[Terra e Pertencimento]

Por Heloísa Sousa
27/07/2022

“O primeiro homem que inventou de cercar uma parcela de terra e dizer, ‘isto é meu’, [...] foi o autêntico fundador da sociedade civil. De quantos crimes, guerras, assassínios, desgraças e horrores teria livrado a humanidade se aquele, arrancando as cercas, tivesse gritado: ‘Não, impostor’”. (Jean-Jacques Rousseau).

Essa é uma frase dita nas primeiras cenas de “Estudo No. 1 Morte e Vida” do Grupo Magiluth (PE) e que abre a programação desta edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha.

A organização da sociedade em uma estrutura capitalista reforça a conquista e acúmulo de propriedades privadas como meta, desejo e sinal de liberdade, o que fundamenta uma série de desigualdades sociais, privação de direitos humanos básicos e exploração de recursos naturais. Karl Marx elabora toda uma teoria crítica a essa estrutura, seguido de muitos outros sociólogos e teóricos políticos que nos apontam as problemáticas do liberalismo. Não à toa, “comunista” torna-se xingamento antigo em nosso país para todo aquele que questione a lógica predatória capitalista.

A quem pertence a terra? E a que terra pertencemos?

Esse jogo discursivo da terra como propriedade e como identificação inicia o espetáculo “Contestados” da Cia. Mútua (SC) apresentado durante o mesmo festival.

De onde você é? Isso significa onde eu nasci, onde eu moro, onde eu vivi maior parte do tempo, para onde eu voltei ou o lugar com o qual me identifico afetivamente? Quais sinais culturais grafados no seu corpo e o que eles revelam? O que é ser catarinense? O que é ser potiguar? O que é ser brasileiro?

O que é ser brasileiro nesse país chamado Brasil, uma ficção por si só, uma ferida colonial? A Pindorama sequestrada.

A Cia. Mútua, conhecida por seu trabalho com teatro de animação desde 1993, em Santa Catarina, apresenta um recorte histórico sobre a Região do Contestado no meio-oeste catarinense, mas que reapresenta uma recorrência de disputas e tomadas de terra que persistem no país até hoje. Usando o recurso do teatro de figuras planas, aos moldes do antigo teatro de papel, duas atrizes narram a história da região usando uma mesa repleta de quilos de terra, recursos cênicos direcionados a este espaço suspenso e várias figuras pintadas e recortadas em mdf. A tradição que alguns grupos em Santa Catarina parecem ter com o teatro de animação é algo destacável no cenário artístico nacional, a recorrência no trabalho com esse recurso cria um campo de pesquisa e experimentação aguçados. Há um apuramento técnico admirável envolvido na composição da mise-en-scene e na precisão coreográfica das atrizes para a manipulação de todas as figuras, movimentação fundamental para que se materialize a dramaturgia e o ritmo do espetáculo. Nessa operação não há muito espaço para o erro, o improviso ou imprecisões, porque são os braços das atrizes que constroem toda a paisagem em cena. Dialogar com Guilherme Peixoto, um dos integrantes do grupo, ao final do espetáculo pareceu essencial para fechar o ciclo da experiência da obra. A curiosidade fica latente pelo avesso daquela cena, seus modos de produção; subo ao palco quando não há mais público para observar de perto aquela cenografia, alguns minutos depois, outros artistas do teatro chegam junto para ouvir as explanações de Guilherme. Ele nos explica sobre a pesquisa do grupo, as visitas que fizeram à Região do Contestado, e como o grupo se compromete em contar essa história para que ela não seja apagada. Ele fala que essa foi uma das únicas revoltas brasileiras que se inicia após a morte de seus líderes e assemelha o conflito à Guerra do Vietnã pelas cenas de violência. Isso em um país onde somos convencidos, desde a escola, da narrativa de que não houve e nem há guerras por aqui, embora o Brasil tenha se fundado em cima em um dos maiores genocídios do mundo.

Foto: Lenom César.

