[Preto, vermelho e cor de madeira]

Por Heloísa Sousa
10/02/2017

Pela terceira vez assisto a um espetáculo dirigido pelo encenador Márcio Aurélio (SP). A primeira vez foi com “Agreste” apresentado no Teatro Alberto Maranhão, quando ainda existia o Festival Agosto de Teatro; a segunda vez foi com “Hamlet” onde o diretor citado estabelece uma parceria de criação com o grupo natalense Clowns de Shakespeare (RN) e agora, tive a oportunidade de vivenciar “OE” com o ator Eduardo Okamoto, e devo dizer que há uma proximidade estética nessas três obras, apesar das diferentes temáticas e abordagens.

A obra literária do escritor japonês Oe Kenzaburo serve de inspiração para a criação de uma dramaturgia inédita elaborada por Cássio Pires e que impulsiona a criação do ator Eduardo Okamoto junto com o diretor Márcio Aurélio. Kenzaburo faz parte de um grupo de escritores japoneses da contemporaneidade que desenvolve suas criações literárias entre a realidade e a ficção das produções autobiográficas. Em 1963, nasce seu filho mais velho Hikari com uma doença mental que irá transformar a vida de toda a família e mobilizar profundas reflexões em Kenzaburo transportadas para seus livros publicados. É esta relação entre pai e filho que provoca e conduz todo o espetáculo “OE”. Mais do que isso, esta relação entre pai e filho provoca e conduz os artistas envolvidos neste projeto junto com os espectadores que partilham desta experiência cênica.

Devo dizer que não sabia se iria escrever um texto sobre “OE” ao final do espetáculo, simplesmente porque eu não tinha muito a dizer sobre aquela experiência. Mas então, Okamoto convida o público a permanecer no Barracão dos Clowns (RN) para uma breve conversa sobre o processo de criação. Depois disso, eu queria escrever, eu precisava escrever.

Naquele momento, Okamoto nos falou sobre a disciplina em seu trabalho como ator, sobre suas origens japonesas e sobre sua experiência com a dança butô através de um estágio no Kazuo Ohno Dance Studio (Japão). Falou sobre um filho que descobre as origens de seu pai, numa busca por aprender com o filho de outro alguém importante, para tratar sobre a história de um pai e um filho, e que nessa trajetória se torna pai do pequeno Caetano. Quantos pais e filhos cabem em uma existência repleta de ciclos e momentos, aparentemente, repetitivos? Lembro-me de uma frase antiga do filósofo grego Heráclito:

“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto de mudança, ou seja, do combate entre os contrários”.

O espetáculo “OE” traz em suas entrelinhas a possibilidade de transformação e descobertas do próprio artista em um processo de criação. Segundo o ator, esta obra precisou de cerca de três anos de maturação, pesquisa e desenvolvimento; tempo que se torna perceptível através das técnicas corporais e vocais adotadas por Okamoto para personificar um pai, uma mãe, um filho e um narrador. São anos de estudos e treinamentos, combinados com uma necessidade, também declarada pelo ator, de repetir todo o texto do espetáculo diariamente a fim de tornar possível a encenação. Repetição. Transformação. Mesmo tendo que ler, ensaiar, apresentar, memorizar, falar, fazer repetidas e repetidas vezes; não é mais o mesmo Okamoto, não é mais o mesmo “OE”, não é mais o mesmo rio. A cada segundo tudo muda.

Foi esta reflexão que mais me moveu na experiência de ver o espetáculo. Perceber a mim mesma enquanto artista e o quanto a cena, o processo de criação e o compartilhamento diz sobre as repetições que nos transformam. A descoberta a partir da insistência e do risco. A arte como uma filosofia de vida. O que me move a continuar e fazer (de novo)?

Com poucos objetos cênicos dispostos no espaço, um terno completamente preto e uma iluminação simples e precisa, “OE” se apresenta como uma encenação minimalista – estética perceptível nos demais trabalhos de Márcio Aurélio que citei acima. Apenas o ator com sua fala e movimentação busca construir um imaginário no público a partir das narrativas e imagens descritas. Penso que a minha geração – dos nascidos na década de 1990 – tem uma relação com o imaginário diferente das gerações anteriores. Somos bombardeados por tantas referências visuais e sonoras que me pergunto se não perdemos um pouco da nossa capacidade de imaginar a partir da narração. Fiquei inquieta.

Além disso, a encenação nos traz uma fisicalidade e sonoridade “oriental” que estranhamos. Há uma forma de falar e de agir, pertinente ao povo do oriente que se distancia de nossas formas de expressão, e quando as encontramos aquilo nos estranha de tal modo que a própria forma torna-se um conteúdo em si de reflexão. Esta abordagem merece um destaque pela maneira como os artistas conseguiram transpor um espaço “simbólico” oriental para o corpo do ator, nos permitindo contextualizar o que víamos.

Apesar de buscar não dramatizar a obra de Kenzaburo nas cenas criadas, os artistas ainda utilizam o texto como matriz geradora da encenação e constroem uma narrativa que é exposta pelo ator em mais de uma hora de espetáculo, sintetizada em vinte e oito imagens que expressam a relação de conflito entre um pai e um filho doente. Para mim, “OE” foi uma experiência cênica diferente por ter me despertado em outros pontos, para além do espetáculo em si. A obra me incitou curiosidade pela literatura oriental e pela escrita do Kenzaburo; mas, talvez o que mais tenha me tocado seja ter visto a fé e a sinceridade de Okamoto em cena. Acho que eu acredito no que ele acredita.

Ficha Técnica

Encenação e Iluminação: Márcio Aurélio. Dramaturgia: Cássio Pires. Atuação: Eduardo Okamoto. Assist. de Direção: Lígia Pereira. Assist. de Iluminação: Silviane Ticher. Orientação Corporal: Ciça Ohno. Figurino e Cenografia: Márcio Aurélio. Assist. de Figurino e Cenografia: Maurício Schneider. Fotografia: Fernando Stankuns. Vídeo: Jorge Bruno. Design Gráfico: Estúdio Claraboia. Orientação Pedagógica do Projeto: Suzi Sperber. Coordenação Técnica: Silvio Fávaro. Assist. de Produção: Mariella Siqueira. Direção de Produção: Daniele Sampaio, Sim!Cultura.

Projeto Contemplado com o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz / 2015.

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