Por Felipe Rocha
17/02/2025
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Crítica dos curtas “Feito o Vento” e “Eu Vejo Você”.
O cinema é indústria. Enquanto arte moderna por excelência, com seu surgimento, rapidamente se constitui como um dos primeiros meios de comunicação de massa, circunscrito à lógica dos grandes mercados. Surge o star system, consolidam-se os gêneros cinematográficos, define-se a minutagem ideal para venda do espetáculo, constitui-se a hierarquia militarizada de sua produção, seus departamentos, seus gestores, sua burocracia. Nesse contexto, cristaliza-se também uma certa forma. À ficção é dada a missão de entreter. Ao documentário a missão de informar. O inventário de invenções do primeiro cinema, alguns frutos da pesquisa científica, outros legatários de outras tradições artísticas, consolidam-se no que hoje conhecemos como cinema clássico hollywoodiano. E como todo o restante da produção, emerge também a sua concentração. Europa e Estados Unidos, mas principalmente Estados Unidos, na figura de Hollywood, confunde-se com a própria noção de cinema. Temos assim um centro inconfundível, ao qual todos na margem precisam se haver, de alguma forma se referir. Na margem encontramos o cinema brasileiro.
O cinema potiguar engatinha. Não é necessário ir muito longe para dar-se conta desse fato: basta observar a minutagem. A nossa produção é, na sua esmagadora maioria, de curta-metragens - a minutagem, por excelência, de quem está iniciando. Mas iniciar não é nenhum demérito. Se por um lado a menor minutagem é reflexo das limitações de uma estrutura precária de produção, por outro lado é também a minutagem do experimento. O curta apresenta enormes vantagens: é um filme mais barato; restrito, na maioria das vezes, ao circuito não comercial (1) de festivais, mostras, cineclubes, muitos deles gratuitos. Aqui se esmaecem um pouco as exigências mercadológicas de uma experiência estética com um mínimo de previsibilidade. Menos opaca também é a linha divisória entre o profissional e o amador, sem necessariamente o fetiche dos equipamentos responsáveis por uma imagem de (suposta) maior qualidade.
É curioso, entretanto, que dada a enorme liberdade que o formato possibilita, o cinema potiguar muitas vezes relegou-se, no que diz respeito à forma, à reprodução do cinema clássico e hegemônico. Isso tanto no que diz respeito à produção ficcional como documental. Na ficção opta-se pela construção do espaço diegético através da mise-en-scene junto à adoção de estruturas narrativas clássicas, muitas vezes legatárias do melodrama. No documentário destaca-se a ausência do recurso da narração, optando pelo uso das cabeças falantes e das imagens de apoio. Filma-se o personagem num ângulo de 45º em relação à câmera enquanto ele narra suas experiências, animado pelas perguntas de um entrevistador que compõe ou não a cena enquanto voz off. Filma-se assim as cabeças e seu complemento, propriamente nomeado de imagens de apoio. O apoio, então, é utilizado como ilustração daquilo que é falado.
Outro marco desse cinema potiguar que emerge no cenário pós-retomada (2) é a contestação da ausência (ou representação estereotipada) de pessoas negras, mulheres, pessoas com deficiência e pessoas LGBTQIAPN+ no cinema. Isso tanto no que concerne ao conteúdo dos filmes como no seu contexto produtivo. Questiona-se, simultaneamente, quem assume o protagonismo nas telas e por trás das câmeras. Isso, é claro, não diverge das inquietações políticas do cinema no Brasil ou mesmo no cinema hegemônico estadunidense. Se questiona-se o contexto produtivo e o conteúdo das obras, não segue-se que suas formas também devam ser mudadas? O que me parece verdadeiro é que essa pretensa abertura à diversidade se vê circunscrita à marcos bem definidos. Não questiona-se o star system, apenas se luta pelo protagonismo de outras estrelas. Não questiona-se as hierarquias da produção, mas sim quem ocupa as chefias de departamento. Podemos tratar de todas as subjetividades ignoradas ou pisoteadas pela história, desde que estas obedeçam a formas bem definidas, desde que não se quebre a regra dos 180º graus, a diegese da cena ou a dramaturgia clássica. Desde que estejam diluídas nas formas já dadas.
