[Para Imaginar Colorido]

Por Heloísa Sousa
24/07/2022

Crianças também tendem a ser marginalizadas em uma sociedade onde a produtividade, o individualismo e o consumismo são imperativos. É na infância onde as descobertas, a curiosidade, os modos de conhecer e sermos afetados ganham outra intensidade coerentes com esses corpos que acabam de nascer. São dados passos primários e fundamentais, desde o aprender a falar, a andar, a pegar, até o aprendizado de lidar com seus próprios sentimentos, frustrações e euforias, lidar com o outro em coletividade, ou ainda na crise existencial que é perceber a si mesmo em convergência com todas as estruturas sistemáticas impostas pelo mundo que não nos privam de suas violências.

As desigualdades de gênero, raça, classe social, e os preconceitos religiosos, culturais, entre outros, fazem parte de uma política que se privilegia com a manutenção de hierarquias e sistemas de opressão, criando terreno para explorações sistemáticas. Se esse contexto parece absurdamente complexo de ser explicado para uma criança, em contrapartida, reduzimos esse sistema a curtas frases e ações pontuais que repetidas compulsivamente, acabam por condicionar outros corpos na reprodução sistemática, e por vezes inconsciente, dessa lógica.

Coisas inocentes como brincar de desenhar no papel e determinar que o lápis de cor bege é o lápis cor de pele reiteram e explicitam um interesse em construir um imaginário racista, dentro de uma sociedade onde mais de cinquenta por cento da população se autodeclara preta ou parda.

Esse é um dos pontos de partida da peça “Cor de quê” da Mass Produções (SC), apresentada no terceiro dia da programação do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha. Duas atrizes assumem um papel de contadoras de histórias, mas sem os recursos das figuras fantásticas que vemos com frequência em montagens direcionadas ao público infantil, ao contrário, elas parecem se aproximar mais da dinâmica das próprias crianças em seus modos de narrar, brincar, se indignar e se surpreender.

Passando então por algumas pequenas histórias, as atrizes vão buscando discutir sobre desigualdade, sobre diferença e sobre o direito de ser o que quisermos. Assumir por contar várias histórias torna a dramaturgia levemente fragmentada e permite mudanças nas dinâmicas de visualidade, oferecendo ao público infantil guinadas na paisagem cênica através de reposicionamento das luzes ou inserção de outros objetos. A questão dos objetos para o teatro infantil, inclusive, é um ponto fundamental. Seguindo a lógica comum das próprias crianças e suas capacidades de subverter o uso dos objetos a serviço da brincadeira, parece operação cenográfica recorrente nessas obras. Não à toa, frequentemente, os maquinários cenográficos mais interessantes, os bonecos e animações mais envolventes parecem vir desse tipo de cena.

Na apresentação realizada no CEU das Artes em Itajaí, o público infantil compôs com muita empolgação e nos deu uma percepção muito singular das relações possíveis entre a cena e a criança espectadora. O espetáculo abre com interatividade, mesmo restritas ao espaço cênico e solicitando que as crianças se sentem ao redor dessa convenção, já havia ali outra aproximação quando as atrizes recebem esse público com diálogos e perguntas. “De que cor você pintaria minha pele num desenho?”. As crianças já entendem e assumem esse novo código e se permitem a interação verbal durante todo o resto da peça. Comentários, respostas, diálogos entre elas permeiam o desenvolvimento da obra no tempo. Em algum momento, eu penso: “se depender das crianças, a peça não acontece mais”. E talvez esse seja justamente uma provocação interessante e latente em obras interativas para o público infantil. Mesmo buscando se relacionar com as interpelações constantes das crianças ao longo do espetáculo, existe uma tentativa e trazer atenção de volta para a narrativa, a fim de que a peça continue o seu desenvolvimento. Mas, nesse movimento de retomada, a criança volta, de fato? Considerando que havia vários outros adultos naquela plateia, essa retomada serve a quem? Aos adultos ou às crianças? Obviamente que, o caminho que talvez fosse sugerido pelas interações do público infantil poderia culminar numa deriva infinita que desvincularia a obra de alguns propósitos, mas é o jogo do vínculo com a criação através do diálogo, da fala-escuta, do mostrar-ver, do oferecer-sentir que apresenta os maiores desafios para a peça.   

Nesse sentido, a construção da cena final faz saltar diante de nós uma possibilidade linda de comunhão com a infância. As atrizes oferecem uma brincadeira e canção, que os mais velhos facilmente reconheceram como “Escravos de Jó”. Mas, nessa peça, essa canção vinda de colonizadores e que expõe uma narrativa escravagista para ser “brincada” é apagada e apresentada com outra sonoridade. Convidadas para romper a convenção teatral e entrar no espaço cênico para jogar juntas, as crianças se reorganizam, reposicionam seus corpos e sua atenção, se oferecem ao coletivo para que juntos a brincadeira aconteça do modo previsto inicialmente, sem, de sobremaneira, deixar de se divertir com tudo aquilo.

Foto: Lenon César

Essas estratégias pedagógicas vêm sendo frequentemente usadas, de reorganização de algumas histórias, canções e jogos que se mantém no imaginário da criança, mas sem reforçar os estereótipos, violências e enaltecimento de sistemas de exploração. A preocupação com o imaginário que estamos oferecendo ou permitindo que as crianças construam e acessem é uma tarefa fundamental em uma sociedade que se pretende democrática e com o interesse em superar as feridas coloniais.

 

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