Por Silvia Passos
03/02/2025
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
José Zapiski é uma invenção lírica que nasce na cidade de Natal. Uma figura que ganha corpo e autoria através da produção dos seus próprios livretos. Linguagem, zine estendido em três volumes, capitulam a voz desconhecida desse personagem. É o codinome literário de Raul Pacheco, autor dos zines Bandiera Rossa (2018), Água (2018), Aberturas Imprevistas (2020), Batismos (2021), entre outras autopublicações.
Assim como Zapiski, o aparecimento de Linguagem em 2017, passou praticamente despercebido pelo fulgor juvenil dos apoiadores da cena local. Talvez fosse pela escolha do pseudônimo, os três volumes do Linguagem, apresentam um anonimato que não se acaba na identidade do escritor, abrange também o estilo da publicação, algo que se distanciou das produções de zines e plaquetes distribuídas naquele mesmo período em que a artesania das oficinas de criação poética explodiram consideravelmente no círculos literários de Natal.
Apenas em 2018, na TriplaExposição, evento ocorrido no Mahalila, que tive a oportunidade de conhecer a obra e a pessoa por trás do pseudônimo. Foi espantoso se deparar com o que parecia ser um bloco de anotações amarelo vibrante, contendo o título em caixa alta, fonte times new roman, em negrito e sublinhado.
Ainda na capa, um rabisco de Toth, deus egípicio, num caótico garabulho de outros símbolos mitológicos. Esse era o volume 1, e sua aparência desenterrou minha criança buliçosa, induzida por lembranças de papelaria, de xerox e de quando tivemos nosso primeiro contato com o Google para fazer trabalhos escolares. Abri o livreto, a folha de rosto em papel vegetal, a caligrafia hebraica, as primeiras epígrafes, tudo me soava desconhecido e subitamente familiar, era o suficiente para querer levar um exemplar para casa.
Foto-montagem de Silvia Passos, 2025.
Mesmo com sua característica artesanal, não pertencia a qualquer editora independente conhecida da cidade, nem era o tipo de texto para se vocalizar em um desses saraus embalados pela música Sérgio Sampaniana de colocar “a poesia na calçada”. Na realidade, os impressos eram lançados pelo selo da Usina Ninja de Zines, criado pelo próprio autor e associado a um coletivo formado por artistas de outras linguagens gráficas. A ideia do fanzine se aproximava da cultura underground, mas, ao mesmo tempo, parecia fugir até da própria construção da literatura underground potiguar que estava sendo produzida na época. Penso que isso pode ser uma brecha para debater como se fundou o experimentalismo na literatura potiguar, se é que assim podemos chamá-la.
Quando perguntei a Raul sobre as suas referências, ele me fala de autores gaúchos, como Érico Veríssimo, fala também de Borges, Saramago e Guimarães Rosa. Outras influências vão aparecendo durante a leitura do zine, são explicitamente citadas: fotografias, colagens, citações, teatro e muita música. Suas referências locais são as mais cotidianas, são as amizades, as longas conversas sobre literatura, as críticas, as trocas de opiniões. Assim, Zapiski, escondido na sua penumbra e com distribuição de curto alcance, mira na formação de um personagem-autor, e acerta, sem pretensão, na possibilidade de romper com a soberania do eu na criação literária.
O volume 1, se organiza em três contos que caminham entre o sonho e o mito, o natural e o misterioso. A fusão desses elementos me lembraram as Fábulas de Esopo, o tipo de leitura que te envolve em alguma meditação, mesmo que com ambivalências. Diria que esse primeiro volume é uma iniciação ao sonho, algo que ainda está preparando o terreno para a completa falta de sentido.
A composição miscelânica sem gênero definido no volume 2, já indica a saída de um formato reflexivo para uma indefinição. É nesse percurso que começamos a acessar a falta de compromisso com o significado, com a gramática e com a cronologia das coisas. Um novo dialeto surge no meio da bagunça.
No volume 3, é possível observar a influência do teatro, cada texto contendo três personagens e uma conversa entre eles, de forma que os diálogos se assemelham a um roteiro. Mesmo assim, é disforme, a sequência de vozes são ainda mais desgambeladas. Nessa altura do campeonato, você pensa que ele não está ligando para mais nada e que está escrevendo o que dá na telha. O visual passa a sensação de que os diálogos foram vomitados no Word e enviados direto para impressão, na primeira versão, sem parágrafos justificados e sem revisão. Os discursos despretensiosos se materializam na diagramação destrambelhada das sessões. Há uma nota de rodapé que diz: “Este artigo não cita fontes confiáveis e precisa ser revisado”. Penso que essas escolhas parecem caçoar da expressão “do it yourself”. A questão não é só fazer o próprio livro, mas enaltecer a ideia de rascunho.
O que acontece do volume 1 até o volume 3 é um descolamento da razão. E, pensando bem, talvez seja assim o movimento que antecede a própria aquisição da linguagem, o rabisco daquilo que ainda não se sabe o que vai se formar. É o “fazer sem saber fazer e aprender a fazer fazendo” que Arnaldo Antunes dizia. Ou ainda, como numa fase comunicativa muito específica da infância, que se fala o que se pensa despreocupadamente, sem contexto, sem conexão.
Apesar do tom subversivo que isso pode conotar, em nada se parece com os primeiros fanzines anarquistas fabricados durante o movimento punk dos anos 80. Mesmo assim, ainda tem um espírito de adolescente revoltado que abriga nos hormônios a batalha das forças entre criação e destruição. Tudo aponta para uma anti-norma, um anti-glamour.
A caminhada da escrita é aspirante, tem um quê de primeiros experimentos. O que será do próximo volume? O que será do autor daqui há cinco anos? Quem o lê, pode ser visitado por esse tipo de curiosidade porque é a leitura de uma semente. Ao mesmo tempo, a permanência nas páginas me provaram que não se trata simplesmente de um narrador principiante sublimando experiências pessoais. É claramente o texto de um leitor. Ele está perdido nos recortes de suas leituras, mas faz uso da desorientação para montar um mosaico de referências, tentando criar uma nova linguagem, aquilo que resultaria no encontro da sua voz. É uma obra em busca da sua própria obra.
Isso coincide com uma preocupação artística que compartilhamos quase sempre: Como forjar nosso próprio estilo? Esse exercício parece ser um dos maiores anseios na projeção de um artista. As pistas que a obra oferece apontam para a tentativa de recomeçar uma nova forma de dizer, manuseando o experimento maluco, operando mutações naquilo que já foi dito. Talvez a resposta também esteja em ter coragem de personificar, vomitar, ruminar, encadernar, distribuir, assumir o risco, até que proteger o próprio nome não seja mais necessário.
Encontre o zine "Linguagem" e outros neste link e neste.