Se o cinema brasileiro já se vê nas margens do cinema mundial, o cinema potiguar se vê na margem da margem: sem recurso, ele luta por visibilidade. Não dispomos das mesmas ferramentas. Nosso conteúdo é outro. Mas ainda assim, ambos reaparecem sob essas formas que já encontramos prontas, aceitando a forma do cinema hegemônico como a forma universal, cabível para todo e qualquer conteúdo, indiferente às ferramentas que detemos. Recorrendo à imagem da criança que engatinha, podemos dizer que ela engatinha para alguém. Seria nosso engatinhar, portanto, o de uma criança que visa provar, para aqueles que consideram “adultos”, que é capaz de andar tão bem quanto? O cinema potiguar não questiona a forma? Se relega à reprodução das formas cinematográficas centrais? Estaria entregue à uma eterna dissimulação, na busca virtual do grande cinema?
Enquadro o problema dessa forma na medida em que explicito o desejo de escrever esse texto sobre dois curtas potiguares que pude assistir no ano passado. Os dois curtas foram exibidos no Festival Cinema Negro, realizado entre os dias 27 e 30 de novembro de 2024 ,na Casa da Ribeira. O Festival apresenta a proposta curatorial (3) de trazer a representatividade negra: tanto no conteúdo da obra audiovisual, como no contexto produtivo, isto é, na equipe realizadora. Diferente de grande parte dos festivais, a mostra não separou filmes potiguares dos nacionais, tampouco curtas de longas, bem como não pretendeu realizar uma mostra competitiva. Os dois filmes em questão tratam-se de “Feito o Vento” (2023, dir.: Julhin de Tia Lica) e “Eu Vejo Você” (2023, dir.: Karolina Trindade) - dois filmes radicalmente diferentes mas que apresentam diversos pontos de convergência (dentre eles, a dança). Exibidos na sexta-feira, dia 29 de novembro, talvez as reflexões aqui presentes tenham se dado pela feliz escolha curatorial de exibi-los em sequência. Retomando a questão acerca da forma, ambos me pareceram oferecer, senão respostas, ao menos pistas para o impasse que descrevemos acima.
“Feito o Vento”
O curta, que compôs o 2º LabRN promovido pelo Curta Caicó, propõe-se a ser um documentário sobre o mestre Antônio Canuto da irmandade de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário no Seridó. Seria possível inscrever o filme numa certa tradição de outros curtas se consideramos seu objeto ou conteúdo: como exemplos recentes, podemos citar “Bati da Vila” (2024, dir.: Raquel Cardozo), “Diga ao Povo Que Avance” (2023, dir.: Evelyn Freitas) ou “Diálogos Indígenas de Nosso Tempo” (2023. dir.: Gustavo Guedes), entre tantos outros. Filmes que propõem-se a narrar a resistência do povo negro e indígena no RN. Se, por um lado, “Feito o Vento” possui um tema ou conteúdo semelhante aos filmes citados, por outro, sua forma, diferente deles, parece fugir das convenções documentais supracitadas.
O filme começa com uma cena stricto sensu: a câmera acompanha o mestre Antônio Canuto adentrando uma igreja enquanto realiza a dança tradicional. A música acompanha a cena, mas também vozes que expressam diferentes opiniões sobre aquilo que vemos: uma delas vê com maus olhos a presença daquela dança numa igreja. A cena, então, é interrompida por imagens de arquivo que nos mostram aquelas mesmas práticas num tempo remoto. Não somos informados do seu contexto - ano, data, local, nada disso. Sabemos se tratar de outro tempo pela cor e textura da imagem. As vozes se multiplicam, agora evidentemente de membros daquela mesma comunidade: narram a experiência com a dança, seu sentido, as dificuldades da passagem de uma geração para a outra. “A dança não se explica”, diz um dos narradores. Finalmente, retornamos à cena inicial que é entrecortada agora com as imagens de uma criança que realiza a mesma dança. Finalmente, mestre e criança encontram–se cara a cara, dançando juntos.
