[Quem tem tempo?]

Por Heloísa Sousa
23/07/2022

“O tempo perguntou pro tempo quanto tempo o tempo tem. E o tempo respondeu pro tempo que o tempo tem o tempo que o tempo tem”, essa é uma parlenda brasileira que quase todo mundo já ouviu em algum momento da vida. Dessa frase, Vinícius de Moraes pergunta em poema “Quanto tempo o tempo tem?” e lembro, então, do coelho branco de “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll correndo com um relógio na mão enquanto diz “é tarde, é tarde!”. O mesmo coelho branco que é tatuado nas costas de uma garota e que atrai Neo para outro universo em “Matrix” das irmãs Wachowski, onde a relação corpo-tempo-espaço se reconfigura para fora dos simulacros do mundo publicizado e capitalista que construímos e vivemos.

Em termos científicos, o tempo é uma grandeza, uma abstração criada para que possamos medir a transformação das coisas. O que existe, de fato, é essa mutação constante do que existe no mundo, as coisas crescem, se decompõem, morrem, rompem-se, nascem. Sendo o tempo, então, uma abstração, um modo de organização e contagem, e não uma matéria, o que significa de fato “não ter tempo?”, “tempo livre”, “tempo ocioso?”, “perder tempo?”. Há uma implicação afetiva na nossa relação com o tempo, pois ele não configura apenas a contagem de uma produtividade (como o sistema capitalista nos faz crer), mas também a contagem da instauração de uma experiência, da construção da memória, da elaboração dos afetos.

“Para contar estrelas” do Grupo Cirandela (SC) é uma montagem teatral destinada também ao público infantil e que toma o tempo como questão principal. Prócion e Kuiper são uma dupla de guardadores do tempo que tentam entender como a criança tem tempo para a brincadeira e outras atividades, enquanto a mãe parece nunca ter tempo livre. Como então capturar esse “tempo livre?”. Dois musicistas-atores em cena trazem uma obra embalada em uma trilha sonora original, mas que tem na construção visual seu maior impacto sensorial e dramatúrgico. São as movimentações do maquinário cênico (quase aos moldes construtivistas e pertinente por isso) que trazem ritmo para a peça, junto das movimentações coreografadas do ator Bruno Andrade e da atriz Priscila Schaucoski. Identificando a ausência do “tempo livre”, a dupla sai a caça, tomando emprestado a narrativa de Miguel de Cervantes e convidando uma criança do público para fazer a vez de La Mancha. Toda a jornada nos leva ao barulho do despertador que torna ambígua a relação entre o sonho e a realidade de se capturar o “tempo livre”. Se o tempo livre é algo realmente próprio e plenamente vivenciado pelas crianças, já é uma questão por si só. Aqui, nessa obra, abre-se mão desses pormenores para se pensar de forma mais conceitual.

A relação com a narrativa e a construção de um mundo fictício é quase sempre um recurso adotado pelo teatro quando pensa em obras para a infância, uma tentativa de se aproximar do aspecto lúdico pela contação de histórias, pelo faz-de-conta, pelos brinquedos e todas as estratégias, pedagógicas inclusive, que pensamos ser pertinentes a essa faixa etária de estímulo à imaginação e à sensorialidade do corpo. Nesse sentido, essas obras costumam apresentar cenografias muito interessantes, como é o caso de “Para contar estrelas”, seja pelos movimentos, encaixes, texturas e cores que contêm, seja pela integração com a dramaturgia e aos movimentos em cena; abrindo espaço, inclusive para algumas ilusões e surpresas que revelam objetos transformáveis. Entretanto, apesar da excelente feitura da cenografia e da sua integralidade com a obra, é importante problematizar as referências ao universo fantástico que estamos utilizando e como delimitamos o imaginário a partir de imagens veiculadas pelo cinema comercial que instauram um universo próprio a ser massivamente replicado. Observando a cenografia, alguns retratos retornaram a minha memória como a direção de arte de “A Invenção de Hugo Cabret” de Martin Scorsese e seus metalizados envelhecidos e paleta de cores outonais, ou a semelhança com os figurinos desenhados por Alexandra Byrne para “Doutor Estranho” baseados em uma estética retrô-futurista recorrente nas últimas produções da Marvel ou ainda as peneiras que capturam o tempo em “Para contar estrelas”, criando bolas semelhantes as luminárias chinesas, mas que são os mesmos objetos que arquivam memórias no universo do Harry Potter criado pela J. K. Rowling. Ainda mais interessante notar como o relógio e o tempo são questões presentes em todas essas obras citadas até então.

Foto: Tamires de Lara

Obviamente que, nem todas as pessoas do público vão lembrar das obras que eu citei acima ou sequer tê-las como referências de associação. A questão que coloco é sobre o limite imaginário que, por vezes inconscientemente, acabamos por recortar e, também sobre como reelaboramos certas estéticas para uma obra teatral buscando outros contornos. Ou ainda, para pensarmos nas consequências dessas escolhas para o processo de recepção da obra, principalmente nas crianças. Ainda sobre as referências, a citação ao personagem Dom Quixote de La Mancha na narrativa acaba sendo uma recorrência em obras teatrais autorais como uma figura do imaginário coletivo, mas sem abordar sua relação direta com a questão do tempo. Por vezes, ao citarmos obras literárias ditas universais, partimos do pressuposto de que tanto a narrativa quanto sua análise já são um senso comum e que a pura citação já é suficiente para que se construa todo o entendimento associativo necessário para a obra. Dom Quixote traz um conflito entre o mundo ideal e o mundo real, revela um anacronismo da figura em seu desejo de materializar seu imaginário, mas o quanto essa figura pode nos servir para problematizar a captura do tempo livre acaba se restringindo a um apoio numa personagem conhecida.

