[Da cor do excesso]

Por Heloísa Sousa
21/06/2022

Para nos debruçarmos criticamente sobre um ato de narração e escaparmos da passividade do ouvinte, o que devemos observar?

 

O significado do que está sendo dito?

O modo como está sendo dito?

A minha reação ao que está sendo dito?

Tudo aquilo que não está sendo dito?

 

Do mesmo modo que Roland Barthes determina o conceito de punctum como aquilo que atrai, misteriosamente talvez, o nosso olhar em uma fotografia – onde identificamos o punctum (se nos permitimos essa transposição, afinal ainda estamos no campo da imagem mesmo tratando de cena) de uma narração em cena? Será que é, de fato, naquilo que está sendo narrado ou em tudo que se dispõe ao redor dessa narração, quase em uma atitude psic-analítica que observa para muito além dos significados dos verbos para identificar camadas além da nossa psiquê. Retomo essa questão porque apesar de familiarizados com as construções imagéticas das cenas e suas variações infinitas, assim como com os artifícios da sobreposição, simultaneidade, caos e outros fomentadores de desvios; diante da palavra ainda nos curvamos ao seu entendimento de modo quase automático. E, em algumas vezes, nessa batalha pelo compreender (pois este não é tarefa fácil), perdemos ou desistimos, e então, outra experiência se instaura.

Em O Martelo e a Foice, dirigido pelo francês Julien Gosselin e apresentado durante a programação internacional da 8ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp 2022), observamos o ator Joseph Drouet narrando um conto homônimo de Don DeLillo durante uma hora, em primeira pessoa. A escolha do encenador por sustentar o olhar do público na narração de Drouet, ao invés de alguma representação dos fatos narrados, traz desafios tanto para o jogo de conexão com o público (o que se deseja que se perceba?) que supere a monotonia de um depoimento estendido pelo tempo da obra. Se em um diálogo convencional, em uma mesa de bar, o que nos faz embarcar nas narrações alheias não é somente as paisagens que aquele corpo narrador articula, mas também nossa possibilidade de interlocução, discordância e composição conjunta do que está sendo dito, mesmo que estejamos sujeitos aos desvios de atenção provocado pelos contextos; em uma experiência teatral, o que nos mantém conectados ao que está sendo dito? Se por um lado, a encenação parece cair nessa linearidade imagética, por outro, existem escolhas sutis e precisas que ampliam a percepção do espectador e apresentam possibilidades de vínculo com a obra.

O título da peça e do conto, O Martelo e a Foice, é também a descrição do símbolo representativo do comunismo e da classe trabalhadora, sob um fundo vermelho. Os elementos do movimento político decupado em signos na obra. O texto literário, trazido na íntegra e narrado em francês, nos coloca diante de Don DeLillo, escritor norte-americano reconhecido por sua produção que aborda questões dos tempos pós-modernos, desde política a outros aspectos do cotidiano. Em O Martelo e a Foice nos deparamos com o depoimento de Jerold Bradway, que vivendo em uma prisão narra tanto fatos conhecidos de outros presos quanto de sua vida pessoal. A narração se inicia com o espaço sendo inundado pela cor vermelha que instaura uma camada politicamente simbólica (ainda mais no Brasil de 2022, em vias de eleição presidencial), além de uma monocromia e agressividades que vão sendo exploradas também na encenação. Se a imagem parece estática, a paisagem sonora estabelece crescentes e variações. Drouet se posiciona no espaço e nos apresenta uma capacidade narrativa surpreendente, incluindo variações tonais ao assumir personagens diferentes da mesma história o que nos relembra como as narrações não são totalmente capturadas pelo campo representativo, mas se estabelece a partir de uma performatividade pelo jogo com a imaginação de quem ouve.

Imagem retirada do site oficial da MITsp 2022.

A observação do ator é também ampliada pela projeção de seu rosto ao fundo, filmado em tempo real e que nos permite, através do close cinematográfico, perceber exatidões nos pequenos movimentos faciais que não seriam percebidos pela distância comum ao teatro nas configurações de palco frontal. Essa escolha de configurar a imagem da cena em um campo simbólico que destaca o tema (vermelho) e o depoimento (ação), ao mesmo tempo em que nos entrega as fragilidades do teatro fragmentadas e ampliadas (a voz e o close), mesmo se mantendo sem muitas variações por uma hora, instaura uma imagem de cena que compõe com as possibilidades frente as escolhas narrativas.

Imagem retirada do site oficial da MITsp 2022.

