[O esgarçamento das presenças...]

Por Heloísa Sousa
20/03/2020

São Paulo, 20 de março de 2020.

Depoimento crítico escrito durante o quinto dia de quarentena em decorrência do Corona Vírus. Praticamente tudo fechado, cancelado ou adiado. Sigo em casa [entristecendo], me dedicando a algumas coisas e aos textos a serem escritos sobre a experiência na MITsp 2020.

Texto dois.

“Stabat Mater” é uma das obras cênicas de Janaína Leite, artista e pesquisadora que tem contribuído significativamente com as práticas e pesquisas na cena contemporânea brasileira. É autora do livro “Autoescrituras Performativas” que pensa a autobiografia no teatro e, também desenvolve uma pesquisa de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) sobre a cena da artista espanhola Angélica Lidell. Além disso, é uma das fundadoras do reconhecido Grupo XIX de Teatro (SP); diretora, atriz e dramaturga de outras realizações que dialogam com o teatro documental e também é orientadora do projeto “Feminino Abjeto” onde criou dois seminários cênicos.

Destaco essa trajetória de pesquisa de Janaína Leite porque ela é fundamental para entender seus processos criativos e como “Stabat Mater” cria um ponto crucial na dramaturgia e na encenação contemporânea brasileira. Meu primeiro contato com a obra da artista foi em Natal (RN) ao assistir à apresentação de “Conversas com meu Pai” durante o Festival O Mundo Inteiro é um Palco no Barracão Clowns. Na ocasião, também tive a oportunidade de fazer uma curta oficina com a atriz, dramaturga e encenadora sobre o teatro documental. Naquela ocasião, não tinha muitas referências sobre o assunto, e na iminência de encenar meu espetáculo “Tratados de Mim Mesma na Infertilidade” que também falava sobre trechos da minha vida, aquelas palavras, imagens e discussões pareciam dizer muito dos meus desejos de cena. Algum tempo depois, pude assistir “Branco: o Cheiro do Lírio e do Formol” durante a MITsp, também com atuação e direção de Janaína Leite, uma obra com uma dramaturgia polêmica e que carregava traços da cenografia instalação que eu já havia visto na obra anterior. Junto com isso, descubro também a arte de Angélica Lidell e à distância, com auxílio das virtualidades, vou acompanhando as obras e pesquisas seguintes de Janaína Leite.

A estreia de “Stabat Mater” foi marcada por muitas repercussões e críticas sobre a obra, além de uma exposição de procedimentos e escolhas estéticas adotadas pela artista. Em março de 2020, eu seguia para o Teatro Cacilda Becker com certa ansiedade.

Afetada pelas pesquisas da escritora Julia Kristeva, com seu conceito de abjeção e a publicação do ensaio Stabat Mater, Janaína Leite é atravessada por outras referências estéticas e filosóficas para criar uma obra consistente, extremamente complexa e com uma elaboração imagético-discursiva que se constrói e se desconstrói em cena com a mesma “naturalidade” com a qual ela expõe intimidades e violências pessoais que reverberam diretamente no público.

“Estava a mãe”, essa é a tradução do latim para a frase título da obra e, também se refere à duas orações cristãs, onde a Virgem Maria se mantém presente e sensível ao nascimento e a crucificação de Jesus Cristo. É a partir da figura da Virgem Maria que Janaína Leite esmiúça várias outras figuras femininas e tensiona o corpo da mulher, a morte e o sexo. Tudo isso atravessado por uma problematização do lugar da maternidade como prática, muitas vezes, imposta e opressora. A performance do gênero feminino e sua construção identitária perpassa inúmeras figuras por vezes inalcançáveis, por vezes redutora, entre a imaculada mãe, a jovem indefesa estuprada, a criança cujas vestes devem ser vigiadas, a filha a ser protegida, a puta a ser fodida, entre outras possibilidades de objetificação que retiram o direito expressivo do corpo da mulher sobre si mesma e a condiciona em papeis sociais exigidos pelo cis-tema.

