[bicho des-humano]

Por Heloísa Sousa
30/12/2019

Complete a frase:

“O grande erro da ditadura foi...”.

Se você pensou “torturar e não matar”, há algo de errado em você. Eu sei que nossa mente tende a complementar as coisas em um modo associativo veloz, mas bem que podíamos subverter as lógicas preconceituosas ‘fáceis’ e devolver ao mundo um raciocínio crítico ágil. Quando a personagem da “mulher monstro” interpretada pelo ator José Neto Barbosa faz a pergunta acima ao público, me veio imediatamente a mente a resposta: “existir”. Quis gritar da minha cadeira para o ator conseguir ouvir bem, tive receio de desestruturar a cena porque talvez a resposta esperada fosse outra, alguém do público grita a ‘resposta certa’ proferida pelo Presidente Jair Bolsonaro. O ator repete a pergunta uma duas vezes, e a cada resposta o coro do público aumenta. Quero me afundar na cadeira. Pensei que para o ator, ouvir a ‘resposta certa’ deve ser uma grande merda, talvez se eu tivesse gritado, a personagem tivesse ficado histérica e o ator tivesse saído aliviado.

A Mulher Monstro é um espetáculo dirigido, escrito e atuado por José Neto Barbosa a partir do conto “Creme de Alface” de Caio Fernando Abreu. A obra é uma colagem de falas e discursos preconceituosos, excludentes, elitistas e desumanos que sustentam políticas genocidas em nosso país e que estruturam o governo vigente. Essas falas são proferidas por uma personagem absurda, uma mulher branca e loira com aparência exagerada e excessivamente clássica, enclausurada em uma jaula e falando com luzes, consigo mesma, com um público [que pasmem, parece compreendê-la perfeitamente, o que é assombroso]. Embora esteja sendo apresentada em um palco de teatro, A Mulher Monstro carrega uma performatividade que subverte a lógica dramatúrgica de apresentação de personagens ou desenvolvimento de cenas que revelam transformação das figuras. A mulher monstro não muda, nada se desenvolve, ela só repete exaustivamente as mesmas coisas e sua única capacidade ‘destrutiva’ é de inventar novas justificativas bizarras para sua mentalidade. Sentada na cadeira da plateia, visualizo a mulher monstro enjaulada na rua ou em uma galeria ou ainda em um desses prédios públicos e políticos frequentados por homens brancos de colarinho, falando suas besteiras por horas. A Mulher Monstro tem muita potência de performance e talvez até se resolva melhor nesse sentido do que enquanto encenação, não à toa, o final do espetáculo não completa o ciclo interminável de violência na qual a figura está afundada. Há certas existências que não se curam em si mesmas.

Ainda assim, a encenação tem uma exatidão técnica na operação da iluminação da trilha sonora que consegue construir múltiplas imagens em um espaço restrito e ainda trazer dinamicidade ao trabalho. A construção corporal e vocal do ator é extremamente potente e consegue articular a figura entre estados humanos, desumanos e animalescos.

A leitura do conto de Caio Fernando Abreu que baseou o espetáculo pode ampliar a percepção do espectador, as escolhas sobre a encenação que trazem corporalidade para um conto são muito acertadas e seguem o fluxo de pensamento acelerado e verborrágico da figura principal, evidenciada tanto no conto quanto na peça. Para além disso, José Neto Barbosa consegue adequar ao trabalho falas, discursos e pensamentos que ouvimos exaustivamente desde o golpe sobre a Presidente Dilma Rousseff em 2016 até a posse do atual presidente Jair Bolsonaro e sua política genocida; refazendo o espetáculo com frequência em uma constante atualização performativa que nos lança diretamente ao nosso presente de modo cruel e direto.

Se a encenação e atuação de José Neto Barbosa são muito consistentes na construção dessa personagem agressiva e contraditória, que busca manter seus valores pseudocristãos enquanto deseja o abandono, a exclusão e a violência aos corpos que divergem do seu, a reação do público é extremamente incômoda. Se a figura enjaulada parece ser ridícula e estar diante de nós como um animal exposto ao nosso deleite, em alguns momentos a situação parece se inverter. De dentro da jaula, a personagem nos observa ridículos, burros e coniventes. Saio do espetáculo impressionada com a quantidade de risadas geradas a partir das piadas homofóbicas, gordofóbicas, racistas e machistas. O que de fato é engraçado em tudo isso? Para completar o circo, o público completava todas as frases bizarras ditas pela personagem numa prontidão surpreendente. Obviamente, que não há a intenção de concordar com a figura, mas ainda assim, há uma carga simbólica em ver o público repetir os erros ao invés de jogar com a personagem a partir do seu posicionamento ideológico. O teatro como um exercício daquilo que desejamos.

A personagem central é branca e essa escolha também tem uma representação político-social muito forte. A branquitude opera numa falta de autoconhecimento, por não compreender nem o outro, nem a si mesma; cultiva uma baixa autoestima que se reverte em agressão para esconder as problemáticas psicológicas de uma existência ignorante e que valoriza o luxo da casca como determinante nas relações. No fundo, há vazio, solidão e ignorância que a faz sucumbir em si mesma como humano. A branquitude é sistemática, enquanto precisava ser antropológica.

No final, aplausos. Aplaudo também porque não quero trazer leituras equivocadas a quem está do meu lado, vai que me pensam bolsonarista, o que seria deplorável. Entendo que os aplausos são para o artista, sua equipe técnica e a encenação. Mas, ao mesmo tempo, aplaudir fervorosamente depois de ouvir por quase duas horas tudo o que a personagem dizia me era muito incômodo. Aquelas falas que ecoaram nas paredes daquele teatro não mereciam ser aplaudidas.

Talvez a/o leitora/leitor perceba certa indignação na minha escrita. Você tem razão. A Mulher Monstro serve para nos causar indignação, repulsa, urgência de mudança. A obra não é bonita, não é empática, não é maravilhosa, é um reflexo do enorme desvio ético que vivemos e é uma cobrança pelas nossas atitudes.

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