidade e a manutenção do status quo fica evidente, seja no contexto ficcional, seja no nosso tão conhecido contexto brasileiro, a encenação literalmente abre-se para o mundo, e apresenta um vigor de protesto/celebração que faz jus a história do próprio Legítima Defesa, e que não aparece com tanta evidência no decorrer do espetáculo (o grupo originou-se através da realização da performance intitulada  Em Legítima Defesa, realizada no contexto da edição passada da MITsp). No fim da obra, no quilombo que avança para fora ao mesmo tempo em que adentra o palco do Auditório Ibirapuera, o Legítima Defesa afirma com convicção: enquanto houverem senhores e escravos, nossa missão não estará terminada. A revolução virá, e será negra, pobre, bixa, feminina e periférica.

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