Por Tadzio Veiga
18/05/2025
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Olivier de Sagazan se apresentou recentemente no Brasil, na capital do estado de São Paulo, assim como nas cidades de Santos e Guarulhos, sempre em unidades do Sesc. Realizou o que foi colocado como peça-performance, levando o título da emblemática Performance Transfiguration. O texto que se segue é um relato, uma reflexão e talvez uma articulação de algumas coisas que tem me interessado. No dia 3 de maio de 2025 assisti Sagazan.
A politicidade arredonda as aparições monstruosas?
Essa pergunta martela minha cabeça. Vamos lá. Sagazan parecia alcançar algo muito raro e isso me produzia muita curiosidade. Estava nos primeiros anos da graduação quando fui apresentado a ele, pelo meu pai Wilson Julião, e desde o primeiro momento a experimentação de Sagazan me parecia radicalmente diferente do que estávamos próximos no teatro, na cena, na performação... E não se tratava só de ser experimental, mas do experimental ser a coisa, e os significados, que aparecem porque sempre estão em vias de aparecer, meros acidentes, tropeços semiotizantes. Em meio à fragilização formal de todo o teatro – poderíamos dizer também da dança e da performance – Sagazan parecia, a seu modo e com seus trânsitos de linguagem, apresentar uma alternativa. Mas tentar escrever sobre Sagazan não será meu trabalho por aqui – para tanto precisaria também, no mínimo, me relacionar com os termos das artes visuais e plásticas, assim como com a presença do ritual em sua obra. Meu esforço, aqui, é o de rascunhar um texto, uma pequena reflexão, a partir da minha perspectiva, em relação ao Transfiguration (estreado em 1998): fui espectador presencial (finalmente) dessa performance, sou pesquisador das artes vivas e, como já apontado, tive Sagazan como uma inspiração no meu processo formativo.
Além desses três pontos supracitados preciso adicionar um outro relativizador da neutralidade deste que vos escreves: me entendo num momento de pessimismo, um pessimismo com as artes vivas e com algumas apreensões de corpo, mas também políticas, filosóficas e conceituais, vinculadas a elas. Preciso dizer que assistir Sagazan me fez entender melhor Sagazan e meu próprio pessimismo. Ao que interessa! Assim que ele esboçou uma primeira rostidade e fez mãos de reza e um balanço relativo à devoção, eu pensei: fodeu.
Todo o absurdo plástico e gestual que eu via nos vídeos parecia, naquele instante, sugado por uma figura mais consciente de si e do mundo, e que agora se utilizava de uma argila para criticar exatamente os mesmos que cansamos de ver sendo criticados em outros formatos (mais didáticos, discursivos, “materialistas”). Foi então que pude entender, mais ainda, que meu problema não devia ser reduzido a um ou outro formato específico que se propunha ao trabalho de fazer a sua parte (e ostentar essa feição) e que defenderia seu estatuto por meio dessas ações além do teatro (o que parece, duplamente, operar uma ampliação e asfixia do teatro). Não podia me reduzir a isso, mesmo que me veja numa pesquisa de leitura do que é “Contra o teatro político” do também francês Olivier Neveux, uma publicação de 2019 com tradução para português de Portugal em 2024. O problema, então, seria o da politicidade que invade as formas e expressões que podiam aparecer (na verdade, elas já aparecem) sem que o engajamento de sua própria natureza seja condição de existência. Destaco que logo ao começo da performance Sagazan nos disse, em português: “obrigado por estar aqui, vamos ver o que isso pode significar”.
Até você, Sagazan?! Um cara político que se posiciona????!!!!
Porra, você passa os negócio na cara, fazia uns barulho e foda-se!...........
Quer dizer, que massa! Super importante isso! ;)
Talvez seja viagem minha, idealizei uma diferença que sequer busquei dados assertivos desta diferença. Não me entendam mal, mesmo assim, se precisar, posso dizer o óbvio: o trabalho de Sagazan é muito forte, forja imagens impactantes, uma encenação singular. Deve ser caso de pessimismo. Vejamos.
Em algum momento Sagazan faz (torna-se? representa?) um porco. Depois de estabilizar seu focinho (sim, ele estabiliza), essa figura se levanta, com um traje formal que até então podia remeter ao assalariado precarizado de um capitalismo financeiro-predatório, e faz uma pequena cena de oinc-oinc ditatorial. Esse foi um dos momentos em que eu fiquei em dúvida se havia o interesse de criticar teatros que se utilizam da máscara (e que devem ser políticos, obviamente) que não manufaturam na hora as máscaras dos personagens ou figuras que irão representar. O que assistimos neste momento parece ser uma prévia de uma outra performance de Sagazan, pelo que pude entender em pesquisas na internet, chamada O ditador. Talvez o Transfiguration que vimos seja um conjunto de várias amostras do atual repertório de Sagazan.