Diferente do que a prática documental geralmente pressupõe, “Feito o Vento” parece ser fiel à máxima “a dança não se explica”. Ele jamais toma como prerrogativa a missão de informar: e é aí que reside uma de suas maiores potências. Longe de educar, de edificar, o filme simplesmente nos mostra aquela prática em dois momentos: no mestre/criança que adentra a igreja e nas imagens de arquivo. As vozes constroem o sentido da resistência: ainda que reclamem de sua presença na igreja, o mestre/criança segue seu percurso. As vozes nunca são identificadas: não existe a cabeça falante que as identifique, muito menos um letreiro que informe a quem a voz pertence. Elas se misturam num único, múltiplo e diverso discurso sobre a irmandade. E isso tudo acompanhado de imagens filmadas em dois tempos históricos, uma flagrantemente encenada, outra com o olhar distante, antropológico, etnográfico, de um observador. Se, por um lado, as imagens antropológicas revelam sua distinção por sua textura e cor, as vozes presentificam esse passado, de modo que mesmo essa diferença de tempo histórico parece se diluir.
“Feito o Vento”, portanto, não apenas adota uma forma, mas faz com que seu conteúdo penetre na forma, de modo que vêem-se imbricados. Ao não corporificar as vozes em figuras individuais e ao mesclar dois tempos históricos, o filme suscita o sentido ancestral e coletivo daquelas práticas, daqueles corpos. Ao tornar invisível os corpos daquelas vozes, torna visível algo mais abstrato: o sentido de uma coletividade que se perpetua. A ancestralidade se encontra posta na própria forma do filme. Tentar explicar a dança seria traí-la, e justamente por isso o curta nunca o faz.
Screenshot do filme "Feito o Vento".
“Eu vejo você”
Exibido logo em seguida, “Eu vejo você” é uma produção natalense, realizada como trabalho de conclusão de curso de Audiovisual da UFRN (4). Ficcional, o curta narra a história de um dançarino que perde a visão e, com o incentivo de sua companheira, retoma a prática. O título alude ao ponto principal do drama - a de que a companheira do protagonista é capaz de vê-lo no sentido transcendental do termo. Dito isso, o que me interessa aqui é menos o drama do casal e mais como o filme trabalha a perda de visão de seu protagonista, Nicolas.
A primeira cena segue completamente os ditames da decupagem clássica. Nicolas atravessa a Avenida Salgado Filho, próximo ao Midway Mall. Com o uso da oposição objetiva e subjetiva, o filme ressalta a centralidade do seu uso da visão para se orientar: ele olha para o sinal e atravessa a rua. O som da rua, para ele, pouco importa - tanto que está com fones de ouvido. Numa das subjetivas, entretanto, a imagem é desfocada até apagar-se por completo. E essa oposição permanece no percurso do filme, com a diferença agora que as subjetivas são telas pretas. Essa tela, entretanto, não deixa de ser acompanhada de sons. Como seu protagonista, temos agora de nos orientar por uma outra lógica do corpo. A tela preta, tradicionalmente usada como recurso de transição entre cenas ou indício da finalização do filme, adquire um efeito estético particular aqui. Somos levados a inferir as ações do protagonista com o recurso exclusivo do som. As objetivas entrecortam as telas pretas, muitas vezes com cenas de plano único, de modo que o filme parece assumir menos o encadeamento sequencial clássico e suscita mais a experiência da memória ou do sonho - ainda que seja essencialmente uma narrativa clássica. Essa oposição me remeteu, sem dúvida, à distinção que Deleuze estabelece entre a imagem-ação e imagem-tempo, oposição que parece ser fundante mesmo do filme. Em oposição à imagem-ação, restrita a uma certa racionalidade que restringe o tempo à dimensão espacial, emerge a imagem-tempo, como cristais ou lençois de passado, imagens que suscitam muitos tempos. Com o desenrolar do drama, Nicolas tem então três reencontros com a dança: o primeiro, sozinho numa praia; o segundo, junto a outra dançarina cega; o terceiro (e último), num palco. A justaposição objetiva-subjetiva é então levada ao extremo nessa terceira cena apoteótica: as imagens objetivas da dança de Nicolas num palco, no clímax do drama, são entrecortadas por suas subjetivas, de modo que o gesto de seu corpo visível é interrompido pelo invisível. Cada cena se instaura, assim, como a atualização da memória desse corpo, onde a dança emerge como algo não mais restrito ao visível. A organização das cenas de fato obedece à lógica sequencial do drama, onde Nicolas supera a falta de confiança em si mesmo com a ajuda de sua companheira. No entanto, o procedimento formal de cortar o visível pelo invisível faz aparecer uma dimensão corpórea, física, tátil do dançante como uma dimensão que nos é inacessível, inexprimível. De fato, a dança não se explica.
