["Quando é que a revolução acabou?"]

Por Heloísa Sousa
15/09/2018

Quando eu era criança, um professor de história da escola onde eu estudava, disse para toda a turma: “Durante esses anos, vocês aprenderam uma coisa errada. Aprenderam que os portugueses descobriram o Brasil. Isso não é verdade, eles invadiram as terras onde vivemos hoje e colonizaram aqueles que já habitavam esse lugar”. Surgiu então, um pequeno trauma de infância. Pequeno trauma da história. Que outras mentiras estavam para serem contadas?

Joana Craveiro é a artista por trás da atuação, direção e dramaturgia de “Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas”, um espetáculo teatral com duração de 05h30min, talvez um pouco mais, dividido por um intervalo onde é oferecido um jantar a todos os espectadores. Nessa obra, a artista se debruça sobre uma longa e aprofundada pesquisa sobre anos da história de Portugal, passando pela ditadura militar instaurada através de um golpe em 1926 até a Revolução de 25 de abril de 1974, conhecida como Revolução dos Cravos, abrindo espaço para uma nova constituição e um regime democrático.

Com uma abordagem documental, a artista investiga em cena um modo de contar as vozes e as memórias de pessoas que vivenciaram esses períodos da história portuguesa, mas que são excluídas das narrativas dominadas por grandes figuras e interesses políticos que, por vezes, distorcem a realidade. Somos afetados cotidianamente por narrativas e pedagogias enrijecidas que insistem em uma linearidade dos acontecimentos, uma hierarquização das comunidades e a ocultação de fatos que questionem as hegemonias. Quando ao contrário disso, vivemos entre um constante cruzamento e reverberações de histórias e vivências. Craveiro nos mostra o quanto a história de Portugal é múltipla, contraditória e complexa; como a própria natureza humana.

Obviamente, as questões abordadas e contadas pela atriz não são exclusividade de Portugal. Não somente pela relação colonizadora que se deu entre Brasil e Portugal, mas também pelas situações de golpes, ditaduras, torturas e disseminação de discursos de exclusão sobre corpos dissidentes presentes em países do mundo inteiro. É impossível não lembrar da situação política que estamos vivendo atualmente ao ouvir os relatos de Craveiro sobre acontecimentos que se passaram a quase cem anos atrás. O passado talvez não esteja tão atrás assim...

Mas, o tempo não para e a continuidade da história é também permeada por revoluções. Ações necessárias e geradas por conflitos e inquietações, união de pessoas que expressam outros pontos de vista, que clamam pela emergência de novos pensamentos. Revoluções como a busca por concretizar ideias de liberdade e de paz. Onde o humano em sociedade anseia por saber que se vive em um espaço onde é, de fato, possível viver. Onde é possível viver para todos, igualmente.

E nisso surgem pequenos atos de resistência como a leitura. A atriz anuncia essa estratégia revolucionária logo no início do espetáculo, e passa a criar um jogo de palavras lidas e ouvidas em diversas mídias possíveis. Muitos livros cruzaram terras ilegalmente e trouxeram outras possibilidades de visão de mundo. No entanto, existem também muitas palavras não escritas e que foram “caçadas” pela atriz através da coleta de relatos diversos dos que viveram tempos passados. Muitas histórias foram silenciadas, outras se recusam a se expressar, mas o movimento de busca e diálogo não cessa; seja ele impulsionado por historiadores, sociólogos, artistas ou qualquer outro.

O espaço cênico construído parece flutuar entre um palco de teatro, uma sala de uma arquivista, um escritório de estudos e preservações, uma sala de aula. Assim como a atriz joga com diversas personas criadas a partir das histórias ouvidas e materializadas em pequenos gestos e relações. As narrativas são muitas, às vezes superam nossa capacidade de acompanhar tudo. E no meio dos fatos, falas e situações contadas por horas contínuas há objetos pequenos, luzes, livros, roupas e músicas que se relacionam com as palavras construindo a dinamicidade da obra.

A sensação de exaustão é uma possibilidade corporal para o espectador diante de tanto tempo de experiência cênica, mas não seria possível contar tudo isso de outro modo. Muito tempo, muitas palavras, não é disso que se constitui a história? Nessa obra, Joana Craveiro constrói um “museu vivo” com muito tempo e muitas palavras, mas que partem de outros referenciais.  E em tempos de museu incendiado (fato citado pela atriz durante o espetáculo), a arte nos relembra que o corpo é resistente, revolucionário e capaz de continuar...

 

 

 

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