[O que estamos fazendo?]

Por Heloísa Sousa
29/08/2021

Certo dia, conversando com um amigo sobre os casos recorrentes de violência contra a mulher, desde assédios nas ruas até outras agressões, me deparei com a seguinte sugestão dele: “esse lugar está oferecendo aulas de artes marciais e defesa pessoal para mulheres, acho que você deveria fazer”. A indicação do meu colega era uma tentativa de me oferecer maneiras de me proteger do que eu poderia sofrer no mundo, apenas por ser uma mulher. De imediato, pensei: “sem tempo, irmão”. Mas, não verbalizei.

Eu poderia começar essa crítica fazendo uma lista – debochada e inflamada – sobre “estratégias para talvez não ser violentada”. Digo debochada e inflamada, porque se você é reconhecida socialmente como mulher, cis ou trans, deve partilhar do meu/nosso cansaço em estar falando das mesmas coisas continuamente, em movimentos circulares, sem necessariamente observar avanços nas práticas, políticas e relações, como se observa em outros campos de... não sei... da tecnologia, por exemplo. As coisas parecem não expandir o suficiente, mesmo que as discussões e debates já alcancem outras complexidades.

Vou voltar para a lista: tente denunciar (mesmo não sendo ouvida frequentemente), tente andar com uma faca na bolsa (reze para não ser barrada em algum lugar), tente andar com spray de pimenta na bolsa (cuidado com a polícia nos protestos), tente regular suas roupas (mas continue sendo sexy), evite estar desacompanhada ou passar por lugares vazios e escuros (mas exercite sua liberdade e autonomia), não beba demais, não se drogue demais, não fique chapada demais, cuidado com o que posta na internet (mas gere engajamento), cuidado com o que você fala e como você fala (mas não fique calada), cuidado com os aplicativos que faça você cruzar com algum outro ser humano (mas não viva sozinha), cuidado com os professores assediadores (mas continue seus estudos com o mais alto grau de rendimento), denuncie os assediadores (e se você não for ouvida, dê um jeito de lidar com isso – pague um psicólogo, psicanalista, psiquiatra, terapeuta holística, sei lá). Essa lista poderia se tornar um programa performativo, eu dou início e vocês continuam, no fim, talvez tenhamos páginas suficientes para publicar um artigo, ou um livro até.

Escrevo essas palavras iniciais tomadas por um sentimento de inquietação, porque é justamente esse o sentimento elaborado no espetáculo online “Logo Ali” do Grupo Matula Teatro (SP). Em cena, através da partilha do espaço-tempo permitido pela plataforma do Zoom, três atrizes encenam situações em que: ou estão sendo violentadas ou estão diante de alguma suspeita de violência contra uma mulher. As cenas apresentam sempre um “após”, a figura masculina está visivelmente ausente e se presentifica apenas por uma voz em áudio em certo momento. O que vemos são mulheres diante da crise sobre o que fazer após a situação. Considerando que muitos dos casos de violência, estupro e feminicídio são cometidos por homens próximos às vítimas, que faziam parte do círculo de convivência dessas mulheres, os vínculos tornam as reações mais difíceis. Seja por ter se estabelecido afeto, confiança, laços familiares, dependência financeira e material; a relação entre a vítima e o algoz pode parecer objetivamente nociva ao olhar externo, mas para quem vive a situação, a realidade não se apresenta de maneira tão nítida e a possibilidade de escapar da situação não parece visível. Nesse contexto, a obra questiona “o que eu posso fazer?”, a frase circula entre as atrizes em cena e é jogada ao público.

Pela própria construção dramatúrgica que situa o público no momento “após” a agressão ser realizada, acompanhamos as atrizes e somos convidadas a pensar em alternativas sobre “o que podemos fazer”. Recentemente, nos deparamos com o caso de assassinato de uma mulher trans por um adolescente no estado de Pernambuco. A vítima teve grande parte do seu corpo queimado e não resistiu aos ferimentos. Diante disso, “o que podemos fazer?”. O que se faz depois? O que se faz diante do corpo de uma mulher morta, ou que se faz diante de uma mulher com o rosto desfigurado, ou o que se faz com uma mulher marcada por um estupro, ou o que se faz com uma mulher psicologicamente desestabilizada pelos traumas de um assédio.

