DIÁRIO-CRÍTICO, Mostra de Processos, dia 01.

Por Heloísa Sousa
26/09/2023

 

São Paulo, 16 de setembro de 2023.

 

O que vimos?  (nota de rodapé 1)

O segundo dia de apresentações na programação do projeto Mulheres em Cena (nota de rodapé 2) foi marcado pelo período da Mostra de Processos

Sugiro à leitora ou leitor que realmente leia as notas de rodapé marcadas acima para efeito de contextualização da ação e da escrita abaixo.

A Mostra de Processos, em alguma medida, é uma extensão da Terça Aberta no Kasulo, embora não sejam correspondentes. Outro evento também idealizado e produzido por Vanessa Macedo e pela Cia. Fragmento de Dança, que realiza a curadoria e mediação em parceria com a artista-pesquisadora Janaína Leite, onde obras em processo são compartilhadas com o público antes de suas estreias oficiais, com o intuito de gerar diálogos e espaços de experimentações de obras “inacabadas” e/ou “em processo de pesquisa”. O Terça Aberta, segundo informações do próprio site da Cia. já teve 45 edições e já recebeu 114 obras em processo desde 2016 na cidade de São Paulo. 

Nesta Mostra de Processos, assumem a curadoria Vanessa Macedo, Gabriela Ramos e Maitê Molnar. A criação de um espaço como esse já denota o interesse de suas articuladoras em promover espaços de debates sobre a cena a partir do processo criativo e nos faz pensar juntas sobre o rascunho, a aposta, a experimentação e o lugar do compartilhamento nas fases laboratoriais de criação.   

Três obras (em processo) foram partilhadas nesta noite.

Primeiro assistimos “Para aquelas que não mais estão: poéticas da violência” do Coletivo Rubro Obsceno (Curitiba/São Paulo). Duas artistas em cena nos partilham através de vídeos, textos e objetos, relatos e denúncias de mulheres assassinadas por feminicídio. A obra traz um recorte entre os assassinatos ocorridos durante os isolamentos sociais ocasionados pela pandemia do COVID-19, onde os casos aumentaram vertiginosamente. A obra expõe as vozes/memórias dessas mulheres e ao lidar com essas evocações, seja pela palavra, pelo som, pela imagem ou pelo objeto, parece recuperar algum tipo de experiência de luto.

Em seguida, assistimos “Maria Samambaia faz 50 anos ou vira cantora” de Gladis das Santas (Curitiba). Em cena, Gladis performa a Maria Samambaia, uma persona performática que nos lembra tanto o universo clownesco quanto o universo das drag queens, muito mais pela lida com dimensões do humor a partir de uma reconfiguração material de si mesmo do que, por alguma semelhança entre as estratégias de caracterização. A figura acompanha a performadora em uma pesquisa e experimentação que vem se estendendo por alguns anos e parece performar algo entre o fracasso, as incompletudes, as tentativas de equilíbrio, as sobreposições dos modos. Maria-Samambaia não age de modo convencional, não carrega certeza e nem sustenta suas próprias proposições, mas é na insistência do vacilo que ela permanece até algum fim.

E por último, assistimos “Travessias em Mim” de Débora Campos (Rio de Janeiro), uma artista e filósofa que se propõe criar aquilo que ela nomeia como uma tese movente. Débora, na contramão das duas artistas anteriores, dança no silêncio da voz enunciadora de palavras concatenadas, para dançar outras sonoridades e tornar matéria movimentos que rapidamente nos remetem a uma carga histórica da corpa que dança.

No fim, partilhadas as três obras (em processo), com diferentes tempos e em diferentes estágios, uma roda é convidada a se instaurar para que possamos dialogar sobre o que foi visto. Mas, ao invés da convencional partilha de impressões, Vanessa, mediando a roda, convida as próprias artistas a nos oferecer perguntas que as inquietam a partir das suas próprias obras. Uma possibilidade efetiva de partilhar - partilha das dúvidas.

 

O que podemos nos perguntar juntas?

Penso que há um primeiro desafio que é o de perceber diferentes fragmentos em um fragmento de tempo. Durante cerca de três horas, pessoas se mantêm juntas em um espaço, por vontade própria, observando fragmentos com corpo-espaço-temporalidades distintas, que não tinha absolutamente nenhuma relação até aquele fatídico dia, que foram dispostas naquele espaço a partir de algum gesto curatorial (material-discursivo-afetivo), um-seguido-do-outro. Devemos relacioná-los? Devemos observá-los separadamente? Conseguimos nos fragmentar ao falar sobre os fragmentos? Melhor seria então perceber o que há em comum? O comum nos oferece um diagnóstico de algum contexto? Mas, se observarmos esse contexto, haverá alguma particularidade muito-importante que escapará da nossa percepção? O diálogo é entre o público e as artistas? Ou entre o público e cada artista? Ou entre cada artista e cada público? Ou entre as artistas? Ou se for tudo-ao-mesmo-tempo-agora, como manejamos essas co-presenças?

Algo fica, algo se perde. Constatação óbvia e inevitável.

