Sobre reescrever a própria história e sobre a efemeridade [da crítica] teatral

Por Diogo Spinelli
23/02/2018

 

Meu Seridó, espetáculo inaugural da produtora Casa de Zoé, finaliza nos dias 24 e 25 de fevereiro sua segunda temporada na cidade de Natal. A obra, que estreou em novembro do ano passado, realizou na ocasião um ciclo de apresentações em praças de diferentes bairros da cidade. Nessa oportunidade, assisti à apresentação realizada na Praça Vermelha, que integrava a programação do evento Eco Praça. Ao assistir novamente a obra em sua segunda temporada – desta vez realizada integralmente na área externa do TECESol – me surpreendi ao perceber o quanto minha fruição da mesma havia se modificado neste segundo contato.

Como é possível que uma obra teatral desperte em um mesmo espectador pontos de vista divergentes sobre si mesma – sendo alguns deles até mesmo antagônicos? Ao me deparar com esse questionamento, identifiquei que, apesar de a maior parte dos elementos constituintes da obra terem permanecido inalterados nas duas apresentações, um aspecto fundamental havia mudado consideravelmente entre elas: o espaço no qual a obra se apresentava e, por consequência, a relação de fruição que cada um dos locais escolhidos proporcionava aos espectadores. Mas seria essa mudança tamanha a ponto de podermos nos questionar se, nas duas ocasiões, continuávamos tratando de uma mesma obra?  

A experiência proporcionada por essa dupla apreciação de Meu Seridó despertou em mim uma reflexão acerca não apenas do teatro, mas sobre a própria crítica teatral, e de como esta também se encontra vinculada – ainda que isso não seja explicitado de forma recorrente – àquela que é uma das características essenciais da arte teatral: sua efemeridade. Diferentemente de uma obra literária ou cinematográfica que, via de regra, são consideradas acabadas quando entram em contato com seus fruidores, o espetáculo teatral está em constante inacabamento, revisão, jogo e movimento.

Além das variáveis decorrentes do fato de o teatro concretizar-se em tempo presente frente a uma plateia diversa a cada apresentação, a arte teatral caracteriza-se pela necessidade de possuir uma adaptabilidade e variabilidade técnica que permitam com que a obra seja realizada em outros locais para além daquele para o qual foi originalmente concebida.  Através dessa combinação de variáveis, é possível que, ao assistirmos múltiplas vezes a um mesmo espetáculo, estejamos diante de obras muito diversas entre si, ainda que, a priori, trate-se de um mesmo trabalho. Dessa maneira, há de se considerar que a crítica teatral também é efêmera, uma vez que versa sobre a experiência específica de um contato singular com a obra, sendo impossível abarcar o que poderia vir a ser “a obra em si”.

No caso das duas apresentações relatadas de Meu Seridó, o elemento que mais se reconfigurou na obra a partir dos respectivos espaço cênicos utilizados foi aquele relativo à recepção de sua dramaturgia. Se no contexto da praça, as interferências sonoras e visuais do entorno – acrescidas das dificuldades técnicas, principalmente aquelas relacionadas à sonorização (devidamente corrigidas na segunda temporada) – prejudicavam uma comunicação mais direta entre obra e público através de sua dramaturgia, o reservado espaço do TECESol possibilita um acompanhamento mais minucioso das várias camadas (ou círculos concêntricos) propostas pelo imbricado texto de Filipe Miguez, que exige do espectador (sobretudo daqueles que não possuem familiaridade com a história, o vocabulário e a cultura seriodenses) uma grande dose de atenção.

Talvez seja justamente essa diferença de recepção da dramaturgia o elemento responsável por gerar fruições tão distintas entre as duas apresentações citadas. Uma vez que, apesar do evidente zelo demonstrado em todos os demais elementos da cena – da direção musical de Caio Padilha, ao design de luz de Ronaldo Costa, e à direção de arte de João Marcelino –, a montagem possui em seu texto dramatúrgico o principal veículo de seu discurso; discurso esse que se firma na revisão da história oficial da fundação do Seridó para reescrevê-la dando voz àqueles que foram – ou continuam sendo – colocados à margem dela.   

Assim, ao sermos recepcionados por uma família típica seridoense para sabermos um pouco mais sobre a região, somos levados a re-conhecer a fundação do Seridó não (ou não apenas) pela figura do português Tomaz de Araújo Pereira, mas pelos habitantes anteriores à presença ibérica na região. Sempre com caráter crítico – sem com isso dispensar o humor e a poesia (em falas muitas vezes versificadas) –, se sucedem as cenas nas quais o elenco reveza-se na tarefa de contar a história do Seridó através de seus primeiros habitantes: dos homens pré-históricos, passando aos indígenas, e desses ao gado e seus vaqueiros anônimos, para somente então chegarmos aos lusos (ainda que a presença de costumes judaicos na cultura local faça com que não seja possível determinar realmente se foram os portugueses cristãos os “primeiros” a chegarem ao Seridó).

Após essa primeira parte, a trama desloca-se da fundação do Seridó para, através da figura de Josefa Araújo Pereira, filha do fundador, tomar como principal foco a questão da posição da mulher dentro da sociedade seriodense. É durante esse segmento que ocorre a sequência de cenas que aproximam o espetáculo de uma linguagem mais popular, durante a encenação do romance entre Josefa e Caetano Dantas Correia – que posteriormente seria fundador de Carnaúba dos Dantas – em linguagem de radionovela.  Se em um primeiro momento o posicionamento da sociedade perante Josefa aparece de forma que beira o maniqueísmo, a relação “amorosa” entre Caetano Dantas Correia e Cabocla Jurema – uma índia laçada – faz com a figura de Josefa passe de oprimida a opressora, em uma disputa de poder que complexifica tanto a personagem quanto as questões de dominação dentro daquela sociedade.  

Ainda que o discurso de revisão histórica e de valorização de vozes minorizadas em uma sociedade que não as reconhece possa ser compreendido dentro de um contexto nacional ou mundial, não se restringindo às questões relativas à região sobre a qual a obra alude, Meu Seridó trata-se de um espetáculo permeado pelos afetos, memórias e vivências carregadas pela cultura e pela tradição desta região. Desse modo, a obra se comunica de forma mais direta com aqueles que a povoam e sobre quem, no final das contas, Meu Seridó versa: figuras anônimas que até hoje veem, constroem e vivem a disputa entre Terra e Sol pelo amor de Chuva, nos solos do Seridó.

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