[Isso é praticamente um...a tentativa?]

Por Heloísa Sousa
22/06/2022

“Tragédia e Perspectiva I – O prazer de não estar de acordo” é uma obra teatral cujo percurso de seu processo criativo também foi atravessado pela pandemia e os isolamentos instaurados, o que gera uma guinada nas próprias questões trazidas pela obra em diálogo com os contextos vividos. A obra é também gerada a partir de alguns encontros provocados, desde o laboratório de criação conduzido pelo encenador argentino Lisandro Rodríguez na edição da MITsp 2020 até a posterior parceria com o dramaturgo brasileiro Alexandre Dal Farra para a estreia em 2022 na mesma mostra. A interrupção do processo, as mudanças de rotas por fatores contextuais e os encontros entre artistas parecem singularizar “Tragédia e Perspectiva I”, talvez pelo impacto mundial vivido pela pandemia, no entanto, parece também que estamos diante de questões comuns a todo e qualquer processo de criação. Criar não seria um encontrar, derivar, interromper, derivar, transformar?

Para escrever sobre essa obra, me permito tensionar duas coisas: a dramaturgia e a encenação; compreendendo que a crítica parece se debruçar frequentemente sobre esmiuçar as escolhas dos artistas, analisar a recepção – em si primeiramente, para daí reverberar no outro, talvez.

 

O dito

Tanto no subtítulo da obra quanto na sua sinopse é destacada a intencionalidade dos artistas em manter no mesmo espaço, figuras que discordam entre si, mas que ainda coexistem; conseguem não se anular, mesmo que haja divergências. Se essa intencionalidade parece desejar reverberar nas dicotomias políticas que vivemos e que instauram opressões violentas, onde não somente o que é dito, mas a existência do outro é ameaçada; percebo que a dramaturgia, na realidade, nos leva para outra possibilidade de percepção.

Cinco atores articulam e jogam com um texto que estabelece uma crise semiótica. Há, em cena, um problema com os significados e os significantes ou com as expectativas geradas sobre as palavras quando mencionadas. Nenhuma intenção de dizer se sustenta por muito tempo, e quando enunciada torna-se completamente passível de dúvidas ou múltiplas interpretações. Cada corpo torna-se um ponto de vista (as corporalidades dos atores evidenciam isso, inclusive) e, portanto, na matemática das variações, o looping de mudança de sentidos parece infinito. E essa crise das palavras é interessante e, ao mesmo tempo, masculina. Difícil usar esses termos e desenvolver esse pensamento sem cair no vacilo de ser lida como binária e limitada, ainda assim, me mantenho nessa escrita. Em “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão de Identidades”, a autora Judith Butler questiona o que é a mulher, significante e “sujeito” colocado no centro das discussões feministas, embora impossível de ser generalizado ou uniformizado. Numa das teorias articuladas pela autora, o feminino aparece como único gênero de fato, já que o masculino impera e constrói a si como universal. Algumas identidades são reiteradas para que se mantenham as estratégias de poder, logo, a mulher aparece como um avesso do homem, ou tudo aquilo que o homem-branco-cis-hetero não deve ser; embora este seja também e igualmente uma construção performativa e uma palavra-ficção, ao invés de um dado biológico como se crê. Para existir, esse homem necessita determinar aquilo que não o configura e que deve ser repetido e percebido no outro para diferenciá-lo. Ou seja, é também um jogo e disputa de significantes e significados a serem performados e materializados nos corpos, sendo inclusive sequestrados em sua multiplicidade possível. É essa recusa, bem como essa disputa e jogo, esse retirar de si algumas características ou interpretações que parece transposto enquanto movimento dramatúrgico em “Tragédia e Perspectiva I”. A crise da linguagem é também uma crise instaurada pelo dito masculino. E é na incoerência explícita da crise que as possibilidades de rebeldia insurgem para reivindicar outros pontos de vista.

Imagem disponível no site oficial da MITsp 2022.

É então o abraço que quer ser dado mas que é recusado, mas que é insistido, mas que é dramatizado, mas que é usado como justificativa para outra coisas, mas que é... de repente, nem é mais sobre o abraço. O abraço era somente artifício. Quase tudo é somente artifício, na realidade. O não dito sempre importa. A cerveja e o ato banal esquecido, não saber fazer o mais simples, aquilo que é rotina, mas como se todo mundo já sabe, mas eu não sei, ou esqueci, vamos lá ensinar o óbvio, mais uma vez. A sala de aula de figuras que parecem medíocres e que só sabem dizer do mesmo assunto em ressonância, tipo alguns artistas que quando se sentam numa mesa de bar ou num café ou em qualquer outro lugar só sabem falar sobre a mesma coisa, a própria arte. E aqui, nem é a coisa que importa, mas o que existe ao redor da coisa; estamos num ponto e somos lançados para outro diametralmente oposto porque aquilo pode significar, literalmente, qualquer coisa. Não à toa, a virtualidade recai na mesma crise dos significantes quando discussões de twitter, levadas à sério de modo assustador, tornam-se disputas insanas por caracteres e as profundezas abissais que cada palavra carrega, chegando numa centrífuga tão violenta que nos lança para fora de toda e qualquer discussão até que estejamos boiando na via láctea desse outro verso em que ninguém mais se percebe. É nesse ponto que a dramaturgia parece alcançar a inconstância almejada, operando através de risadas conquistadas, linguagem coloquial e ritmo afiado.

