[Que a fé nos abale...]

Por Heloísa Sousa
13/04/2019

Em “Altíssimo”, o diretor e ator Pedro Vilela materializa cenicamente uma pesquisa feita durante alguns anos sobre os rituais neopentecostais. Visitando continuamente alguns cultos em igrejas protestantes pelo país, somado a leituras sobre o assunto e uma retomada das memórias sobre sua própria trajetória, o artista tenta entender a relação de entre os pastores e seus fiéis, percebendo o que leva um indivíduo a frequentar rotineiramente esses espaços e a se adaptar aos seus discursos e práticas. A partir desse interesse de pesquisa, Pedro Vilela se junta ao dramaturgo paulista Alexandre Dal Farra para criar este espetáculo, onde atua e dirige em um processo solitário – como diz o próprio artista em conversa após a apresentação do espetáculo durante a 6ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – mas revelador de suas próprias questões e contextos.

Vestido com um traje social “incompleto”, o ator ocupa um espaço preenchido por alguns elementos de cena que vão sendo utilizados ao decorrer da encenação remetendo a diferentes práticas e manifestações da fé religiosa cristã. Um pequeno monte de sal grosso, microfones, garrafas de plástico com água, vinho, taça, entre outros recursos sonoros e visuais que remetem a cantos, orações e enunciações diversas. Na obra, o ator cria uma performance transitando entre histórias de si mesmo e de outras figuras observadas em espaços religiosos. Apesar das fortes referências religiosas e que atingem um imaginário brasileiro específico, ao pensarmos nas relações contraditórias entre cristianismo e fanatismo, a dramaturgia também remete pontualmente a questões existenciais. A figura central se questiona sobre sua fé, sobre as pessoas que as rodeiam, sobre o porque de estar naquele momento presente. Mais do que uma crítica agressiva a qualquer tipo de relação religiosa estabelecida entre as pessoas e as instituições, reduzindo a experiência complexa da fé a uma simples alienação, a encenação parece se perguntar constantemente o porque que tudo isso se estabelece; revelando inclusive outros modos de operação comuns da fé em nosso cotidiano, como a relação com o dinheiro ou com o ritual. Apesar dessas intenções, é inegável a atuação violenta de pessoas associadas a determinadas instituições religiosas em nome da fé em uma ideologia pregada, que muitas vezes, contribui para um projeto de apagamento e silenciamento de identidades. Nesse sentido, a abordagem “suave” da encenação pode provocar uma leitura distorcida e auxiliar numa não-problematização de atitudes desumanas.

Alexandre Dal Farra desenvolve um texto fragmentado que possibilita a criação e sobreposição de cenas aparentemente diferentes, mas que de algum modo retomam a questão central da fé – ressalto aqui a distinção que percebo entre fé e religião, a obra abre espaço para outras relações de fé que não reduzem o altíssimo a um deus cristão, embora a encenação construa sua visualidade em torno dele. No entanto, a fragmentação proposta por Dal Farra constrói também um terreno movediço para a recepção, criando, por vezse, sensações de distanciamento que pode deixar o espectador perdido no desenvolvimento da experiência cênica ao se questionar sobre a relação entre a relevância do que está sendo dito com o que a obra deseja abordar. Em contrapartida, a direção de Pedro Vilela ao criar imagens com elementos de cena simples, de fácil manipulação e poder simbólico, juntamente com um desenho de luz preciso e também concebido pelo diretor, busca trazer dinamicidade para esse monólogo.

Talvez o ponto mais forte e conciso de “Altíssimo” seja a elaboração da ideia do quanto nossas crenças nos movem ou nos paralisam. E da irracionalidade que opera muitas de nossas ações, mas que revela a sua dialética por reforçar a necessidade de alguns impulsos de conexão como estratégias de sobrevivência.

Em determinado momento, o ator traz para o palco o corpo morto de um cordeiro, com cabeça e patas decepadas, banha-o de sal grosso e o pendura no fundo do palco com um anzol. Algumas pessoas saem do teatro, outras baixam a cabeça e defendem seus olhos daquela imagem, outras se recusam ao aplauso no final da peça.  Apesar da abordagem cuidadosa com as discussões sobre a fé religiosa, visto que isso atravessa a todos, é preciso afirmar a ação antiética de comprar e expor um corpo de um animal morto em cena, ferindo diretamente o ativismo de algumas pessoas. O corpo do animal comprado em um açougue atravessa todo o sistema capitalista promovido pelos grandes pecuaristas que contaminam a política desse país, operam apagamentos massivos de comunidades e colaboram com a destruição e negligência ambiental. Reforço a importância de nós, artistas, começarmos a pensar e agir de modo mais sustentável em nossos trabalhos, reconhecendo a necessidade de realizar escolhas mais éticas na elaboração dos nossos simbolismos. A discussão sobre o veganismo e o especismo vai além de uma dieta alimentar e atinge inclusive as bancadas hegemônicas que dominam os projetos políticos de intolerância e retrocesso do nosso país. Acreditamos que podemos determinar as vidas – animais/humanas – que merecem ou não continuar existindo. E usamos a violência como legitimação das estruturas de poder que nos desviam das conquistas por mais humanidade e qualidade de existência. As ideias nas artes não devem ser censuradas, mas existem diversos modos de realizar a mesma ideia: modos violentos e modos éticos.

Após esta cena, o ator tenta queimar uma nota de cinquenta reais. Talvez a queima de uma cédula afete muito mais algumas pessoas do que a presença de cadáveres ou as torturas humanas sofridas no cotidiano por determinados corpos. Deus é o capital. A maior relação de mobilização da máquina global é estabelecida por este pequeno papel que simboliza o poder de consumir, de ter e de manipular. A concretude dos desejos, a materialidade das vontades. Volto a pensar que “Altíssimo” trata do que acreditamos, trata das relações e vivências que ganham sentido a partir de narrativas postas para serem acreditadas, não necessariamente refletidas. Saio da sala de teatro pensando, até que ponto nossas práticas condizem com nossas crenças. 

 

 

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