O corpo da mulher, a morte e o sexo, como dito, são tomados ao extremo na obra que esbarra apenas na impossibilidade da morte em si no palco. Todo o resto é reelaborado pela artista de diferentes formas, atravessando as paredes da moralidade e balançando fortemente o véu da teatralidade.

Em cena, com a disposição de uma barra de pole dance, uma mesa comprida, duas cadeiras, microfones, uma projeção e um recorte de chão vermelho (talvez em referência a obra “You’re my Destiny (Lo Stupro di Lucrezia)” de Angélica Lidell, que também influenciou o uso do vermelho em meu espetáculo), a artista manipula outros pequenos elementos construindo imagens que perpassam a sacralização, a profanação e o terror e uma dança cênica que costura a dramaturgia. Destaco aqui a iluminação potente e invasiva que traz um forte diálogo entre a obra e as cores avermelhadas, arroxeadas e rosadas; aludindo as vestes ditas femininas e ao sangue em coágulos e hematomas.

Em cena estava também Janaína com sua vulva em pelos quase constantemente à mostra (não infantilizada) e um ator pornô com o rosto coberto dançando toscamente pelo espaço ora sendo um urso fofo-bizarro, ora sendo Jason Voorhees saído de um filme de terror com seu facão (que nesta obra, apresenta mais ameaça na mão de Janaína). Estava também a mãe, Amália Fontes Leite em sua imponência e vulnerabilidade, dialogando com todas as jaulas morais e sociais que transportamos inconscientemente ao seu corpo. Com essas pessoas em cena, a artista joga com suas figuras de filha, mãe e atriz, esgarça as vulnerabilidades de todos os corpos presentes e ataca nossos imaginários produzindo outras imagens. Isso porque em “Stabat Mater” a imaginação não se faz tão necessária, pois Janaína Leite desobedece às margens do real e da teatralidade, construindo e oferecendo ao público pesadelos, desejos e desafios como sinaliza em sua dramaturgia. Nesse sentido, ela surpreende o espectador e o faz se reconectar consigo enquanto rasga a si mesma no palco.

Na obra, o que vemos é literalmente o processo. O teatro é o percurso a ser apresentado. Somos aproximados do fluxo de pensamento e criação de Janaína, daquilo que a atormenta, dos trechos de sua vida e obra onde se questionava onde estava a sua mãe, das etapas criativas nas quais jogava seu corpo a fim de produzir novas tensões e curas, talvez. Em um flerte com o teatro documental e com os recursos épicos, Janaína constrói outra coisa. Ela observa a si e expõe. Quase como um ato terapêutico, mas mais próximo a uma problematização de si do que a superação. E por isso, a artista também reescreve a história do teatro documental e autobiográfico brasileiro.

O que mais fica em mim da obra de Janaína são suas escolhas radicais. Em determinado momento ela apresenta a ideia que teve, onde sua mãe iria filmá-la enquanto ela transava com um ator pornô. A realização da ideia e a sua produção é explicitada ao público, e desviada do efeito convencional da pornografia sobre os nossos corpos, estamos diante de uma comunhão entre mãe e filha, de um desafio que transcende os sentidos postos e as sensações também. A encenação, como um todo, é fortemente atravessada pelo real e pela presença daquilo que é representativo e verídico ao mesmo tempo. Todos representam a si mesmos, cruzam passado e presente e aludem ao imaginário opressor e sistemático.

Termina o espetáculo. Aplausos. Haverá uma conversa no final com duas pesquisadoras convidadas. Muitas pessoas saem, permaneço no mesmo lugar sentada, quase não consigo me mexer. Me sinto paralisada, talvez estarrecida. Na mente, apenas a questão, o que criar depois disso? Depois desse esgarçamento do teatro e do feminino, o que eu, mulher e encenadora, farei? Lágrimas. Vazio. Medo. Depois a gente retorna a si mesmo, mas o eco da obra permanece.

 

Clique aqui para enviar seu comentário