[Por trás das máscaras da rua, há muita excitação]

Por Heloísa Sousa
10/02/2018

A prática de instituir um momento de compartilhamento pedagógico com outras pessoas tem se tornado um desafio constante na trajetória de muitos grupos de artes cênicas. Independente do nome selecionado para nomear esse momento, é evidente a necessidade de abrir as portas de sua sala de ensaio para o outro, após anos de maturação e pesquisa. É um engano pensar que esses grupos ou artistas independentes tenham o objetivo de ensinar alguma técnica ou modo de fazer característico de seu repertório, antes disso, é muito provável que esses artistas queiram aprender ainda mais a partir do confronto entre aquilo que experimentaram e o frescor de corpos que vem de outras práticas, teorias e gerações. Obviamente que, no exercício de mostrar ao outros seus aprendizados e inquietações, há também um desnudamento de sua própria trajetória e uma revelação daquilo que vem te constituindo profissionalmente e existencialmente. Além de tudo isso, a escolha por gerar uma obra cênica [por mais experimental que ela se caracterize] a partir de um laboratório de cena, com duração de apenas duas semanas, é um risco.

É um risco porque, talvez, a prática “puramente” pedagógica [no sentido metodológico] seja mais utópica, mais livre e aberta; dando-nos a sensação de que todos os caminhos são possíveis e trazendo uma responsabilidade muito grande para o discente, sobre o seu próprio processo de aprendizagem. Ao preferir montar [sempre utilizo esse termo no sentido proferido por Sergei Eisenstein] uma obra cênica como “resultado” de um laboratório de cena, é provável que os artistas envolvidos tenham que se deparar continuamente com a necessidade de fazer escolhas. Escolhas exigem cortes, renúncias, negações, autoridades, humildade e por isso, mexem com nossos demônios[1]. Ilude-se quem pensa que um processo criativo seja um paraíso de positividades, ao contrário disso, é um lugar de embate; o que não quer dizer, lugar de opressão, mas sim espaço de dialéticas e contrastes. E são nesses momentos que crescemos, florescemos; e não necessariamente pelo discurso da obra, mas principalmente pelo encontro com a pluralidade de discursos dos sujeitos.

Obviamente que, neste texto crítico, a minha percepção sobre o “Somos Todos Vanessa” será limitada ao lugar do espectador, visto que acompanhei apenas esta apresentação de conclusão do laboratório; e reconheço que a experiência de encontros e trocas de aprendizagens, além das escolhas estéticas que surgem disso - e que não tive acesso – são extremamente significantes para a obra.

O ponto de encontro era o Barracão Clowns, localizado no bairro de Nova Descoberta em Natal (RN) e sede do grupo de teatro Clowns de Shakespeare, propositor do laboratório de cena em questão. De lá, começamos nossa itinerância subindo pela Avenida Amintas Barros, cruzando ruas até a paralela Rua Dinarte Mariz Neto. As cenas acontecem em pontos dessa trajetória e conduzem nosso deslocamento pela paisagem característica do bairro marcado pelo movimento contínuo, residências de classe média e classe média baixa, igrejas e pontos comerciais locais e independentes. Nesse percurso, homens e mulheres assumem o nome Vanessa, e mesmo que em situações distintas, todos problematizam a mesma questão: o feminino. Abrindo espaço também para discussões sobre intolerância e padrões de pensamentos.  

Mesmo sendo classificada como exercício ou experimento, a obra cênica [para além das definições do artista] é um processo de comunicação que evidencia outras questões para além das categorizações. Dessa forma, penso que é possível elaborar um pensamento crítico sobre o que foi apresentado, ainda que, destacando meu lugar de percepção e a existência de outras peculiaridades no processo que não vivenciei.

Em cena, vinte intérpretes, entre mulheres e homens de idades, sexualidades, linguagens e culturas diferentes mostram um trabalho consistente em relação ao improviso, ao domínio do jogo e a relação com o espaço. É possível perceber algumas distinções na qualidade da presença cênica entre os corpos, mas os estados alcançados por muitos em tão pouco tempo mostram a urgência do projeto de escola livre idealizado pelo grupo em 2014 e que vem se concretizando nesses laboratórios. Distanciar a teoria do teatro de sua prática é uma tarefa incoerente desempenhada por alguns profissionais acadêmicos e o encontro entre a figura do artista e do docente no mesmo indivíduo, talvez seja o desvio necessário nesta realidade.

