[Transbordando entre Natal e São Paulo]

Por Heloísa Sousa
04/03/2020

Início da Escrita: Natal, 22 de fevereiro de 2020.

Final da Escrita: São Paulo, 04 de março de 2020. 

A Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) chega a sua sétima edição em 2020, fomentando encontros entre artistas de diversos países, compartilhamentos de obras cênicas que dialogam com as questões emergentes da contemporaneidade e sugerindo debates, espaços pedagógicos e de crítica que possam tratar de urgências artísticas, outras formas de criação e de resistência cultural.

Idealizado e inaugurado pelos produtores Antônio Araújo e Guilherme Marques em 2014, a MITsp vem somando a outros eventos nacionais que juntos, criam um circuito brasileiro de artes cênicas por onde transitam nomes de destaque nesta linguagem e cujas abordagens evidenciam novos direcionamentos da arte brasileira e internacional. Dentro desse circuito podemos citar FIAC Bahia (BA), Cena Contemporânea (DF), Porto Alegre em Cena (RS), FIT BH (MG), Mirada Festival IberoAmericano de Artes Cênicas (SP), Tempo Festival (RJ), FIT São José do Rio Preto (SP), Junta Festival Internacional de Dança (PI), entre outros que recebem artistas e grupos de diversos lugares e promovem a possibilidade de circulação dessas obras em território nacional ou ainda, sua internacionalização, através de encontros com diversos curadores e críticos teatrais.

Festivais, bienais, mostras, circuitos e outros eventos artísticos são fundamentais para promover encontros, formar público e criar possibilidades de abertura das obras artísticas às comunidade, seja através das apresentações em si ou através de discussões sobre as obras veiculadas em diferentes mídias. Em frente à atual condição política vivida pelo Brasil, à desestruturação de políticas públicas em prol da cultura e à disseminação de narrativas que desvalorizam o trabalho artístico e sua influência na construção da autonomia de um povo; vivemos uma constante batalha, onde artistas e produtores buscam ressonância em apoiadores de iniciativa pública e/ou privada para realizar esses momentos de (r)existência da arte brasileira.

Foi na primeira MITsp que acompanhei como espectadora, em 2015, que tive contato com a produção brasileira de crítica teatral. O evento apresenta quatro eixos de atuação: a mostra de espetáculos internacionais, a mostra de espetáculos nacionais, os olhares críticos e as ações pedagógicas. Além de várias palestras e debates sobre importantes temas políticos e artísticos, a MITsp reúne críticos de diferentes cidades para escrever sobre as obras apresentadas durante o evento, os textos produzidos por esse coletivo de críticos são veiculados no site oficial da mostra, além de serem impressos e distribuídos nas portarias dos teatros. Além dessa produção textual, catálogos com informações detalhadas das obras e textos reflexivos sobre as mesmas foram distribuídos gratuitamente e de forma mais ampla até o ano de 2018. Lembro de guardar esses textos impressos e procurar mais sobre os críticos e suas plataformas virtuais ao retornar para Natal. Conheci sites como o Ágora Crítica Teatral (RS), Satisfeita Yolanda? (PE), Questão de Crítica (RJ), Horizontes da Cena (MG) e a Antropositivo (SP). É perceptível a importância da atividade crítica, reconhecida pela Mostra como uma prática de desdobramento da cena e da compreensão do pensamento crítico como uma dissecação da obra, provocando suas intencionalidades, suas escolhas estéticas e discursos, pondo-as em relação umas com as outras e assim pensando também a curadoria da Mostra. Encontrar um espetáculo ou performance para além da sua apresentação, percebendo o artista, sua trajetória e os processos de criação, são fundamentais para construir afinidades com a arte contemporânea e compreendê-la como um artifício de desconstrução das narrativas e sistemáticas vigentes. Nesse sentido, a atividade crítica expande a relação direta entre artista e espectador diante de um palco e o permite passar mais tempo processando a experiência estética e reverberando a situação.

Entendendo a importância que a produção de textos críticos poderia ter para a história do teatro de uma cidade, para a formação de público e para os desdobramentos de discussões sobre a arte foi que criamos o Farofa Crítica, na busca de colaborar com esse panorama de pesquisas e práticas em Natal.

