“Sou eu! Sou eu! Como posso me aplaudir?”.

Por Diogo Spinelli
09/12/2016

Entre os dias 04 e 06 de novembro de 2016 ocorreu, no Barracão Clowns, a primeira temporada do espetáculo Violetas, da Cia. Violetas de Teatro. Apesar de estreada há pouco tempo no Festival o Mundo Inteiro É um Palco – Ano IV, a obra em processo já havia sido apresentada anteriormente na capital potiguar em outras ocasiões ao longo do ano (como no caso dos ensaios abertos realizados na edição de abril do Circuito Cultural Ribeira, e em maio na ocupação do IPHAN/RN); de modo que, apesar de recente, o espetáculo já possui uma trajetória que lhe assegura certa maturidade – sobretudo de sua intérprete – ainda que possam ser apontados alguns pequenos ajustes de operacionalização entre os elementos técnicos da encenação, que devem se azeitar na medida em que a obra for cada vez mais encenada. 

Violetas reafirma uma tendência que permeia as atuais produções teatrais da cidade, por tratar-se de um espetáculo solo da atriz Mayra Montenegro. É interessante notar, como exemplo, que todas as estreias natalenses apresentadas durante a última edição do Festival o Mundo Inteiro É Um Palco tratavam-se de espetáculos-solo (#alocadocabelo e Sancho Pança – o fiel escudeiro, ambos da Tropa Trupe, e Rascunho de La Paloma), bem como também o são o mais recente trabalho da S.E.M. Cia de teatro, A mulher monstro, e os também recentemente estreados Sem sal, sem açúcar, da Sociedade T, e João ou Eu só queria ouvir os pássaros, do Grupo de Teatro Para eu Parar de Me Doer.  Se por um lado a opção da realização de espetáculos-solo pode ter ligação com a concretização cênica de desejos e impulsos individuais de artistas que compõem os coletivos de nossa cidade, ao se verificar a profusão de obras nesse formato, não é possível furtar-se à reflexão sobre de que maneira os modos de produção possíveis e disponíveis dentro da realidade da cena teatral natalense podem influenciar diretamente o teatro aqui realizado.

 Na sequência inicial de Violetas somos apresentados à D. Wilma, dona de casa nascida no Rio Grande do Norte nas primeiras décadas do século passado, e que apesar do sonho de seguir uma carreira artística, acaba renegada às funções de mãe, esposa, e posteriormente, avó. Ao longo da encenação nos é revelado que D. Wilma trata-se não de uma personagem de ficção, mas sim da própria avó da intérprete Mayra Montenegro, o que faz com que o espetáculo alinhe-se à vertente do teatro que tem como ponto de partida para a construção da cena a própria trajetória, memória e afeto dos atores ou atrizes.

Ao revisitar a história da própria avó, Mayra e seu Violetas estabelecem como principal recorte a questão do papel da mulher na sociedade – e notícias como a da inauguração da filial paulistana da ‘Escola de Princesas’, somadas à onda conservadora que se instala cada vez mais claramente em todo país, não deixam dúvidas sobre o quanto essa discussão continua atual e necessária, e o quão real é o risco de rapidamente retrocedermos seis décadas a ponto de considerarmos como natural à mulher a posição designada pelas dicas do “guia da boa esposa”, que permeiam a dramaturgia do espetáculo.  À voz de D. Wilma e da própria Mayra, somam-se as vozes de outras mulheres que, seja em São Paulo,  na Paraíba ou no próprio Rio Grande do Norte (refazendo uma trajetória geográfica percorrida pela própria intérprete), amplificam essa questão e nos reiteram da recorrência com a qual, até os dias de hoje, as mulheres continuam sendo subjugadas, tendo seus desejos castrados.   

Em outra camada, mais lírica, a materialização cênica das memórias da relação dessa neta-atriz-cantora com sua avó-que-poderia-ter-sido-atriz-ou-cantora (e que ao término de uma sessão com Bibi Ferreira teria sentenciado: “Sou eu! Sou eu! Como posso me aplaudir?”) constitui-se também como uma espécie de tributo, no qual Mayra vive diante de nós aquilo que D. Wilma foi privada de viver.

Violetas é uma peça íntima, e literalmente familiar – além da relação entre D. Wilma e Mayra, a obra possui a assistência de direção de Eleonora Montenegro, filha de uma e mãe da outra, respectivamente. Desse modo, tendo tido a oportunidade de assistir ao espetáculo tanto n’A Boca Espaço de Teatros como no Barracão Clowns, a relação palco-plateia do primeiro espaço me pareceu mais favorável à fruição da obra, seja pela proximidade da atriz com o público, seja pelo número mais limitado de espectadores. Outro ponto que seria interessante ajustar é aquele relativo à iluminação do espetáculo, que, dada sua proposta expressionista, por vezes não permite aos espectadores acompanhar as sutilezas do trabalho de atriz desenvolvido por Mayra.   

No emaranhado de vozes que costuram a dramaturgia de Violetas, uma última voz se soma: a sequência final da obra é feita ao som de Mercedes Sosa cantando Como la cigarra, canção composta pela poetisa María Elena Walsh, cuja obra se tornara símbolo da luta pela democracia perante a ditadura militar argentina. Mesmo sendo um espetáculo-solo que possui como base memórias pessoais da intérprete, talvez uma das maiores virtudes de Violetas resida justamente nessa multiplicidade de vozes trazidas à cena, as quais Mayra Montenegro consegue articular e presentificar em sua obra/discurso/homenagem/manifesto.

 

 

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