A apropriação do espaço da rua não se dá somente pela ocupação [efêmera] das calçadas, do asfalto e das casas; mas também pela relação entre as aparências corporais, as figuras assumidas e as paisagens por onde circulam. Há sempre algum ponto de conexão entre o que está sendo vestido e o local onde o corpo age. E mesmo sem uma iluminação cênica convencional é possível perceber texturas, brilhos, cortes. A obra assume uma criação de figurinos também a partir da montagem, onde peças já existentes em acervos pessoais ou profissionais podem compor uma nova figura, a partir de um jogo de sobreposições.

Neste sentido, há uma dramaturgia da imagem em conexão com uma dramaturgia das palavras e do espaço. O caráter experimental parece permitir essa multiplicidade de abordagens dentro da linguagem teatral – interventiva – o que traz mais organicidade para a obra, pois a dimensão do inesperado provoca outro ritmo na recepção do espectador. Particularmente, tenho muita afinidade com essas obras mais “inacabadas” que, muitas vezes, não integram o repertório dos grupos de teatro [por motivos óbvios], mas que parecem dizer muito mais das inquietações artísticas e dos desejos dos envolvidos.

Muito justificado pelo curto tempo de processo criativo, algumas fragilidades aparecem em cena. A interação com o público poderia se configurar mais a partir do modelo mítico do que do estético [citando Renato Cohen, no livro A performance como linguagem] desconfigurando as separações entre “espaço do público” e “espaço do ator” que se estabelecem por hábitos. Dessa forma, talvez a obra se direcionasse para uma estética mais artaudiana, orgiástica; embora já se aproxime desse lugar. É evidente que alcançar essa outra potencialidade requereria outro laboratório e mais tempo de preparo.

As cenas da obra são fragmentadas e possuem certa independência [como nas encenações épicas] que se fortalecem na medida em que temos que nos deslocar a cada mudança de situação. A provocação do deslocamento induz a uma nova relação diante do que é visto. Aqui, novamente, nos deparamos com o fator “tempo de maturação” e percebe-se que cada cena poderia ter mais desenvolvimento dramatúrgico – quase como um começo/meio/fim, mas não necessariamente narrativo – que acaba não se configurando em todos os momentos e cria certos desníveis ao decorrer da obra.

O discurso sobre o feminino aparece de modo infértil [no sentido da não citação do estado de gestação possível no corpo da mulher, como sendo um estado representativo da mesma], selvagem e profano. Há uma escolha por desenvolver cenas a partir do que é rejeitado nos corpos humanos, a prevalência da misoginia. 

Apesar das discussões sobre o feminino e variações de preconceitos, temas que me tocam profundamente, houve outra questão na obra que me inquietou ainda mais: o teatro em si. Percebi que na rua, em proposições interventivas, o diretor e o dramaturgo parecem se diluir ao – quase – imperceptível. Quem possui a prática de encenar, sabe que é possível perceber os procedimentos e as escolhas do diretor em cena. Mas, na rua, o intérprete controla a cena, pois o domínio do momento presente é uma exigência chamada de “improvisação” e o trabalho do diretor e do dramaturgo se tornam ferramentas em suas mãos. Para os artistas que assumem esses dois papéis, talvez a rua seja um espaço desconfortável [leia-se “exercício para o ego”] se comparado com a caixa cênica.

Além disso, há o modo como o trabalho atinge e arrasta os moradores do bairro pelas ruas. Como o teatro os movimenta. Como são instigados a pensar e contextualizar o que estão vivenciando a partir de seu próprio vocabulário. Utilizando uma linguagem metafórica, arrisco dizer que o teatro é um inferno. E os seus demônios falam línguas distintas como na Torre de Babel. Mas não só a linguagem dos idiomas, que inclusive possuem potência de comunicação mesmo se não forem traduzidas. Quero dizer que a experiência dos aprendizes é uma, a do Clowns de Shakespeare é outra, a dos moradores do bairro é outra, a dos espectadores iniciados é outra. Cada grupo constrói sua própria percepção da realidade.

Então, o que acontece? Uma orgia, uma promiscuidade. Qualidade daquilo que se mistura desordenadamente. A instauração de um evento, de uma ruptura no tempo-espaço. Isso nos revela as fragilidades da nossa própria cidade, as crueldades do nosso ofício e a maravilha da excitação que se mantém quando espectador sente-se, de fato, afetado. 

[1] Em antigas crenças politeístas, os demônios (derivado da palavra daimon) seriam espíritos que inspiram o ser humano, para o bem ou para o mal, influenciando no seu caráter.

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