Em outro momento, mais próximo do fim da performance, o artista francês (congolês?) edifica um falo – tenta edificá-lo, tenta endireitá-lo e mantê-lo ereto, isto é, nós sabemos que o falo é inalcançável e que sua natureza é o inatingível... não é mesmo? (risos de cumplicidade intelectual e piscadinhas de um olho só). Esse falo, que não é o pau e muito menos um pipi, vem logo depois de uma figura feminina aparecer – muito mais conciliadora e menos farmacopornográfica que as aparições femininas de seus vídeos mais antigos. Sagazan se utiliza de muita argila para forjar esse falo... Eu começo a fazer a mais triste das perguntas, isto é, o menos experimentalista dos questionamentos: o que é essa argila?
Talvez o maior indício, disso que estou tentando esboçar aqui, está presente num momento que me cometo a grosseria de chamar de “momento mais brechtiano” de Sagazan. Faço um desvio, para justificar esse absurdo: lembro-me desse momento, quando assisti O avesso do Claustro (2018) da Cia do Tijolo (SP), espetáculo de homenagem ao arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, nascido em Fortaleza, defensor dos direitos humanos no período da ditadura militar brasileira, em que um ator faz uma menção mais explícita a um dado de realidade do arcebispo homenageado, dado este que não está tão alinhado ao heroísmo progressista comumente celebrado nestes espaços – trata-se do fato de que Hélder teria se aliado e publicamente apoiado o movimento integralista. Em cena, isso aparece da seguinte forma, que é o que verdadeiramente interessa: um blazer verde com a insígnia da Ação Integralista Brasileira ao lado esquerdo do peito é vestido pelo ator que modifica seu modo de falar e de gesticular. O dispositivo representacional é vestir isso. O texto praguejado parece ser ou ter como inspiração a carta do arcebispo em defesa dos ideais integralistas. Após o discurso, o ator retira o blazer como se tirasse uma roupa suja, fedendo, pegajosa... “Nossa, mas tão tava na cara que isso era estranho, arcebispo?” ou algo semelhante é dito. Ai Hélder... Derrrrrrr... Aff. Tá bom, vai...
Feito o desvio, preciso dizer que Sagazan, além de vestir algo que confere a ele a possibilidade distanciada (e “distanciante”) de praguejar como antagonista (como já citado, com relação ao seu oinc-oinc ditatorial), também se desfaz de uma camada mais superficial a qual ele se diferenciará, conforme for oportuno – a argila.
Ao fim da peça-performance ele forja mais uma rostidade, a última, mas dessa vez não como uma prótese ou máscara, e sim nas placas de metal que serviam de fundo. Olhos de tinta preta, de novo. Boca de tinta vermelha, de novo. Neste momento, Sagazan, talvez finalmente Sagazan, nu ou semi-nu (não consigo dizer se temos acesso à sua genitália), talvez purificado pelo ritual que presenciamos, está desfeito da roupa social fascista ou civilizatória (realmente não sei, também, se Sagazan ou sua persona é agente, automatizador ou vítima do oinc-oinc ditatorial) e da argila, que por sua vez parece representar, por vezes, a insolitez de outros modos de existência (leia-se cativar os jovens), e por outras, a mutabilidade de uma produção de controle e de cerceamento (leia-se cativar os intelectuais, os artistas cansados da uniformidade mas certamente antifascistas). Me pergunto, então, se essa limpeza de Sagazan não se tornará apologia ao puro, inversamente proporcional à sujeira que se pode brincar desde que não nos confundamos com ela.
Sagazan, mas essa meleca aí é o barro ou é a bosta?
Falamos do capitalismo que se amplia a ponto de territorializar o que não continha até então... do neoliberalismo, evidentemente. Não param de conjurar o que está fora, incorporando-os e atribuindo a estas aparições do fora, fins produtivos. É também o caso da ciência régia, é o movimento do aparelho de Estado: camadas civilizantes, práticas e burocracias civilizatórias; apreensões, recodificações. Nós reconhecemos essa conjuração, mas talvez não a reconheçamos quando ela se apresenta numa forma revolucionária ou engajante. Pergunta: e se uma forma de engajamento ou mesmo de emancipação estiver a serviço do tal Aparelho de Estado? Digo isso, nos termos deleuzoguattarianos, o que é palpavelmente demonstrado por Neveux no livro citado acima. Mas não vou me limitar ao teatro e nem à política cultural, muito embora esta última seja de grande importância para uma análise rigorosa de alguns fenômenos. Em outro momento, com certeza.
