Sobre Objetos, Gênero e Objetificação

Por Diogo Spinelli
24/08/2021

Entre os dias 21 e 30 de agosto de 2021 está acontecendo em Primavera do Leste (MT) o XIV Festival Velha Joana. Nós do Farofa Crítica (RN), em parceria com o site Parágrafo Cerrado (MT), fomos convidados a realizar a cobertura crítica do evento, escrevendo quinze textos que serão publicados simultaneamente em ambos os sites.  Ao todo serão apresentados 39 espetáculos, entre obras presenciais e transmitidas pelo YouTube. Olhando a vasta programação do festival, chama a atenção a grande quantidade de obras dedicadas ao que se poderia chamar de Teatro para a Infância, havendo no evento inclusive uma ação de pensamento realizada de modo presencial, cujo tema disparador foi justamente este.

Louça Cinderella, como já é possível antever pela presença de sua personagem-título, é uma das obras presentes na grade do festival direcionadas ao público infantil, ou à toda família. O sintético trabalho do grupo gaúcho Cia. Gente Falante – a obra dura cerca de 15 minutos – utiliza-se da linguagem do teatro de objetos para contar sua versão do clássico conto de fadas. Nele, somos recebidos por um garçom que faz as vezes de narrador/manipulador, contando a história através do manuseio das louças que compõem uma mise-en-scène que remete ao ritual do chá da aristocracia europeia.

Se por um lado a escolha da linguagem do teatro de objetos aparece como uma grande oportunidade de introduzir os espectadores mais jovens ao pacto teatral, por aproximar-se do universo imaginativo das crianças na transformação de objetos cotidianos em personagens, a escolha do uso de utensílios com pouca ou nenhuma mobilidade ou articulação por vezes despotencializa o efeito de identificação ou de caracterização das personagens, causando quase que um efeito reverso: as personagens parecem objetificadas.

Essa perspectiva é reforçada quando passamos a observar a obra a partir de um prisma que leva em conta a representação dos gêneros no trabalho. A escolha e o uso de objetos-receptáculos (xícaras, passivas) para a representação das personagens femininas, e objetos-depositadores (bules, ativos) para representar as personagens masculinas surge como uma tradução cênica que reforça certos estereótipos sociais associados aos gêneros feminino e masculino.

 A cena inicial, na qual o pai de Cinderella corteja insistentemente sua mãe, bem como o final destinado às irmãs-guardanapos, que atendem ambas ao chamado de secar a boca molhada de um convidado do baile, são especialmente incômodas quando observadas a partir deste ponto de vista.  Ainda neste sentido, a própria xícara-Cinderella parece isenta de carisma não por ser uma xícara comum, mas, sobretudo, por não desempenhar papel relevante em sua própria narrativa. O que lhe garante o posto de futura rainha, segundo a dramaturgia do espetáculo, seria sua essência composta por elementos de suavidade, delicadeza, raridade e simplicidade: bela, recatada e do lar.

Pode-se dizer, com razão, que essas e outras disparidades de gênero já estavam presentes no conto original (ou ao menos, em sua versão popularizada pelos Estúdios Disney): o incentivo da disputa entre mulheres, o homem como aquele que detém o poder para escolher a esposa que lhe convém, o amor romântico como ideal, a construção de uma família tradicional como epíteto da felicidade. Mas, seria prudente nos perguntarmos a que projeto político estamos servindo nosso chá ao escolhermos recontar uma história sem que haja a perspectiva de atualizá-la frente às importantes mudanças sociais que vêm sendo conquistadas contemporaneamente.

A Cia. Gente Falante possui larga experiência reconhecida no campo do teatro de animação. Porém, ainda que não seja o objetivo do espetáculo, as escolhas tanto do ponto de vista da narrativa quanto da seleção e manipulação dos objetos acabam por reiterar uma série de violências simbólicas que reforçam lugares de submissão e que urgem por serem revistos.

Levando-se em consideração a importância da formação de público, sobretudo infantil, que a grade do Festival Velha Joana propõe, seria interessante a realização de debates posteriormente às apresentações, para que questões relativas tanto à linguagem quanto aos discursos das obras possam ser problematizadas coletivamente, na busca pela construção de uma sociedade mais equânime e diversa e com espectadores e cidadãos cada vez mais críticos e conscientes.     

 

Foto do Banner: Guto Muniz.

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