A narrativa nos é apresentada pelo grupo. Entre 1912 e 1916, naquelas terras viviam caboclos com suas rotinas e produções. Até que elas são vendidas pelo governo brasileiro, na época da presidência de Marechal Deodoro da Fonseca, para um empresário norte-americano que constrói uma ferrovia na região e desapropria várias famílias. As pessoas retiradas de suas terras se revoltam, se reorganizam e iniciam conflitos pela retomada da posse. Esses conflitos são combatidos pela força do exército militar que entra em campo na defesa dos direitos privados do grande empresário e passam a matar os que se revoltarem, inclusive queimando seus corpos. A disputa se segue com frequentes assassinatos autorizados pelo governo enquanto os povos desapropriados se reúnem influenciados também por narrativas religiosas que os faziam acreditar na relação sagrada entre seu povo e as terras. Qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência. Desde os colonizadores, até a estruturação do exército brasileiro e da posterior polícia militar, temos um grupo organizado e financiado pelo próprio governo para combater violentamente a própria população. A militarização que o país sofre com a ascensão do governo de direita ao poder reitera todas as violências contra as quais os movimentos sociais lutam frequentemente.

Foto: Diego Miranda.

Quando a figura do monge surge na dramaturgia contada, impossível não lembrar de Antônio Conselheiro, líder religioso e figura emblemática na Guerra de Canudos, conflito onde, mais uma vez, o Exército Brasileiro se coloca contra a população marginalizada pelo próprio país.

Foto: Diego Miranda.

Mas, a história não pode ser vista com olhos inocentes, os projetos políticos estruturam muito mais do que um jogo de afetos e em um efeito espiralar, estamos revivendo as mesmas mazelas não resolvidas continuamente. Como essa rede de complexidade e contradições podem permear a contação de uma história como essa no teatro? O direito ao mínimo de terra como princípio básico não instaura uma completa autonomia dos indivíduos e liberdade para exercer suas singularidades, portanto, retratar situações “felizes” como sinônimo de ausência de conflito ou na constituição de famílias esconde a dialética da realidade. Iniciar a história a partir de uma mestiçagem aceita e instituída, afirmando que ali havia caboclos com suas terras e famílias “felizes”, nos faz pensar “de onde eles vieram?”. Brasil é terra indígena por direito, tendo sido colonizada, a dizimação dos povos indígenas se deu também pelos processos de embranquecimento e desapropriação cultural dos sujeitos. O próprio núcleo familiar e uma violenta procriação tornam-se base para uma colonização dos corpos, fazendo surgir aqui um outro povo já marcado por uma aniquilação. Então, esse antes, que por vezes é também ignorado na história, já revela os passos que se seguiram e se repetem.

A expropriação não é um fato pontual na história do país, é um projeto sistemático de eliminação de comunidades e marginalização. Não há, novamente, como não lembrar das sucessivas desapropriações na cidade de São Paulo, onde comunidades inteiras sem moradia ocupam prédios privados abandonadas, há mais imóveis desabitados do que gente em situação de rua – mais casa sem gente do que gente sem casa – populações ribeirinhas são retiradas de suas moradas para dar lugar a imensas construções, muitas vezes, contraditoriamente, construções de prédios públicos. Favelas que se organizam nas margens das cidades, com estruturas precárias e que radicalizam a paisagem desigual e materializam um espelho do processo de segregação social e racial que esse país insiste. Ainda em São Paulo, a Cracolândia, um grupo de quase duas mil pessoas em situação de rua que se estabeleceram no centro da cidade, tem sido alvo de ataques constantes da polícia (a mando do governo estadual e municipal) que buscam desintegrar o grupo em uma tentativa surreal e violenta de que esses corpos apenas desapareçam, se desmanche no ar. A desapropriação e dizimação como citada em “Contestados” é projeto político recorrente no país e suas implicações precisam também ser contestadas em cena e fora dela.  

Foto: Lenom César.

Mesmo com uma abordagem dramatúrgica que poderia contemplar mais radicalmente os atravessamentos que a narração do fato histórico suscita no seu próprio passado e no momento presente; a pesquisa e o projeto da Cia. Mútua em trazer para a cena essas histórias apagadas e construindo ainda uma outra sequência imagética para materializar esse percurso, é uma ação que não deve ser abandonada, mas notada com mais atenção e interesse; inclusive dando mais espaço ao teatro de animação e suas formas de reapresentação do mundo em circuitos e festivais de teatro pelo país.

 

Para acompanhar as críticas dos demais espetáculos do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, clique aqui.

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