A territorialização é movimento (daí a importância de não sentir suficiência em intitular como “território” um ou outro espaço totalizado, pois isso estaria nos colocando sempre em atraso), e neste sentido me parece importante olhar para essa coisa, esse problema, essas aparições de politicidade nas obras que não estariam, de antemão, calcadas no exercício político.
Mas peraí. Tudo é político, logo, tá tudo certo… E tudo vai bem.
Foda-se esse texto.
A única diferença é que algumas obras sabem de sua força política ;)
e mostram isso, e outras não sabem, mas nós sabemos por elas! :o
Já que esse debate só se vale da eficiência da própria atuação política quando convém, retorno ao tamanho que o presente esboço textual pode ter. Fiz essa suposição: a politicidade territorializa o que jura meramente engajar. Feita essa suposição, preciso declarar este pessimismo, que é meu, mas não é só meu: essas aparições de politicidade enfraquecem a cena, diminuem outras aparições atribuindo a elas um fim produtivo (ainda que um fim bem-intencionado), conjuram forças, alimentam cumplicidades e amenizam perturbações.
O porco precisa fazer oinc-oinc? A imagem do porco precisa servir de metáfora ao fascista? Atribuir uma metáfora ou uma forma ao fascista nos faz ironizar sua inteligência ao passo que, no mundo real e virtual, o fascista se reinventa todos os dias? Talvez já devamos falar os fascistas, não só pela população, mas pela variedade formal de suas aparições – fascismo molecular, fascismos outros. E ainda perguntarei, a nós, pessoas que criam, pesquisam e assistem essas criações: trata-se de sentirmos conforto por não sermos porcos e de brincar com isso na certeza de nunca nos confundirmos com eles?
Sagazan me foi uma referência quando me via soterrado num teatro discursivo e dependente de sua eterna natureza-obsessão revolucionária e diferenciadora do malvado. Hoje, ao menos agora, penso que é necessário pensarmos e trabalharmos também naquilo que se apresenta além da discursividade, pois não é só sobre forma, não é só sobre complexificar o modo de dizer uma coisa, mas talvez precisamente sobre esse interesse em dizer e sobre crer em ter o que dizer.
Se eu puder buscar um saldo, com Sagazan e com tudo isso, desejaria destacar a importância de uma manifestação de Sagazan sem o arredondamento da monstruosidade, sem atribuir a esta monstruosidade um determinado campo, sem fazer da insolitez subserviente a uma elaboração política ou filosófica (ainda que muito simples, figurativa). Acredito na plasticidade, no encontro com essa plasticidade, e acredito mais ainda nos efeitos desse encontro. E só. E já é muita coisa. Nesta altura, Heloísa Sousa me diz: “você acredita na abstração”.
Fato é que tudo isso, por vezes, me parece rascunhar um retorno ao político, mas não do ponto de vista dos revolucionários (que revolução?), dos progressistas (que progresso?) ou dos instrutores de uma vida mais bacana, mas exatamente em relação íntima ao que é aniquilador e produtor de aniquilação, que, na bibliografia que me identifico, chamaremos de gregário, totalizante, totalizado. Ainda que haja linhas de fuga, não será tarefa do artista cultivá-las e ostentá-las, nem do espectador avaliar a transparência dessas linhas e por meio delas aproveitar o que está diante de seus olhos. Neste sentido, preciso dizer que prefiro um teatro político forte a uma apresentação rica de forma (beneficiando-se simultaneamente do erudito e do anti-arte) mas que se arredonda por uma politicidade que gosta de ser convocada de modo criativo. Talvez devamos fazê-lo.
“Encontrar” linhas de fuga nos trumpistas talvez já seja fácil – muitos deles são sissy no Reddit... difícil, na verdade, talvez seja se aproximar das frequências deles (digo frequência, vibração, e amplio este espectro para os bolsonaristas, mileistas e os paramilitares, incels, supremacistas e outros fascismos moleculares), assumindo, e tendo a certeza, que isso não produzirá cumplicidades intelectuais e pequeninas recompensas em nossos espaços autorreferenciados e bem-intencionados. As micropoéticas singularizantes talvez estejam em vias de se fragmentar – e isso pode significar novos encontros. Um forte Brecht se atraindo por um desiludido Artaud e vice-versa. Um Deleuze pessimista que enxerga uma outra amizade com um inabalável Marcuse. Colocar em relatividade para não recair no relativismo.
Esboços, esboços...
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