É inevitável não se incomodar quando o pensamento sobre a violência contra a mulher parece estar localizado em um “após”, quando o corpo está na iminência da morte ignorando, por vezes, as mortes simbólicas e subjetivas vividas por alguém que já foi agredida ao ponto de chegar nesse precipício. O filósofo italiano Giorgio Agamben ao falar de sistemas políticos que atacam as vidas, reitera o conceito de “vida nua”, onde a simples existência biológica parece se sobrepor a qualquer camada de subjetividade. Negocia-se a mera sobrevivência, como se continuar respirando fosse a única condição de vida humana.

E então, como recursos cênicos de diversas obras que falam sobre questões de gênero e suas políticas, atrizes exibem cartazes com dados e números que evidenciam as situações de violência, ou citam casos e situações recorrentes, como se já não acessamos isso continuamente nos noticiários e redes sociais. Importante nos atentarmos para o fato de que, certas repetições de imagem podem gerar clichês e esvaziar o seu sentido primário e sua capacidade de afetação no público. De tanto observarmos a mesma forma de apresentação de certa imagem, ela corre o risco de ser naturalizada; e ao invés de nos indignarmos com isso, aceitamos o absurdo da situação como componente “natural” da nossa realidade. Para aprofundar ainda mais a questão, muito importante pensar sobre a ação coletiva e a ação individual dentro de um contexto estrutural e político. Quando cobramos a reação individual de um sujeito diante de determinado contexto, não podemos esquecer que a transformação de uma problemática estrutural se dá a partir de uma ação coletiva e política organizada. Não se trata apenas do que “eu” vou fazer, mas de qual projeto de sociedade estamos dispostos a construir. Na leitura de alguns ensaios sobre a sociedade do cansaço do filósofo sul-coreano Byung Chul-Han, já podemos observar essa exaustão de cobrança do indivíduo que ao invés de impulsionar movimentos, promove o efeito inverso e gera autodeterioração.

O que quero convocar nesta crítica é o pensamento de que é importante nos debruçarmos, como artistas, nas discussões sobre as relações e sua ética. Percebo a ausência de um olhar atento à educação sobre gênero nas infâncias, adolescências e espaços múltiplos de formação dos sujeitos; a fim de que possamos criar outros papeis sociais diferentes do que desempenhamos atualmente e que reforçam hierarquias e opressões a partir de configurações corporais padronizados e em favor de uma heterocisnormatividade compulsória. Para além de estratégias de defesas cobradas daquelas que são violentadas, faz-se necessário falarmos sobre a própria violência e os acordos de silenciamentos como aspectos culturais e projetados para servir a uma demanda. Se usarmos a arte para repetir os dados que quantificam a falência dessa humanidade ou ainda para reproduzir os discursos que revelam as mazelas já identificadas há séculos ou ainda cobrar dos indivíduos inseridos naquela experiência estética, que estes, individualmente, projetem algo para gerar mudança; como nos diferenciamos de posts que viralizam em redes sociais, atiram pensamentos ao vento virtual, mas não decantam em corpo algum?

Não quero dizer aqui que o teatro não possa assumir uma postura ativista, nem posicionar-se politicamente ou ainda se debruçar sobre as problemáticas estruturais de uma sociedade. Mas, convoco a pensarmos sobre a própria montagem cênica para que essa alcance uma dialética que que dialogue com a complexidade dos discursos vigentes e que não apenas cobre atitudes de um corpo violentado ou semelhantes a ele, mas que também traga para a problemática o corpo que viola e não o tome como imutável e natural do modo como está operando. Convoco a pensarmos a dramaturgia não como uma reprodução de sentenças e situações que já possuem imensa recorrência midiática, mas para encontrarmos outros caminhos para dialogar sobre o que ainda está sendo evitado ou tomado como incontestável.

O corpo que está sendo posto em dúvida, em crise, em risco, na encruzilhada, é o corpo da mulher. O que acontece se nos debruçarmos sobre os homens e questionarmos o projeto de estruturação da masculinidade e suas vertentes colonizadoras, patriarcais, racistas, imperialistas e capitalistas? O que pode ruir quando passarmos a questionar a ficção do “homem de família”? Será que somos os corpos-protagonistas de nossa própria morte e apenas figurantes das nossas vidas?

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