Se na cena contemporânea estamos vivendo uma recorrência de momentos em que o ator ou atriz se coloca diante do público e fala com ele, geralmente com auxílio do microfone, geralmente falando de si ou incitando algumas questões retóricas, em O Martelo e a Foice, parece que o ponto subversivo é que estamos diante de uma personagem. Curioso falar de subversivo ao apontar a presença da personagem, o que mostra os movimentos espiralares da cena e a própria característica do que nomeamos como esteticamente contemporâneo e seus anacronismos.

Há uma questão sobre a escolha de apresentar uma cena em depoimento, onde uma personagem narra histórias observadas ou vividas, em primeira pessoa. O que a figura realiza é a apresentação de um fluxo inevitável da memória que por si só desorganiza a sequencialidade e as finalidades de um texto. Qual a implicação dessa escolha de encenação para uma temática, que necessita tão urgentemente de mobilização, como a luta das classes trabalhadoras? Na obra, a personagem não panfleta ou instiga alguma coisa; mas, ela apresenta situações e a si mesmo atravessando esses momentos, quase como se fosse possível mobilizar por empatia, reconhecimento de narrativas. Os movimentos do ator revelam uma personagem que sente os impactos de sua realidade e confessa seus atravessamentos e afetos; não se trata de uma figura que saiba para onde vai ou que instiga uma ida coletiva. A partir disso, começo a pensar na sobreposição dos discursos coletivos sobre os percursos individuais e como a trama política se opera nesse cruzamento. A gente está quase próximo da personagem, ela começa quase nos sussurrando alguma coisa até inflamar. Talvez aqui, a própria presença seja a dialética.

Falemos então sobre o que é dito. O ator apresenta uma verborragia em francês, enquanto acompanhamos a legenda no painel de projeção. A velocidade com que o texto é dito, não nos permite retirar o olhar da legenda por muito tempo e nos força a não visualizar a paisagem da cena como um todo. Nosso olhar é capturado para um elemento estranho a encenação e que só está presente para sanar a barreira do idioma. Além disso, a leitura da legenda cria no espectador uma voz interna em português que se sobrepõe a voz francesa em narração; o que também gera uma perda da experiência sonora construída pelo ator. Ou seja, o problema do idioma cria um ruído inescapável para a experiência estética, tanto a nível imagético quanto a nível sonoro.

Em determinado momento, decidi parar de ler a legenda o que me fez ignorar completamente a história narrada e apenas emergir no som e na imagem instaurada. Isso porque, antes, mesmo realizando a leitura, a apreensão da história não estava sendo uma tarefa simples. Penso então no movimento curatorial que traz para a programação internacional de uma mostra de teatro realizada no Brasil, uma obra que parece só fazer sentido para espectadores que dominem o idioma da narração. O artifício da legenda ou tradução simultânea, em si, já é um ruído considerável para a experiência estética (o que me faz questionar como nos relacionamos com as obras teatrais de outros países, tanto pelo abismo do idioma quanto pelo abismo cultural instaurado), e em certas obras ele corre o risco de desconectar completamente o espectador da situação apresentada. Mesmo já tendo acompanhado diversas edições da MITsp e assistidos vários espetáculos que necessitem do artifício da legenda, observo o cansaço e desistência do meu corpo em relação a isso como também sintomático de uma crise que parece posta pela necessidade de internacionalização das artes da cena no Brasil, trazendo obras de outros países e, também exportando as produções brasileiras; enquanto a nacionalização da produção interna ainda é uma questão crucial. 

Ao fim do espetáculo, olho para uma amiga sentada ao meu lado e digo “adorei a encenação, embora eu não tenha entendido praticamente nada do que foi dito.” Ela me olha aliviada e diz “ainda bem que você disse isso, achava que tinha sido só eu”. Logo após, inicia-se uma fala da professora Rita von Hunty comentando a obra assistida e pontuando justamente o aspecto da incompreensão, mas também toda a discussão política possível sobre formas necessárias e corajosas de organizar o ódio em coletividade e em prol da revolução. O didatismo e a articulação do pensamento da debatedora são notáveis e diametralmente oposto ao lugar opaco que a encenação parece apresentar com sua narração. No caminho de volta para o metrô, um outro amigo reitera o não entendimento e destaca “mas, a fala final de Rita von Hunty foi ótima”. Outro amigo complementa, “sim, mas isso não é teatro, né?”.

Será?

 

A narração de uma história, em si, já não é aspecto opaco o suficiente ao lidar com certo discurso?

Estaria a experiência estética do teatro circunscrita somente no intervalo em que as cenas acontecem?

No jogo da incompreensão como escolha de encenação, para onde somos levados enquanto espectadores?

O que desejamos saber... depois?

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