Em 2017, o Farofa Crítica teve a oportunidade de iniciar uma parceria com a MITsp que se estendeu para os anos de 2018 e 2019. Na aba festivais, temos vinte textos publicados por mim (Heloísa Sousa), Diogo Spinelli e Paula Medeiros sobre vários espetáculos nacionais e internacionais que pudemos acompanhar. Com exceção do ano de 2018, onde Diogo Spinelli foi convidado a participar do Painel Crítico da MITsp, as demais práticas críticas que realizamos não foram remuneradas, a parceria se deu através da concessão de ingressos para os espetáculos que possibilitaram uma posterior escrita e publicação de textos críticos. Essa era uma forma de tornar acessível uma perspectiva das experiências cênicas vividas na Mostra para os nossos leitores em Natal.

Como nordestina, inevitável não perceber a ausência marcante de artistas e pesquisadores nortistas e nordestinos nas primeiras edições da MITsp, fato que vem sendo revisto nas últimas edições. Nesta sétima edição, por exemplo, uma das artistas em foco é a coreógrafa cearense Andreia Peixes que chega ao evento com dois espetáculos, uma oficina e participação em alguns debates. Ainda assim, a distância geográfica entre o eixo sul-sudeste e os estados ao norte-nordeste do país se reflete também em uma distância de diálogos e encontros, quando obras cênicas e pesquisas que trazem abordagens performativas e de fortes desvios produzidos em territórios marginalizados acabam não integrando os circuitos nacionais citados acima, e mesmo quando esses diálogos são esboçados, acabam por serem reduzidos a obras representativas que silenciam uma multiplicidade artística visível nessas cidades.

Aliado a essa situação, vemos em Natal uma dificuldade de manutenção de eventos e festivais de artes cênicas, embora possamos destacar ações muito significativas como o Festival Agosto de Teatro da Fundação José Augusto, o Festival “O Mundo Inteiro é um Palco” do grupo de teatro Clowns de Shakespeare e o Circuito Regional de Performance BodeArte do Coletivo ES3, que tiveram suas atividades descontinuadas por falta de investimento. Em contraponto, surgem outros eventos como o Burburinho Festival de Artes, Festival Território Cênico e o Festival de Teatro da Casa da Ribeira que se mantém com algumas parcerias institucionais e, também pela parceria entre artistas e espaços culturais. A resistência desses eventos que reúnem centenas de pessoas nas plateias, desmistificam a narrativa da “ausência de teatro” em Natal e promovem espaços de fruição estética são fundamentais, logo a atividade crítica é igualmente importante para repensar a prática curatorial, a formação de público e a produção de pensamentos e experiências políticas que subvertam a realidade. Antes de ser percebido como um evento para entretenimento do cidadão natalense, esses momentos podem ser vistos como essenciais na formação crítica e cultural do sujeito, desconstruindo narrativas e posicionamentos normativos.

É essa realidade que me mobiliza a escrever. Escrever para minimizar fronteiras, para desestruturar “a ilha”, para estimular deslocamentos. Se tem algo que eu aprendi vivenciando a MITsp é a importância do deslocar-se; tanto para curadores, artistas e pesquisadores do eixo, quanto para os que produzem nas margens; são os deslocamentos que produzirão desterritorializações e provocarão encontros inusitados de renovação das práticas.

Na experiência de escrever textos críticos sobre os espetáculos da MITsp, geralmente publicamos os escritos no dia seguinte a apresentação. Portanto, a escrita corresponde a uma percepção imediata da obra, mas que requer uma dedicação de horas entre uma reflexão do que foi experienciado e algumas pesquisas sobre o artista, o contexto do espetáculo e outras críticas já escritas sobre ele.

