[Amem]

Por Heloísa Sousa
31/03/2020

O texto dramatúrgico assinado pela escritora inglesa Jo Clifford ganhou uma versão brasileira com tradução e direção de Natalia Mallo que convida a atriz Renata Carvalho para protagonizar a obra. A encenação brasileira teve sua estreia em 2016 e a versão britânica em 2009, neste ano de 2020 as duas obras são apresentadas durante a sétima edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que além de contar com outras produções cênicas com artistas trans, também inaugura a Encontra de Pedagogias da Teatra com curadoria da artista, professora e pesquisadora Dodi Leal. Esses espaços artísticos, pedagógicos e críticos afirmados por articuladoras de vivências, pensamentos e práticas trans, não abordam somente questões de gênero, mas trazem também outras elaborações artísticas, sociais e políticas que atravessam todas as corpas e projetam realidades emergentes.

O prefixo trans designa o que vai para além de, aquilo que atravessa, que desloca. Embora tenha sido absorvido de maneira superficial por outros conceitos, como alerta Dodi Leal em debate sobre curadoria na MITsp, o prefixo tem sido afirmado com muita propriedade e articulação por mulheres artistas, pesquisadoras e ativistas trans ocupadas em novos projetos de mundo como ressalta a pedagoga Maria Clara Araújo. São essas corpas, suas existências, práticas e discursos que desestruturam um cis-tema feminista branco que apesar de suas contribuições consideráveis, findou enaltecendo uma figura feminina aliada ao capitalismo e definida em padrões binários e heteronormativos. Artistas como Renata Carvalho, Jo Clifforf, Phia Ménard, Travis Alabanza, Dodi Leal, Lia Garcia, Maria Galindo, Ângela Rodrigues, Marina Mathey, Ave Alves, e outras mulheres instauram presenças que a sociedade insiste em invisibilizar e violentar por trazer uma abordagem humana, que ressaltam as potencialidades múltiplas dos sujeitos e a falência dos sistemas binários, capitalistas, brancos, colonizadores, cisnormativos, heteronormativos e compulsivos.

É nessa direção que o texto de Jo Clifford ganha tamanha significação. Em seu texto, Jesus Cristo reaparece como uma mulher trans e revive todos os seus símbolos e ensinamentos, partilhando conosco pão, vinho e amor. A artista funde em um só corpo, duas figuras vistas como antagônicas pela sociedade: a de Jesus Cristo (filho de Deus) e a de uma travesti (filha do Demônio, ou talvez o próprio). Mas a incoerência desse antagonismo está contida no próprio ensinamento cristão de “amai uns aos outros”. Alvo de constantes censuras, os vigilantes moralistas desta sociedade encontram no feminino manifesto em rainha uma ofensa ao seu repugnante patriarcado. As figuras religiosas são masculinas, deus, pai, jesus, filho, espírito santo, padre, papa, pastor, buda, alá, profeta, doze apóstolos, intercaladas por mulheres prostitutas, mães sofredoras, traidoras, pecaminosas e tudo o que for considerado inferior e profano. O texto de Clifford, por si só, já instaura um desvio nessa ordem ao mesmo tempo em que promove o verdadeiro e real sentido da comunhão.

O mundo é santo! A alma é santa! A pele é santa!

O nariz é santo! Santos a língua o pau a mão o cu [a buceta]!

Tudo é santo! Todo mundo é santo! Todo lugar é santo!

Todo dia está na eternidade! Todo homem é um anjo!

[Toda mulher é uma anja!]

Allen Ginsberg

Na encenação brasileira a presença de Renata Carvalho em cena e o alcance e repercussão que a obra ganhou no país, traz uma marca para a história do teatro brasileiro contemporâneo, denuncia a estrutura arcaica do nosso país, as violências explícitas e a nossa imobilidade política.

Com uma mesa ao centro do palco e um vestido de paetês prata, a atriz – Jesus – narra suas histórias e desloca algumas abordagens, nos convida a pensar em todas as narrativas que já ouvimos repetidas vezes e a ressignificar os signos cristãos que nos foram empurrados goela abaixo e para os quais apenas dizemos “Amém”.

Comunhão, ato de realizar algo em comum, criar uma sintonia de pensamentos e sentimentos. A interatividade proposta na peça e a adaptação aos contextos e modos de expressão tipicamente brasileiros cria um estado de empatia fortalecido por alguns momentos de comicidade. Fomos criados em uma sociedade predominantemente cristã, machista, racista; dessa forma, os simbolismos elucidados pelas artistas na obra perpassam o imaginário de todos nós. Eu, que tenho muitos afetos negativos a essas estruturas, acabo desarmada de minha repulsa a religiosidade. Diante da atriz e junto a ela, ouço, brindo e partilho do seu sangue e do seu corpo. A grande potência da obra está justamente na habilidade de apresentar “opostos” em cena para retirar as cascas violentas dos discursos e das práticas e revelar a luminosidade possível em existirmos juntos. No fim, todos dando as mãos diante de Jesus, Rainha do Céu, que nos abençoa.

O[A] deus[a] que habita em mim, saúda o[a] deus[a] que habita em você.

Culto, uma homenagem de caráter religioso aquilo que se considera divino ou sagrado. Mas, talvez o sagrado divino maravilhoso esteja muito longe, quase inatingível e há tanto aqui por perto para nos ocupar. Então, talvez possamos elogiar a profanação como o fez o filósofo italiano Giorgio Agamben e devolver aos corpos a sua humanidade.

Clique aqui para enviar seu comentário