[Uma voz, duas vozes, milhares de vozes. Você ouve?]

Por Heloísa Sousa
19/11/2018

O espetáculo “Unwanted” foi uma das obras apresentadas durante o FIT-BH nos últimos dias da programação. Criada como uma parceria entre Dorothée Munyaneza, coreógrafa ruandesa radicada na França e a musicista norte-americana Holland Andrews. Duas mulheres jovens, com trajetórias distintas, uma tendência multiartística extremamente potente e um desejo de cruzar seus trabalhos ultrapassando as barreiras das distâncias geográficas. Talvez, uma das coisas mais impactantes, para mim, ao assistir esse espetáculo – duas vezes, dois dias seguidos – tenha sido a oportunidade de conhecer essas duas artistas e me aproximar dos seus trabalhos, acompanhando suas pesquisas e outras experimentações através de registros virtuais.

No palco, as presenças de Dorothée e Holland ocupam um espaço vasto, quase vazio, com movimentos, luzes e sons. A ruandesa transita por todos os lugares dançando, interagindo com os poucos elementos de cena e narrando histórias de outras ruandesas com uma voz encorpada e dramática. Ao fundo, Holland vestida com uma manta imponente faz ecoar música, palavras e gritos. Além das cores da iluminação, das estampas das roupas, temos um grande quadro com uma mulher negra pintada e dois pilões grandes na lateral do palco. Tudo seguindo uma paleta de cores entre o azul, o laranja e o amarelado. O pilão, utensílio utilizado na cozinha africana, em cena ganha função de instrumento musical evocando batidas fortes e graves.

É possível abordar inúmeras questões através dessa experiência estética considerando a política, o afeto e a arte. A maturidade e a seriedade do trabalho artístico das duas mulheres em questão é algo memorável. “Unwanted” é um exercício de atravessamentos do “impossível” não somente pelas questões do processo criativo evidenciadas pelas artistas nas conversas após a apresentação, mas também pela temática abordada em cena e pelas escolhas estéticas que transitam entre variadas linguagens e possibilidades de comunicação. O espetáculo aparenta ser uma obra simples, e de fato é se pensarmos nos elementos cênicos que se apresentam, mas os modos como cada um desses elementos surgem em cena e é aproveitado criam momentos únicos dentro de uma sala de teatro. “Unwanted” é uma obra inesquecível.

Dorothée Munyaneza reúne narrativas de várias mulheres sobreviventes ao Genocídio de Ruanda de 1994, onde a guerra entre as etnias tutsi e hutu provocaram massacres e estupros coletivos. Essas mulheres resistiram a atrocidades diversas, muitas engravidaram e pariram filhos e filhas decorrentes de violências sexuais contínuas. Transitando entre o idioma nativo das ruandesas, o francês e o inglês, Dorothée cria um espetáculo onde narrativas e traduções se sobrepõem. Não há ficções no palco, a realidade crua é expressada de diversas formas estéticas. Percebo que a obra se aproxima do que temos chamado de “teatro documental”, mas ao invés dos recursos desgastados da projeção [com os mesmos posicionamentos em cena e as mesmas funções] e da narração convencional e professoral dos fatos de algum momento da história, Dorothée cria outras possibilidades e se deixa afetar pelas narrações. A sobreposição das narrativas em diferentes idiomas cria um jogo de personalidades que viveram o momento de formas distintas, além de uma paisagem sonora que é uma experiência artística por si só. Para além da fala e das palavras temos o corpo da artista que se move em uma dança atravessada por essas dores, recusas e resistências. Parece não existir uma definição estética que nos faça pensar em categorias específicas da dança ou do teatro, é mais uma investigação e improvisação sobre como as artistas são mobilizadas por essas outras mulheres e pelas trajetórias e políticas de antepassados ou pelo simples – não tão simples – compartilhar a existência do outro em todas as suas densidades e lacerações.