Entre as edições que se passaram, algumas obras me atravessaram de modo singular, me impulsionaram a experimentar a escrita crítica (sim, ela também é passível de experimentação e formatos variados) e marcaram também minha produção artística como encenadora. Sobre 2017, talvez uma das obras que mais cito em conversas informais sobre teatro é “Por que o Sr. R enloqueceu?” da encenadora alemã Susanne Kennedy pelo paradoxo da experiência do tédio que o espetáculo sugere. Se ao sair do teatro ao final da apresentação me senti tomada pelo sentimento de indignação e repulsa ao que foi apresentado, em casa, ao me debruçar sobre a escrita vi minha percepção se transformar e produzi um texto sobre a intenção da artista em provocar esse mesmo tédio. Para escrever sobre “Para que o céu não caia” da coreógrafa brasileira Lia Rodrigues e seguir a ausência de fluxos narrativos de uma obra coreográfica, experimentei o uso de palavras soltas e a descrição das minhas percepções-memórias. E foi escrevendo sobre o espetáculo chileno “Mateluna” dirigido por Guillermo Calderón que levantei inúmeras questões e crises sobre o teatro documental, sua estética repetitiva e uma possível construção espacial defasada. As questões permanecem.

Em 2018, o ator, diretor e crítico Diogo Spinelli foi um dos convidados para compor o Painel Crítico da quinta edição da MITsp. Ao lado de críticos advindos de diversas regiões do país, Diogo teve a oportunidade, nessa ocasião, de acompanhar a todas as obras que compunham a programação da Mostra de Espetáculos, além de participar de grande parte das atividades pertencentes ao eixo Olhares Críticos. Nesse sentido, a cobertura da Mostra propiciou ao mesmo tempo um diálogo formal e informal entre os críticos que compuseram a equipe responsável pela escrita das críticas diárias não apenas sobre as obras e os artistas presentes naquela edição, mas também levando em consideração os entrecruzamentos entre a reverberação dessas obras e as ampliações de percepções provindas das discussões geradas nos Olhares Críticos.    

No ano seguinte, em 2019, outras obras me afetaram. Não posso deixar de citar a experiência de escrever sobre “Paisagens para não colorir” do grupo chileno Teatro La Re-Sentida e “Cinco Peças Fáceis” do encenador e dramaturgo suíço Milo Rau, apesar de serem obras bem distintas, existem alguns pontos que convergem como a temática da violência que enlaça as duas obras e a presença de crianças e adolescentes no elenco. A obra chilena traz nove jovens falando sobre a opressão aos corpos de mulheres, enquanto a outra traz a história de Max Dutroux conhecido pelo estupro e assassinato de crianças na Bélgica em 2004. Foi também nesta sexta edição que pude assistir “Lobo” de Carolina Bianchi, onde uma mulher se propôs a atuar, escrever e dirigir vários homens, o contraste entre as imagens de Bianchi e os demais atores nus evidencia sua estética emergente e a sinaliza como uma das artistas brasileiras mais promissoras da nossa geração. A cobertura crítica que realizamos de 2019 foi finalizada com a obra “MDLSX” da companhia italina Motus. A performance da artista andrógina Silvia Calderoni marca uma encenação permeada por sonoridades e luzes psicodélicas para falar sobre intersexualidade e normatização dos corpos.  

Neste ano de 2020, estou em São Paulo novamente para a sétima edição da MITsp, cuja curadoria buscou seguir duas palavras-chave: transbordar e transgredir. Serão quatorze espetáculos internacionais, quatorze espetáculos nacionais e inúmeras atividades críticas e pedagógicas entre os dias 05 e 15 de março. Ocupando diversos espaços culturais da cidade, a mostra oferece muitas atividades gratuitas e espetáculos com ingressos entre R$ 40,00 e R$ 10,00 (valor inteira). Entre os dias 06 e 16 de março estarei publicando um texto diário sobre um espetáculo assistido na MITsp no dia anterior, além de acompanhar muitas outras atividades e registrá-la em nosso instagram @farofacritica. A cada ano é um corpo diferente que se senta na plateia, que digita palavras intensas (ou não) durante madrugadas e que trabalha durante horas para que todos os textos sejam publicados. Aproveitem!

OBS: Texto escrito com colaboração e revisão de Diogo Spinelli.

Imagem: Obra do artista brasileiro Henrique Oliveira. 

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