[Na superfície, questões afogadas...]

Por Heloísa Sousa
17/09/2018

O teatro tem se apresentado também como um espaço de expressão de questões, corpos e narrativas ocultadas e silenciadas pelas vozes dominantes. Isso é perceptível não somente em festivais como o FIT-BH, mas também na produção cênica emergente de muitos grupos e artistas que não integram esses eixos de circulação. A celebração do corpo resistente tornou-se uma urgência política e estética.

É nesse cenário que podemos situar o espetáculo “Peixes”, um solo criado pela atriz Ana Régis que assume a personagem Cláudia. Uma professora de 47 anos, que trabalhava ministrando aulas para crianças, que sofreu abuso sexual durante a infância e mais tarde, se casou e vivenciou a violência doméstica até ter o impulso de matar seu marido. Diante desse “desvio”, já que a ação de assassinar seu agressor interrompe um ciclo de opressões que ela “deveria suportar”, Cláudia é colocada em uma prisão manicomial.

O espetáculo começa e estamos diante da artista Ana Régis, que num primeiro momento, nos recepciona e nos convida a fazer parte da experiência que se segue, auxiliando-a a contar aquela história. Para isso, necessita de um voluntário ou voluntária que se disponha a assumir o papel do médico durante a encenação. Na apresentação do dia 15 de setembro no Teatro Raul Belém Machado, o espectador que se voluntariou para representar o médico foi um homem. Sua ação primordial seria ouvir o que Cláudia tem a dizer. Neste momento, percebo que se ao invés de um homem, uma mulher tivesse se oferecido para tal papel, a recepção do espetáculo se modificaria. A simples presença do corpo reconhecido socialmente como feminino ou masculino já traz em si, fortes discursos.

Estamos diante de uma consulta médica. Cláudia (Ana Régis) será atendida pelo médico (espectador). E então, ouvimos uma narrativa criada pela atriz a partir de relatos de vivências de mulheres de diferentes idades diante de problemáticas semelhantes em torno do abuso sexual, moral e psicológico. A dramaturgia não somente relata os fatos, mas nos põe diante de tentativas fracassadas de compartilhamento das opressões sofridas, acompanhadas de discursos de culpabilização da vítima pelo ocorrido. Para alguns, ser mulher já é um erro.

Essa dramaturgia se desenvolve através das falas e gestos da atriz em relação com o espaço. Ora diante de móveis que caracterizam o consultório, ora diante de um desenho de luz que constrói cenários para as memórias compartilhadas.

Os peixes desenhados nas superfícies da pele e do papel, que também dá título a obra, aparecem como metáforas dos falos que invadem os corpos femininos. Ou então como “disfarces” para as situações de opressão, um modo “infantil” e falso de lidar com aquilo que é silenciado. Silenciado porque os lugares masculinos de poder temem ser questionados. Na encenação há momentos de pausa. Depois de falas contínuas, ela para, toma água, engole e tranquiliza. Algumas coisas são afogadas na garganta.

As narrativas são absurdas e contraditórias quando ouvimos, ao mesmo tempo em que são muito familiares se pensarmos em nossos contextos. São absurdas porque a irracionalidade por trás da lógica de submissão e violação dos corpos e dos direitos humanos são evidentes, ao mesmo tempo em que são uma realidade arraigada de tal modo que revoluções de pensamentos são necessárias e estão instauradas há muito tempo. São contraditórias porque o mesmo corpo opressor é também detentor de uma delicadeza que engana e disfarça socialmente a violência que se instaura entre quatro paredes. Talvez esta seja uma das potencialidades do teatro, a possibilidade de trazer luz a essas questões, evidenciando-as e trazendo caminhos de discussão e subversões.

 

 

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