[Quando meninas se manifestam...]

Por Heloísa Sousa
04/03/2020

O erro começa na infância.

Talvez até antes. Quando nos descobrem “sem pênis”, uma série de imagens reducionistas invade o imaginário das pessoas ao redor desse nascimento. Inicia-se uma série de práticas e de articulação de discursos prontos que possam bombardear esse feto com os limites daquilo que ela pode/deve ser. Há uma necessidade de que o indivíduo corresponda a uma série de características para que seja reconhecida em determinado grupo e para que perpetue uma lógica hierárquica que mantém certas relações de poder. Quais as consequências da impossibilidade de exercer sua individualidade?

O grupo chileno Teatro La Re-Sentida cria o espetáculo “Paisagens para não Colorir”, onde nove atrizes adolescentes são dirigidas por Marco Layera, que desenvolve, em parceria com Carolina de la Maza, uma dramaturgia criada a partir de depoimentos de mais de cem jovens chilenas que sofreram abusos e violências no país latino-americano. Ao se debruçar sobre esse assunto, casos diversos surgem das próprias atrizes, de notícias veiculadas nas mídias, entre outras narrativas comuns a várias mulheres em diferentes idades. Destacando o corpo jovem e evidenciando sua vulnerabilidade física, o espetáculo narra diversas situações que vão desde as imposições da própria família, até a violência cometida por instituições legitimadas para exercerem tais ações. Mulheres e meninas são silenciadas e apagadas de diversas formas, em estágios diferentes da vida; e a tentativa de fazê-las se enquadrar em um molde pré-estabelecido e funcional para a manutenção do patriarcado veio construindo movimentos e ações de resistência e revolta.

O cenário é composto por uma casa rosa de bonecas, em tamanho real, e que se desloca facilmente pelo espaço. Outros objetos com aparência infantil também saem desta casa e são utilizados para construir as cenas. Bonecas estão presentes, desde as que possuem aparência de bebê até as que servem para atos sexuais [e que possuem as mesmas medidas de uma menina de 12 anos]. Um microfone é passado de mão em mão, os relatos, opiniões e questionamentos são sobrepostos e emitidos por diversos corpos. Ao fundo, a projeção exerce função semelhante à de outros espetáculos apresentados durante a MITsp 2019, quando torna visível expressões faciais e ações desenvolvidas no interior da casa de bonecas.

Diversas situações de abuso e violência são reconstruídas em cena com as adolescentes assumindo diferentes papeis. Em alguns momentos, as bonecas contribuem para essa elaboração, em outros é necessário a presença e interação do público. Para além dos relatos e das reproduções, há um enfrentamento direto com o público. As jovens questionam, gritam e provocam aqueles que as assistem, como que cobrando algum tipo de atitude ou mudança, sabendo que a maioria das pessoas que estarão assistindo suas apresentações serão adultos. Esses mesmos que as oprimem em forma de familiares, professores, médicos ou qualquer outra função. A presença de atrizes tão jovens em cena tensiona a relação entre criança/adolescente e adultos, como acontece em “Cinco Peças Fáceis” de Milo Rau (Bélgica).

Há um senso comum que vê as adolescentes como meninas histéricas, sexualizadas, incapazes de produzir qualquer raciocínio coerente e sem direito a expressão. Uma sociedade centrada no corpo adulto funcional e capitalista rejeita toda a curiosidade e experimentalismo do jovem e toda a maturidade do velho. Em “Paisagens para não Colorir”, as atrizes reivindicam o direito a fala, a existência e a possibilidade de não seguir as normatividades impostas.

No entanto, o ponto mais controverso da obra está em utilizar como elemento cênico e dramatúrgico justamente os estereótipos associados às adolescentes. Desde os figurinos “descolados”, ao cenário de brinquedo rosa e às posturas corporais agressivas. Com o microfone na mão e uma caixinha de som com rodinhas, as meninas gritam, choram, se agitam loucamente, dançam, se empurram e parecem agir de modo infantil ou dramático em muitos momentos. Aquilo que pode causar certo estranhamento no público ou até a sensação de incoerência entre prática e discurso, na realidade, também pode ser visto como possibilidade de se assumir certas atitudes como comuns ao ser humano. A busca por ser um indivíduo perfeitamente centrado, controlado, frio e racional é uma estratégia humanista. O filósofo Paul B. Preciado destaca que o humanismo inventa um corpo que nomeia como humano e que segue os padrões sendo soberano, branco, heterossexual, saudável, seminal, estratificado, com ações cronometradas e “cujos desejos são efeitos de uma necropolítica do prazer”. Neste sentido, segundo o autor o feminismo seria muito mais um animalismo do que um humanismo.

Basta ter alguma experiência de proximidade com adolescentes, em sala de aula, por exemplo, para perceber seus conflitos, suas expressões genuínas e suas buscas por afirmar-se no mundo a partir daquilo que está descobrindo ser. Crescemos um pouco e já aprendemos a “domar” nossos impulsos, sonhos e desejos, nos limitando aquilo que achamos ser possível, construindo lentamente uma paisagem melancólica e cinza que nomeamos de vida.

Apropriando-se da temática da violência sofrida por adolescentes chilenas, o grupo permite ser atravessado fortemente por situações e opiniões políticas comuns aos países da América Latina neste início de século. “Paisagens para não colorir” constrói um manifesto onde meninas exigem o direito de viver em um mundo distante da ignorância opressora, mas também colabora com a instauração de outro teatro onde a multiplicidade dos corpos – para além do adulto/branco/hetero/cis – se tornam emergentes para agenciar novos projetos de humanidade e novas formas estéticas de construir práticas/pensamentos.

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