Em “Para contar as estrelas”, as personagens Prócion e Kuiper começam seguindo procedimentos padrões e parecem tentar sempre servir ao relógio (que nessa obra, é um objeto incrível fundido com um baixo, o instrumento musical). O que as figuras nos convidam a pensar é: mas, o que há fora do procedimento padrão? Fora do tempo regulamentado, das tarefas instituídas com prazos, das obrigações repetitivas, o que há nisso que nomeamos “livre” (em contraposição a um tempo “aprisionado”)? Para a obra, o que existe é a ludicidade própria da infância, o tempo da brincadeira como tempo contra produtivo, mas que gera mais afetos alegres do que os demais e portanto, permanece na memória. O grupo opta por eleger o relógio como objeto-personagem que dita o tempo e que, portanto, é contra ele que devemos ir se quisermos alcançar o tempo livre. Poderia um objeto servir a abstração de todo um sistema? É o objeto que nos dita a relação? É a liberação do objeto que reconfigura a relação com o entorno? O filósofo francês Jean Baudrillard em “O Sistema dos Objetos” (2015) traz algumas pistas quando diz que o importante é não restringir o pensamento sobre o objeto para sua utilidade, mas sim sobre “os processos pelos quais as pessoas entram e relação com eles e da sistemática das condutas e das relações humanas que disso resulta”. O autor ainda dedica um subcapítulo de seu livro ao relógio e ao tempo, ao dizer que esse objeto finda por representar o tempo e torna-se um ponto de convergência de nossa relação com essa abstração. Baudrillard escreveu esse livro em 1968, o que ele diria se soubesse que hoje olhamos o tempo no celular e não mais no relógio de pulso ou de parede? O som do despertador ou do cronômetro ou de uma sirene tornam-se mais imperativos e nesse sentido, é muito pertinente que essa  seja a sonoridade final da peça e que traz os guardadores do tempo de volta para o procedimento padrão.

Baudrillard ainda diz que: “A cronometria é angustiante quando nos determina tarefas sociais; mas é tranquilizadora quando substantifica o tempo e o destaca como objeto consumível”.

Entre a angústia e a tranquilidade que a cronometria nos opera (somando aí a ansiedade que ela gera), a peça do Grupo Cirandela coloca certa oposição entre o tempo do relógio e o tempo livre, o tempo do adulto e o tempo da criança e uma impossibilidade de coexistência simultânea ou ainda de inventar outros tempos. O tempo livre ainda estaria capturado pelo tempo padrão (cronológico), encaixado nas brechas, entre algo e outro que nos diz “agora você pode sorrir, se divertir, brincar ou fazer qualquer coisa que se queira sem ser obrigação”. É uma exposição direta da lógica capitalista e produtivista que sequestra inclusive nosso direito à ociosidade, convertendo o tempo livre em tempo de suspensão calculada das atividades para que se retorne ainda mais produtivo. É sempre a serviço do sistema. Isso quando não convertemos o tempo livre em uma forma de organizar todas as outras coisas que não temos tempo de organizar na rotina exaustiva que vivemos.

Se a obra é para o público de todas as idades e a relação de tempo livre estabelecida com a infância corresponde ao brincar, ao jogo, ao divertir-se com os objetos; do que estamos falando ao pensarmos no tempo livre do adulto? Permito-me então, fazer uma digressão nesse texto para dizer que, enquanto espectadora, não pude deixar de pensar sobre como aquela ludicidade ganharia outras camadas em meu corpo. O tempo livre da criança se associa frequentemente ao seu impulso de curiosidade e seu modo de descobrir o mundo sem o excesso de obrigações ao qual estamos habituados. “Sem expectativa do futuro, sem arrependimento do passado”, como diz um amigo meu nas práticas corporais que conduz para o teatro, quando foca na percepção. O tempo livre do adulto é nomeado de ociosidade, é a contra produtividade, a inércia, a interrupção das atividades, a ausência, o nada. Ou ainda, a possibilidade da vagabundagem, como prática errante, sem objetivo definido. Essa é uma discussão interessante para adultos em uma mesa de bar, após assistir esse espetáculo.

Seria esse tempo, apenas um sonho?

E sem o tempo, esse tempo, cronológico, nos resta o quê? Como quando uma das personagens se rebela contra o relógio e decide não mais seguir os procedimentos padrões. Na obra, é o espaço para o silêncio. Nesse momento, alguns pássaros cantam e conseguimos ouvi-los, bonita interpelação da natureza na obra; alguns segundos depois, alguém martela algo ao fundo numa construção vizinha, o tempo não para. Cronos, na mitologia grega, é praticamente imbatível, destrói e captura todas as criaturas ao seu redor. Mas Kairós, outro deus grego, consegue enfrentá-lo, é o tempo do imprevisível, aquele que só se opera no presente e nada demais. Leda Maria Martins (2021) nos lembra ainda que existem outras mitologias, nas culturas africanas por exemplo, que desafiam a irreversibilidade do tempo ditado pelo Ocidente e revelam um tempo espiralar.

“Antes de uma cronologia, o tempo é uma ontologia, uma paisagem habitada pelas infâncias do corpo, uma andança anterior à progressão, um modo de predispor os seres no cosmos. O tempo inaugura os seres no próprio tempo e os inscreve em suas rítmicas cinesias” (MARTINS, 2021).

Talvez o tempo livre esteja em outro espaço.

 

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