Screenshot do filme "Eu vejo você".
Sou levado, dessa forma, à questão que me pus inicialmente: o cinema potiguar não questiona a forma? A experiência de relacionar esses dois curtas aponta para um caminho contrário. Vemos aqui duas obras em que sua proposta formal vê-se completamente imbricada no seu conteúdo, de modo que torna-se difícil distingui-los. A ancestralidade e a coletividade de uma prática do povo negro seridoense penetra na forma do filme em “Feito o Vento”. Similarmente, a dimensão tátil inexprimível é traduzida através de um procedimento formal que se deixa constituir pela experiência de um corpo que não vê.
No entanto, seria arriscado afirmar que a intuição que descrevia nos primeiros parágrafos estava mal informada. Se esses dois filmes saltam aos olhos como exemplos divergentes, é justamente por isso, porque divergem. O curta-metragem é a metragem de quem inicia. Se tomamos o caminho dado, nos tornamos os “iniciantes” - os falantes precários de uma linguagem. Na contratendência, divergente, nos propomos a iniciar algo de novo. Algo que deixa-se constituir a partir do contato com o que filmamos e com as ferramentas que detemos para filmar. O engano talvez esteja em supor que do engatinhar se siga o andar, de que há um caminho unívoco para o cinema. Longe de uma idealização ou romantização de nossas condições precárias, é inelutável a consciência de que o centro exige uma margem. Sendo assim, existe um teto para reivindicações que tomem o centro como norte. Resta saber, agora, o que queremos: tornar-se visível para esse centro ou tornar visível o que esse centro invisibiliza?
Notas de Rodapé:
(1) Seria inocente caracterizar esse circuito como “não comercial”. Adotamos essa distinção principalmente como recurso retórico, mas a separação entre um circuito comercial e não-comercial parece atender, inclusive, às exigências do próprio mercado.
(2) Refiro-me, aqui, à chamada “retomada” do cinema brasileiro, que coincide com a criação da Ancine, o retorno do investimento estatal e uma ebulição de filmes brasileiros após um período de produção praticamente nulo com o fim da Embrafilme.
(3) A própria curadoria segue o mesmo princípio, sendo composta por Rosy Nascimento, André Santos, Stéphanie Moreira e Anthony Rodrigues. A idealização do festival é de Alessandra Augusta.
(4) Estudei, inclusive, com muitos dos membros da equipe no mesmo curso.
FICHA TÉCNICA de “FEITO O VENTO”:
Direção e Roteiro: Julin de Tia Lica
Direção de Fotografia: Alex Macedo
Técnico de Som: Danúbio Silva
Assistente de Direção e Produtor: Ed Junior
Diretor de Produção: Raldon Licen
Assistente de Set Still / Making Of: Acácio Medeiros e Raildon Lucena
Montagem: Julhin de Tia Lica
Desenho de Som e Colorização: Julhin de Tia Lica
Atores: Motor José de Arimateia (criança), Antonio de Sotinha (caixa), Zé Lúcio (zabumba).
Voz Off: Gabriel Santos, Dodoca, Ze de Bill, Antonio de Duca, Ana Raquel, Paulo Sérgio, Tia Lica, Chaguinha, Sebastião Arnóbio.
Agradecimentos: Paróquia de Nossa Senhora da Conceição Irmandade de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário - Dona Mocinha.
Cartaz: Anny Isabely
Distribuição: Agência Referência 6ª Curta Caicó
Diretor Geral: Raildon Lucena
Produtor Executivo: Diego Vale
Diretor de Produção: Arlindo Bezerra
Coordenador do II Lab RN: Torquato Joel
Consultoria de Roteiro: Manoel Batista
FICHA TÉCNICA de “EU VEJO VOCÊ”:
Direção e Roteiro: Karolina Trindade
Edição e Montagem: Ananda Soares
Direção de Fotografia: Mariana Vieira
Som: Breno Vieira
Operação de câmera: Samuel Cruz
Coreógrafo: Gleydson Dantas
Iluminação: José Félix
Preparação de Elenco: Flávio Denner e Thalita Simplício.
Consultoria de Roteiro: Thalita Simplício
Elenco: Flávio Denner, Anne Carolline, Vitor Silva, Thalita Simplício.