Em uma percepção mais rápida, pode parecer que a dramaturgia se opera por repetições; entretanto, ao escolher mudar não somente os significantes, mas também as operações como os corpos questionam essas palavras, temos uma obra que vai girando em si mesma, como que mostrando facetas (desiguais) de uma mesma geometria; portanto, a forma não é exata. Nesse sentido, sou capturada pela cena da briga, onde o significante é deduzido pela ação instaurada e repetida. A palavra é evocada pela situação e falseada pela mesma, porque apesar de se materializar seu significado, há uma construção falha na expectativa que coloca as figuras em uma tensão entre a vulnerabilidade e a seriedade no modo de lidar com mais um ato performativo dito masculino. Esse ponto de falha é interessante.

Ao final, os atores reconstroem a imagem da performance La Familia Obrera de Oscar Bony, citada inclusive no programa que recebemos ao entrar no teatro. No entanto, minha recusa em ler materiais prévios à experiência cênica me fez perder a referência original dessa citação; minha percepção se reduziu a tentativa de estabelecer uma paisagem em cena. Neste momento, os atores posicionam um cachorro de pelúcia no espaço e então lembro imediatamente da raposa falante e falsamente empalhada que surge em “Lobo” de Carolina Bianchi y Cara de Cavalo. E é justamente nesse momento, quando minha memória recupera uma encenação que centraliza uma mulher diante de vários falos; que os atores de “Tragédia e Perspectiva I” questionam a ausência de uma mulher na encenação. Nesse ponto, a dramaturgia recai numa crise desnecessária que se disfarça de posicionamento. A ausência de uma mulher na equipe técnica é uma escolha explícita da obra e que parece significar muita coisa, mas, na realidade, é uma falsa problemática. É apenas um fato, um direcionamento visível e exposto; colocar a discussão de gênero como um simples problema de presença e ausência é pouco complexo para o modo como a dramaturgia vinha se construindo.

Imagem disponível no site oficial da MITsp 2022.

 

O visto

Enquanto o texto revela o não dito, as entrelinhas e o que rodeia os discursos, a encenação de uma obra que se pretende teatral percorre uma contramão que retrocede a obra ao próprio texto, aqui, como matéria primeira. A encenação se faz ausente, e digo isso, num sentido de revelar um movimento de recusa de direção; essa figura não se presentifica (apesar de corporalmente estar diante de nós), e, portanto, os atores parecem circular no espaço buscando maneiras vivas de dizer o texto. A questão é que parece haver pouco diferença entre a encenação apresentada e o que seria uma leitura dramática do texto, por exemplo. Enquanto proposta de encenação, esse movimento de ausentar-se para ver o que emerge pode arremessar a obra para um precipício, se a escolha estética enfrenta pouca radicalidade. Nesse sentido, o não encenar pode parecer apenas um não dizer, é um silêncio, ao invés de uma atitude provocadora para a instauração material e formal da ausência. Lembro então da obra “Azul” da Cia. Tercer Abstracto, que, como contraponto, consegue criar uma obra teatral imaterial quando se debruça sobre questão semelhante. Já em “Tragédia e Perspectiva I”, os atores no espaço sem direção, recorrem a gestos, movimentos, regulação das vozes que constroem uma paisagem ruidosa, a obra se estabelece na percepção dos atores sobre si mesmos que empenham bastante energia na instauração de um acontecimento na cena. E então, são os trabalhos dos dois homens que diferem das imagens universalizadas dos homens-altos-brancos-cis que elaboram o contraste fundante da obra; é a atuação de Flow Kountouritis que parece ditar o ritmo da encenação, tanto pela exatidão da vocalidade quanto das ações do corpo; em contrapartida, a presença fundamental de Aldo Bueno como ator negro e mais velho parece aproveitada com menos potência do que poderia, já que a figura de maturidade em cena poderia oferecer muito mais do que um sublinhar das crises instauradas.  

Uma das leituras recorrentes que ouvi de outros espectadores sobre a encenação é a de que esta se parece com um ensaio, percepção também pontuada pelo crítico Guilherme Diniz em seu texto para as críticas diárias da MITsp 2022 sobre esta mesma obra. Entretanto, penso que existe um movimento perceptível no ensaio, rascunho ou esboço que é de traçar linhas sobre a intenção do que irá se instaurar ali. Há uma projeção no ensaio, ao invés de apenas uma não-forma-ainda. Mas, na encenação apresentada a intenção que se percebe é muito mais a da crise instaurada pelo texto e o esforço-jogo dos atores em materializar o verbo; a peça em si, ironicamente, torna-se um significante igualmente desarticulado.

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