O próprio evento já apresenta alguns recortes, estamos no ano de 2023, século XXI, na sede de um grupo de dança independente numa das maiores capitais do Brasil e diante de artistas mulheres - o que também determina, consequentemente, o recorte de público se observarmos que a maioria das presentes na plateia seriam declaradas nesse gênero. 

Entre o protagonismo de mulheres e a coletividade de mulheres. Há um percurso importante a ser analisado e que parece se materializar nas obras em questão, ou quando lidamos com mulheres artistas criando suas próprias obras. Se durante séculos de criação cênica, a figura do homem cisheterobranco foi central como criador e criatura em narrativas, signos, teorias, práticas e pontos de vista; passamos a notar corpas e discursas de mulheres abrindo fissuras e ocupando essas centralidades junto com uma guinada estética que parece retomar as discussões sobre as subjetividades, as narrativas de si, a enunciação em primeira pessoa. Ora, se a lógica da universalidade, da autorização, do centramento e do protagonismo nos retira da condição de sujeitos e nos enclausura como objetos de serventia e exploração, nos retirando o acesso a determinado campos de debate, saber e prática; retomar a si como um outro centro possível e falar/criar a partir da experiência de marginalidade que nos foi imposta, se apresenta como uma estratégia de criação pertinente. A enunciação a partir de si, mesmo que a partir do estigma da outra, é uma tecnologia ou uma metodologia pertinente (embora não carregue - nem precise carregar - “originalidade”) que não apenas desloca a percepção sobre o centro, como desorganiza algumas hierarquias e nos permite perceber como as corpas encontraram outros meios de sobrevivência a partir da margem. Talvez, por essa razão, seja tão recorrente que artistas mulheres criem frequentemente a partir de seu gênero, a partir do jogo ou vacilo da linguagem binária, a partir da lida com a violência cruzada com suas narrativas. 

Se a relação com o mundo, historicamente, nos foi cerceada, assim como o acesso à produção sistematizada de conhecimentos, o que nos resta, então, são os saberes da experiência da margem, dos espaços interiores, dos diálogos consigo e alguns pares. A partir disso, organizamos outras epistemologias, metodologias, projetos e críticas que, quando partilhadas com a comunidade, oferecem possibilidades outras ainda não reconhecidas. Estamos nesse processo há algumas décadas e é importante notar que algumas coisas que eram invisíveis tempos atrás, já apresentam outros contornos de aparência e visibilidade hoje. A questão da arte, nesse sentido e portanto, pode ser de como se expandir para além da autorreferencialidade (que não deixa de ter certas semelhanças com o aporte da universalização - “o mundo é assim porque é assim que eu vejo”) e como inserir a dimensão crítica e insurgente nos processos e nas experiências artísticas que se propõem explicitamente políticas, reconhecendo as condições opressoras que nos foi imposta, as produções de subjetividades, mas também as emancipações coletivas.

Ou seja, como não perder-se na afirmação e descrição de si, enquanto se almeja uma perspectiva de criação artística que considere uma comunidade de nós?

Insisto na perspectiva do como, porque há uma distância concreta entre desejar algo e materializar algo que talvez se dê na lógica do procedimento. O buraco que essa distância simboliza, é o buraco do como. E quando não compreendemos o como, tendemos a acusar o o quê - se não compreendemos o procedimento, acusamos a coisa. Dessa forma, arrisco dizer que o problema não são os assuntos, mas as formas com a qual lidamos com eles. E dizer de forma, é radicalmente dizer de arte. 

O Coletivo Rubro Obsceno tenta, então, falar sobre feminicídio através de sua obra. Uma questão que parece coletiva, partilhada entre público e artistas é sobre se ainda há espaço ou escuta para esse assunto; se ainda damos conta de continuar falando sobre uma violência que se estende por tanto tempo sem sinais de que irá retroceder. E penso que o debate instaurado nos carrega mais uma vez para o como que explico acima. Mas, não um como que seja da ordem do “buscar uma nova maneira de falar sobre a mesma coisa”, dando à arte uma função tradutora de algo. O como teria muito mais a ver com uma pesquisa sistematizada e longa sobre o que a teatralidade ou performatividade ou dançatividade pode tornar visível ou consciente ou mobilizador quando enfrentamos determinada questão.  

Falar sobre algo, frequentemente, se apresenta em cena como contornos descritivos, onde torno visível - narrativamente ou simbolicamente - esse algo. Portanto, parece se apoiar nos métodos tradicionais que atestam a realidade, apontando para suas características, o que, por vezes, reitera a aparência já percebida da coisa e não torna visível rotas de fuga. Vozes de mulheres que foram assassinadas são interpretadas na performance do Coletivo, transformando-as em um híbrido estranho entre a pessoa e a personagem que nos faz questionar sobre alguns limites éticos; principalmente no que concerne ao uso dessas singularidades para tratar daquilo que diz mais do algoz do que da vítima. Materializa-se então essas mesmas mulheres a partir de peças de roupas ditas “femininas”, uma cobertura do corpo que determina e enclausura o mesmo em códigos de gênero, que quando dispostos no chão materializam a ausência do próprio corpo - mas, se tomarmos por uma ótica de crítica ao binarismo, que corpo deveria estar vestindo aquilo mesmo? Não é justamente a roupa um marcador violento de determinação das performances de gênero e que é usado na performance como um objeto-memória?

