A palavra como arma e como obstáculo

Por George Holanda
04/02/2018

A palavra é o elemento primordial de Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, produzido pelo coletivo Nóis de Teatro (CE) e dirigido por Murillo Ramos. A obra, que acontece na rua, é uma voz contra a dura situação do negro na nossa sociedade, o preconceito de que é vítima e sua busca por dignidade. Nela conta-se a história de Natanael, um jovem negro que teve uma infância difícil e que passa a negar sua cultura e cor em face do seu sofrimento, o que vemos no primeiro e segundo atos, cada um destes devidamente anunciados. Na busca por aceitação social, Natanael ingressa na polícia, mas acaba assassinando um homem e vai a julgamento, o que se passa no terceiro ato do espetáculo.

Expor a trajetória da personagem dessa forma pode parecer que a valorização da palavra se dá por meio da sua dramaturgia, mas não é o que ocorre. Toda a encenação se volta para a palavra como motor do trabalho. A história de Natanael nos é mostrada por episódios da sua vida. Mas mais do que assistir ao seu percurso, se ouve sobre suas vivências. Os episódios tem vários narradores, posições em que se alternam os atores. Mesmo que as ações tentem contar a história, a narração a suplanta, repetindo o que nos é mostrado e muitas vezes explicando o que podemos concluir.

A história de Natanael pode ser o veículo para se tratar da questão racial no nosso país, mas é na narração, na palavra falada, que se tem a maior intenção do trabalho: comunicar.

No objetivo de comunicar que se opta pela palavra. É perceptível em Todo camburão tem um pouco de navio negreiro uma elaboração maior da narração que se segue à cena, do que da própria cena. É nesse comentário posterior à cena, na análise que se faz do episódio pelo qual Natanael passou, que se evidencia o maior interesse do trabalho. E a narração, adotando um distanciamento épico, se utiliza da palavra nas suas várias formas: culta, informal, poética, musical etc. 

Com isso o trabalho tenta alcançar um amplo público. Este parece ser o motivo de acontecer na rua. Mesmo não seguindo a uma certa tradição estética do teatro de rua (nem haveria de se filiar), é o tema da questão racial (que realmente se encontra no cotidiano das cidades), bem como o intuito de trazer à tona a discussão no ambiente público, que  justifica o espetáculo acontecer na rua. O cenário é composto por uma estrutura com escadas laterais. No topo desta fica o ator que executa a música e também narra na maioria das vezes. A cena acontece à sua frente, no chão. É simbólico o fato do narrador se encontrar acima da cena, no ponto mais alto do cenário. A palavra como elemento mais valorizado.

A busca de Natanael por dignidade se dá pelo percurso de ser visto pelos outros, é a evidência física e, portanto, visível da cor da sua pele que o impede de ser valorizado. Por outro lado, a busca de Todo camburão tem um pouco de navio negreiro é ser ouvido, expondo a condição do negro e construindo sua própria voz. Entre o ver e o ouvir, este prevalece. Exemplo disso é quando os atores usam bonecos na cena. Inevitavelmente seguimos mais suas falas do que acompanhamos a movimentação dos bonecos (que não tem rosto). É clara a opção da encenação por este viés. Ocorre, contudo, que este caminho chega a um resultado inescapável. Ao falar sobre tudo o que vemos, se subestima a cena no seu potencial comunicador. E a adoção irrestrita à narração, sem uma robustez da cena a acompanhar, mina o próprio alcance pretendido, já que resultamos confortáveis na posição de quem receberá toda a informação, não mais sendo provocados.

É curioso de se notar que no último ato a narração é abandonada, uma vez que tudo se passa no julgamento de Natanael. Com a palavra institucionalizada pelo ambiente, se abre mão do recurso. E neste momento há uma utilização maior da cena como potência comunicadora. A tentativa de inclusão do público pela votação do destino da personagem busca revelar as várias camadas que envolvem a questão do preconceito racial, ainda que ao final a única conclusão possível para o debate seja a da dificuldade do negro em conquistar sua dignidade. A participação de um promotor que se utiliza de manobras pouco honestas para colocar seus argumentos repete a vilania de que Natanael foi vítima toda a sua vida. E a participação da sua mãe no seu julgamento demonstra o fracasso dele em sua intenção de romper com a estrutura que o oprime. A discussão proposta ao público tem um fim único, inocente ou culpado, ele continua uma vítima.

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro tem a missão de denunciar, em seus vários aspectos, a violência contra o negro. Uma situação que ainda precisará ser muito discutida para que tenhamos noção do tamanho dessa ferida na nossa história e no nosso presente. Mas a força política desse discurso apenas teria a crescer com o uso de todas as suas armas, dentre as quais está o expediente cênico.

 

Ficha Técnica:

Direção: Murillo Ramos

Dramaturgismo e Assistência de Direção: Altemar Di Monteiro

Elenco: Carlos Magno Rodrigues, Doroteia Ferreira, Kelly Enne Saldanha, Angélica Freire, Altemar Di Monteiro, Henrique Gonzaga, Amanda Freire e Maurício Rodrigues.

Contraregragem: Bruno Sodré, Nayana Santos e Edna Freire.

Cenografia: Jefferson Saldanha

Figurino e Adereços: Miguel Campelo

Bonecos: Carlos César

Maquiagem: Kelly Enne Saldanha

Preparação Vocal: Henrique Gonzaga

Direção Musical: Maurício Rodrigues

Coordenação Geral: Altemar Di Monteiro

Produção: Associação Artística Nóis de Teatro

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