[Porque foi consumido pelo tédio]

Por Heloísa Sousa
18/03/2017

Tédio

Substantivo masculino

“O tédio é um sentimento humano descrito como um estado de falta de estímulo, ou do presenciamento de uma ação ou estado repetitivo – por exemplo, falta de coisas interessantes para fazer, ouvir, sentir, etc. As pessoas afetadas pelo tédio em caráter temporário consideram este estado muitas vezes como perdido, perda de tempo, mas geralmente, não mais do que isso. Alternativamente, alguns acham que ter tempo de sobra também causa tédio. Para as pessoas entediadas, o tempo parece passar mais lentamente do que quando elas estão entretidas. Tédio também pode ser um sintoma de depressão. O tédio pode levar a atitudes impulsivas e ás vezes mesmo excessivas, que não servem para nada e podem causar danos. [...] o tédio é desencadeado por uma situação de saída de uma atividade rotineira [...]”.

(Wikipédia).

O fato de estar em um quarto de hotel em São Paulo escrevendo esta crítica me impediu de buscar o significado da palavra tédio em outras fontes menos superficiais. Precisava iniciar este texto com um – quase – verbete, que sintetizasse em um parágrafo a experiência e o discurso do espetáculo “Por que o Sr. R enlouqueceu?” da companhia alemã Münchner Kammerspiele. Apesar da superficialidade – e paradoxal utilidade – de sites como a Wikipédia, ainda assim escolhi introduzir um fragmento dele nesta crítica; mas que pode ser substituído ou complementado com outras referências mais complexas sobre o assunto, dependendo do interesse do leitor nesta questão existencial. É de autoria do filósofo alemão Arthur Schopenhauer a célebre frase “A vida, portanto, oscila como um pêndulo, entre a dor e o tédio” contida no livro “O mundo como vontade e como representação” (1819) onde discorre sobre o desejo humano de querer e a realidade da ausência daquilo que deseja. Tempos depois, o filósofo francês Albert Camus nos traz reflexões sobre o absurdo da existência através do Mito de Sísifo em suas repetições seguidas de fracassos contínuos, que nos faz questionar qual o sentido da nossa existência. E na contemporaneidade, podemos acessar as palavras do filósofo norueguês Lars Svendsen em sua publicação “Filosofia do tédio” (2006). São muitas as referências a esse tema e mais assustador ainda é perceber a realidade do tédio nas nossas vidas. Muitas vezes eu utilizei esta palavra para caracterizar alguns dos meus momentos e ao mesmo tempo, nunca a confrontei de fato.

O que você tem?

Estou entendiada.

Assistir a este espetáculo talvez tenha sido uma das experiências estéticas mais difíceis – dolorosas – pela qual eu já passei (tenho 25 anos). “Por que o Sr. R enlouqueceu?” é dirigido por Susanne Kennedy, diretora alemã que vem se interessando por uma estética contemporânea em diálogo com questões pertinentes a existência humana em suas relações atuais. Inspirado no filme homônimo dirigido por Rainer Werner Fassbinder em colaboração com Michael Fengler em 1970, a obra traz em cena o Sr. R e seus espaços de convivência. Transitando entre uma rotina de trabalho e uma rotina no lar, nos deparamos com uma vida tediosa, de relações medíocres, com diálogos que não se concluem, pré-julgamentos e desafios tão simplistas que mal despertam um desejo de transformação. O vazio, o tédio, a insignificância e o absurdo vão se intensificando na obra de tal modo que parece surgir um abismo entre o palco e a plateia, e diante desse buraco só nos resta indignação.

Isto ocorre porque para além do discurso e das falas das personagens, percebemos uma construção cênica que converge para este lugar. A composição imagética linear, que apesar das cores – amarelo, azul, verde – nos faz estar diante de um mesmo cenário durante mais de 02 horas, com poucas alterações ou desorganizações. Tudo é artificial e plastificado como as coloridas casas de bonecas ou a tela hipnotizante das televisões.   As vestimentas retilíneas deixam pouca pele à mostra nos atores e os congela em posições sociais passíveis de interpretação; as perucas se mostram rígidas e brilhantes; e as máscaras de silicone usadas pelos atores nos fazem estar diante de bonecos humanos ao mesmo tempo em que nos distanciam completamente dos intérpretes em cena. Até a sonoridade do espetáculo é artificial com barulhos altos que só correspondem a realidade de movimentação dos atores em cena por uma associação entre imagem/som. Inclusive nas vozes gravadas por não-atores e executadas em off, enquanto os atores movimentam suas bocas. Dos atores não conhecemos nem o rosto, nem a voz. Estamos diante de corpos-colagem.

O espetáculo se desenvolve em quadros que se alternam entre a caixa cênica onde visualizamos os atores e uma projeção móvel onde observamos os não-atores. É notável a ausência de “vida” desde o início, a resposta para a loucura do Sr. R não demora a chegar nos espectadores, me senti enlouquecendo junto. Por mais que em alguns momentos o absurdo gere comicidade, o riso provocado é desagradável, por que este riso pressupõe um conforto diante do que se percebe, e como poderíamos ser capazes de nos deixar levar por esta obra como se ela não dissesse sobre o nosso próprio tédio? Minha boca não conseguia completar o riso, mas o meu corpo inquieto na cadeira do teatro experimentou inúmeras sensações desagradáveis. Não conseguia aplaudir, me esforcei inclusive para permanecer. Que realidade é essa? É nossa? Como chegamos a esse ponto?

E no paradoxo desta experiência estética reforço minha angústia diante do que foi posto em cena – onde a ação realizada pelo Sr. R no desfecho da encenação, quase se confundia com o meu próprio desejo – ao mesmo tempo em que admiro o trabalho de Susanne Kennedy pela abordagem contemporânea, pela apuramento técnico da encenação e por nos conduzir ao tédio do Sr. R. Mas, será necessário também assumir que nossas ações “enlouquecidas” não são consequências de uma realidade tediosa que nos é imposta, e da qual somos apenas vítimas. Nós que construímos nossa própria realidade, permanecemos nela e nos deixamos enlouquecer por isso. Portanto, as reflexões existencialistas, como apontava o filósofo francês Jean-Paul Sartre, não nos leva ao suicídio, mas sim à revolta. E essa revolta pode gerar transformação.

 

 

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