[Cinco Peças Frágeis]

Por Heloísa Sousa
13/04/2019

A segunda peça do encenador suíço Milo Rau, apresentada durante a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp 2019, pode ser considerada um duplo da primeira “A Repetição. História(s) do Teatro I” (confira o texto crítico publicado sobre esta peça, aqui no Farofa Crítica). Em “Cinco Peças Fáceis” o encenador utiliza os mesmos recursos cênicos, a mesma lógica dramatúrgica, a mesma ideia de cenário e até algumas cenas de “A Repetição. [...]” para dar continuidade a sua pesquisa no teatro sobre a transposição de situações verídicas de violência para o palco, construindo tragédias contemporâneas em um limite entre o teatro documental e o teatro épico, sem necessariamente se resumir a nenhum dos dois. Apesar das semelhanças nas escolhas estéticas, o modo como a encenação se desenvolve se diferencia dos artifícios comuns conhecidos dos dois gêneros citados.

Em “Cinco Peças Fáceis”, Milo Rau traz a biografia de Max Dutroux, conhecida na Bélgica pelas acusações de pedofilia e assassinatos de crianças em 2004. Nesta encenação, sete crianças e adolescentes entre 11 e 14 anos, reencenam partes e personalidades da história de Dutroux, acompanhadas de um ator adulto que cumpre a função de dirigir e “organizar” essas crianças no palco, ao mesmo tempo em que tensiona a relação física entre o corpo adulto e infantil da qual a história trata. Tudo começa – novamente – com um teste de elenco coordenado pelo ator Hendrik Van Doorn, e através desse momento conhecemos os nomes das crianças, assim como algumas de suas habilidades artísticas, desejos e pensamentos soltos sobre arte ou outros assuntos. Depois deste momento, na reconstituição da biografia de Dutroux, nos deparamos com seu pai, fatos da sua infância, depoimento de uma das crianças abusada por ele, além de uma breve investigação de como/onde ele enterrava as crianças que costumava matar.

Assim como em “A Repetição. [...]”, vemos dispostos no palco alguns elementos cênicos organizados em “nichos” que representam espaços distintos dessa história; e em uma estratégia mais distanciada, vemos os atores organizando esses espaços no momento de sua apresentação. Simultaneamente, temos a projeção ao fundo, como um telão de cinema, que ora exibe a mesma cena do palco, mas com foco nas expressões faciais do elenco; ora reproduz a cena executada pelas crianças com atores e atrizes adultos.

A escolha de colocar crianças e adolescentes em cena para retratar o caso de um homem acusado de pedofilia e assassinato é o maior ponto de tensão da encenação. A cultura ocidental tende a privilegiar o corpo adulto em detrimento de crianças e idosos, tentando privá-los de determinadas experiências e conhecimentos que julgamos não adequados para determinadas idades. Subestimamos excessivamente o corpo das crianças, não percebendo suas inteligências e sutilezas, evitando sua interação com o mundo e descarregando nossas normatizações nelas para que sigam nossos ideais ao invés de expressar suas subjetividades. Compreendemos o adulto como “formador” desses indivíduos, ao invés de nos percebermos como mediadores de suas vivências.

Dessa forma, percebendo o bom desempenho das crianças em uma encenação que não se configura como um teatro escolar, destacando suas construções corporais, memorização de longos textos e concentração em 1h30min de espetáculo; a maior curiosidade sobre a obra recai no processo criativo e na forma como o encenador buscou dialogar com esse elenco sem reproduzir os autoritarismos e abusos frequentes nas relações adulto-criança/adolescente. O encenador declara em entrevistas, a ênfase na improvisação como elemento criativo aliado ao constante acompanhamento e diálogo com as crianças, psicólogos e familiares responsáveis. Essa relação mediada permite aos jovens compreenderem as tensões e dialéticas sobre o assunto em questão, além de expressar suas próprias percepções sobre o mesmo.

Apesar dos corpos jovens, eles também estão sendo afetados cotidianamente pelas mesmas notícias e situações aos quais nós, adultos, estamos sujeitos. Estamos todos em constante aprendizado, portanto, produzir pensamentos e ações a partir daquilo que se vive é inevitável. A escolha por trazer jovens ao palco desafia o próprio encenador, modifica a estrutura da encenação e permite uma experiência singular a esse elenco. Ao pensarmos (e imaginarmos) a violência, compreendemos como algo latente no ser humano desde a mais tenra idade, e estimulado ou controlado através da cultura na qual somos educados. Em um momento sutil de tensão, o ator Van Doorn questiona as crianças se elas já mataram algum animal. Insetos, peixes e outros bichos de pequeno porte são situados como estratégias de diversão. Em seguida, após serem questionados sobre expressões de carinho e afeto vindo dos familiares; os mesmo jovens torcem o rosto ao imaginar a avó beijando sua bochecha a cada encontro familiar, por exemplo. Esses relatos inocentes já demonstram nossa relação estranhada com o afeto positivo e a violência.

Se a pesquisa de Milo Rau sobre casos de violência em países europeus – em contraste a seus títulos de países de primeiro mundo –, juntamente com suas escolhas estéticas parecem construir uma forma trágica contemporânea, e seguem a necessidade de se colocar em cena situações reais do mundo observando como o teatro pode subverter certas lógicas; em contrapartida, a dramaturgia – e consequentemente a encenação – parecem cair em uma mera descrição de acontecimentos. Nas duas encenações de Milo Rau, saio com a sensação de incompletude. Apesar de perceber a intenção do artista em apenas descrever e exibir em cena uma situação desagradável e banalizada pelas mídias convencionais, ainda assim, a problematização e produção de pensamentos sobre a situação podem ficar comprometidas. Se destacarmos a elite intelectual, prioritariamente branca, que frequentam os grandes teatros e festivais do nosso país, será que essas encenações não estariam reforçando nossa inércia trazendo apenas um retrato fácil [frágil] seguido da legenda “realmente, é uma situação muito triste” que resumiria a afetação implicada pela obra? Ao mesmo tempo em que compreendo a função disparadora da obra de arte que não precisa construir uma narrativa excessivamente didática, que o conduza a uma “grande reflexão transformadora” por si só, correndo o risco ainda de ser maniqueísta. No entanto, em tempos de desconstruções narrativas, revoluções existenciais, descolonizações e busca por novas epistemologias, o teatro pode não apenas narrar um novo projeto de mundo, mas ser um por si só.

A presença dos jovens em cena, que poderiam ter sido as vítimas de Max Dutroux, parece construir certa “reparação” da situação, na medida em que traz voz aquelas que outrora foram corpos violados pelo adulto. E permite que elas falem daquilo que poderia tê-las silenciado, tomando consciência sobre os riscos impostos aos seus corpos em uma sociedade sedenta por opressões e violações. Se a presença dos jovens trazem essas reflexões, a figura de Max Dutroux acaba sendo apresentada de modo unilateral, reduzindo-o aos crimes cometidos e não ressaltando sua dialética que poderiam ser fundamentais, não para o apagamento de suas atitudes, mas para a construção de um pensamento mais ético e estrutural da situação, relevando inclusive nossas responsabilidades em torno da produção dessas subjetividades que desviam o bem-estar comum da sociedade.

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