Para além das narrações e da dança, existe o hibridismo com outras linguagens. Um dos elementos mais marcantes em cena é uma grande pintura do artista visual sul-africano Bruce Clarke, com uma mulher negra pintada em quase três metros de altura com a qual Dorothée se relaciona. Além disso, a construção musical é fundamental na obra, com o canto de Holland Andrews que transita entre os agudos líricos e os graves punks, juntamente com as composições e intervenções sonoras do compositor francês Alain Mahe. Em “Unwanted” o som e suas sensações são tão fundamentais que chegam a criar memórias corporais em quem o assiste – e ouve. Não se trata apenas da música em si enquanto letra ou melodia, mas das profundezas e extremos que uma voz ou uma reverberação pode alcançar. Em alguns momentos, o grave é tão acentuado nas caixas de som que temos a sensação de desmoronamento, quando o lugar teatral literalmente vibra em decorrência das ondas sonoras. São gritos ecoados de vozes silenciadas, são corpos que externalizam a sobrevivência a partir de dores que não desejamos se quer imaginar, ao mesmo tempo em que configuram potências dos corpos vivos que se movem e, portanto, produzem sons e ruídos.

Dorothée Munyaneza é musicista, autora da trilha sonora do famoso filme “Hotel Ruanda”, não é à toa seu interesse pela sonoridade da peça. Além disso, é performer e criadora de movimentos, sem seguir uma formação clássica em dança. Uma multiartista que entende todo o seu corpo como força de criação e enunciação, desde a sua voz até os seus membros. Sua sensibilidade a faz estabelecer parcerias com outros artistas de semelhante força e qualidade criativa. A voz de Holland Andrews [pesquisem "Like a Villain" no Youtube ou plataformas como Deezer e Spotify] ecoa no espaço de um modo que me espantei quando vi o rosto de uma jovem de 30 anos ao final do espetáculo; a densidade do seu canto me transmitia uma sensação de “velhice”, em minha percepção, aquela mulher tinha mais de 50 anos com absoluta certeza. Tal percepção não seria possível sem o desenho de luz criado por Christian Dubet, com contrastes perfeitos entre o azul e o amarelo, através de refletores posicionados lateralmente o artista cria sombras que tornam as artistas silhuetas da vida de milhares de mulheres.

O trabalho de Munyaneza em “Unwanted” não é forte apenas pela originalidade com a qual expressa narrativas reais. Existe um pensamento estético e uma experimentação consistente por trás do processo de criação da obra que a faz ir para além de um relato histórico que poderia ser acessado em um livro, por exemplo. Além de nos fazer pensar sobre a própria produção artística cênica contemporânea, onde biografias fazem parte da pesquisa, a artista nos faz refletir sobre o entendimento social do corpo da mulher em situações de guerras. Em um embate entre etnias mobilizado por uma série de questões políticas, colonizadoras e geográficas, existe um espaço absurdo para a misoginia que precisa ser discutido. Em situações de tensão e de disputas, a dominação masculina tornar-se um ponto nevrálgico e o corpo da mulher se transforma em um território de conquista, exploração e submissão. As guerras territoriais, políticas e ideológicas reverberam em colonizações do feminino, através da invasão das genitálias, da legitimação do estupro e do desejo doentio em transferir ao corpo da mulher o peso de uma doença, de um trauma e/ou de uma fertilização forçada. Mas, a capacidade de resiliência de um ser humano é tão surreal que fez muitas dessas mulheres sobreviverem e ainda conseguir expressar suas histórias, sem necessariamente estar atrelada a uma qualidade psicológica e física de existência, mas ainda assim, um mínimo de sobrevivência. Em entrevista a jornalista Nicole Bloom, a artista ruandesa cita a atriz sul-africana Hlengiwe Lushaba: “Our task as an artist is to mend that which has been broken”[1].

[1] “Nossa tarefa, enquanto artistas, é emendar aquilo que foi quebrado”.

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