[Middlesex]

Por Heloísa Sousa
13/04/2019

“A mudança necessária é tão profunda que se costuma dizer que ela é impossível. Tão profunda que se costuma dizer que ela é inimaginável. Mas o impossível está por vir. E o inimaginável é inevitável”.

                                               Paul B. Preciado

Encontro esta frase no final do texto crítico escrito por Juliano Gomes para o site oficial da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, onde o espetáculo “MDLSX” integrou a programação em 2019. Outras frases do filósofo Paul B. Preciado também são citadas na encenação e a possibilidade de visualizar um mundo muito além das normatividades impostas, como diz a frase de Preciado, talvez seja uma das sensações mais fortes ao final do espetáculo.

A companhia italiana Motus vem desenvolvendo o projeto AnimalePolitico desde 2008, com encenações que desconstroem as fronteiras dos gêneros através da presença e narrativas de corpos andróginos. Enrico Casagrande e Daniela Nicoló fundaram a companhia e dirigem os espetáculos, desenvolvendo pesquisas a partir dos pensamentos de autores como Judith Butler e Paul B. Preciado em torno da teoria queer.

Em cena, a atriz Silvia Calderoni, que elabora a dramaturgia juntamente com Daniela Nicoló, executa uma performance pulsante entre a dança, a música e as narrativas. Em um cruzamento entre a sua própria história de vida e da personagem Calíope/Cal do livro “Middlesex” de Jeffrey Eugenides, a atriz dança caótica entre a luz marcante ao mesmo tempo em que opera como uma DJ, função que Calderoni também assume na vida fora dos palcos.

A encenação é centralizada nessa figura intersexual, corporificada pela androginia de Silvia Calderoni. A atriz que não possui as características corporais ditas femininas, como seios volumosos, quadril delineado, feições delicadas e arredondadas, passa a sofrer, desde cedo, as imposições da cisnormatividade e heteronormatividade que exige que todo o indivíduo se identifique com um gênero específico [de preferência o “adequado” para a sua genitália], além de ser obrigado a operar uma série de ações e pensamentos de um kit pré-estabelecido socialmente e enfiado goela abaixo desde a gestação. É um foie gras social.

Com uma cenografia simples e funcional, as cores vibrantes da iluminação constroem um espaço psicodélico entre as memórias da adolescência e a possibilidade surreal desse outro mundo. No fundo, uma mesa comprida com vários objetos dispostos e que são utilizados por Calderoni ao longo da encenação. No chão, um tapete laminado em formato triangular. Na parede, uma projeção arredondada nos mostra o rosto da atriz durante as cenas, intercalando com outras imagens de sua infância e adolescência. A sobreposição de narrativas nos confunde sobre a relação entre o que está sendo dito e a vida de Calderoni, duvidamos se a peça é autobiográfica. Uma menina que durante sua infância passa a ser confundida com um menino. Qual seu gênero? Ela precisa definir? Ou seria, ele? E se essa pessoa escolher transitar entre tudo ao mesmo tempo, transformando esse jogo de gêneros em uma grande experimentação? Existe espaço para aquilo que não podemos definir com exatidão? A exatidão dos corpos serve para que mesmo?

A narrativa que nos é contada nos confunde, entre ter nascido menino ou menina, ser andrógino, ser transexual, cambiar de sexo, ser hermafrodita, os dois ao mesmo tempo. Em “MDLSX” a exposição das possibilidades não gera um processo de seleção/exclusão, ao contrário disso, torna tudo possível e evidencia a construção do gênero como um processo performativo de aparências e subjetividades. A (des)construção é o que nos torna vivo porque nos põe em movimento. A exatidão e definição provoca estagnação, sinal vermelho.

Em “MDLSX” o sinal é sempre verde, ou rosa choque. Seguimos direto em um fluxo alucinado e festivo. Enquanto narra partes de sua história, Calderoni vai liberando músicas de rock seguindo a playlist que embalou sua adolescência. Na parede, vemos projetado os títulos e autores de todas as canções, como se tivéssemos com o spotify ligado e fôssemos lembrando de nossa trajetória na medida em que vamos ouvindo essas músicas. Quase sempre sem camisa, a atriz apresenta um corpo que não passa hipersexualizado pelo nosso olhar, porque existe um fanatismo pelo volume dos seios que não se apresenta nela. Enquanto os cabelos bagunçados se põem sobre seu rosto, percebemos as expressões faciais através da projeção ao fundo. Contrariando o que é comum ao teatro e reconhecendo suas limitações, a encenação traz Calderoni muitas vezes de costas para o público ou atuando para uma câmera na mesa ao fundo, enquanto sua face é projetada simultaneamente na tela circular. Se a distância entre palco e plateia comum no teatro prejudica o nosso acesso às nuances do rosto da atriz, as projeções pedem emprestado ao cinema essa possibilidade e explora esse recurso construindo mais intimidade entre quem atua e quem assiste.

A presença corporal de Silvia Calderoni é o que há de mais forte na encenação, mesmo que a dramaturgia tenha aspectos ficcionais muito fortes, a semelhança com uma possível realidade vivida pela atriz é o que causa mais impacto. A construção visual da obra, calcada nas cores fortes, nas roupas estampadas, nas músicas densas e descoladas, nas movimentações animadas, recupera o imaginário por trás de um universo onírico e experimental em contraponto a um mecanismo cinza e robótico do cotidiano. “MDLSX” problematiza e constrói filosofias sobre várias questões de gênero, mas também propõe visualmente esse lugar de desvio, torna central o corpo marginalizado e traz voz ao que é apenas analisado e julgado. É um projeto de futuro em cena, um chamado para outros olhares e para uma escuta atenta aos que vivem fora de normas, que mesmo aqueles que as seguem – no fundo, produzem também suas recusas.

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