Artistas da performance de décadas anteriores, usaram algo desse procedimento configurando-os como denúncias, formas de expôr o que era ocultado dos canais midiáticos hegemônicos ou dos diálogos cotidianos. Entretanto, o contexto que vivemos hoje parece radicalmente diferente deste, e a hiperexposição dos casos de feminicídio mostra que essa não é mais uma violência oculta, embora ainda persistente. O que, então, ainda precisa ser revelado? Estudos sobre gênero, aparelhos ideológicos, manutenção do sistema patriarcal podem nos oferecer respostas. Mas, para além disso, é necessário questionar o que a arte pode tornar visível junto com esses outros campos de conhecimento?

Como criar em cena uma crítica da violência, ao invés de uma poética da violência? Ao invés de mais uma forma de expressá-la, talvez estejamos sedentas por formas de desarticulá-la. E não penso aqui que esta seja uma “função” primordial da arte ou algo dessa ordem; convido ao pensamento dessa questão, caso o desejo com a criação artística reverbere nesse lugar de discussão.

Saímos dessa experiência sobre mulheres ausentes para a radical presença de um corpo-no-limite. Quando Gladis das Santas entra em cena com a Mulher-Samambaia em si, outra coisa se instaura. Com uma mala de viagem da cor verde, com roupas que parecem saídas do último carnaval de rua, com uma fala contínua e vacilante nos vocábulos embora certeira na comunicação, com uma movimentação frenética e produtiva e tentadora (própria daquela que tenta).

A palavra fracasso parece inevitável para dizer da performance de Gladis, não porque ela esteja tentando nos explicar seu conceito, mas porque ela tenta concretamente fazer. Fazer muita-coisa-ao-mesmo-tempo e sem conclusão. A sensação de que a Mulher-Samambaia não sabe bem para onde está indo, aponta em várias direções e muda de rota sem muita justificativa, ou que ela não sabe dançar embora paradoxalmente dance exaustivamente. Se a palavra performance também carrega em si o significado de desempenho, aqui ela parece materializar bem essa (im)possibilidade. Talvez uma das imagens que mais crava espaço na minha memória é a dessa Mulher-Samambaia, completamente nua, sentada na roda junto ao público. Ela coloca seu óculos de aros pretos grossos, abre sua dissertação de mestrado (ou tese de doutorado, não lembro ao certo) e se põe a ler alguns trechos que escreveu. A imagem pode parecer risível se associarmos ao imaginário conservador e canônico de uma acadêmica das ciências humanas; mas, se revela radicalmente coerente e explícita se pensarmos em uma mulher pensadora do corpo e seus materiais de análise e produção. E essa dialética é crucial.   

Porque se tem algo que essa cena faz é permanecer, mesmo que o arranjo se estruture caoticamente; ela atesta que é capaz de ir até o fim seja lá o que isso signifique. A Mulher-Samambaia parece se tornar também algum tipo de dispositivo que pode ser constantemente acionado para reorganizar a própria performadora e as coisas que a rodeiam. Percebendo-a verborrágica, a artista se indaga, seria possível, então, fazê-la sem a fala verbal? Mas, daí, então, o objetivo da Mulher-Samambaia seria a expansão dos limites da própria performadora? E, até então, ela não se materializou justamente por uma conquista negativa? Ou seja, é não conseguindo que ela consegue. 

A questão que Gladis traz não apenas na cena, mas também em suas interlocuções durante os debates, sobre o que sabe o corpo, que conhecimentos estão construídos e explícitos em nossos modos de mover e que são fortemente atravessados pelas particularidades dos gêneros que se designam; parece ser uma questão que reverbera em outras. Como apresentar e mover o saber no corpo?

Se, frequentemente, aprendemos a dissociar o saber do corpo e arquivá-lo em outras materialidades externas à nós, como a escrita, os registros, os objetos, os signos; o que resta ao corpo? Ou ainda, o que retorna ou o que vibra ou que profana o corpo se o entendemos também como arquivo primordial?

Essa talvez seja a inquietação que move Débora Campos ao dançar suas travessias. O corpo como arsenal de rastros - que em si carrega um passado e lacunas para um futuro. Acho interessante a palavra arsenal para aproximar de corpo, o mesmo nome usado para designar um conjunto de bombas. Ao ver Débora dançar, mesmo que conceitos, histórias ou descrições não sejam verbalmente enunciados, há muita enunciação presente quando associamos, lembramos ou reativamos o que sabemos (ou podemos saber) sobre aquele corpo e todos os outros que vieram atrás dele.

A indagação sobre o que é possível comunicar, enunciar, vincular, materializar com o corpo ou a partir do corpo, me parece manter-se viva se sustentamos a indagação a partir do como (ou talvez eu esteja apenas obcecada por essa pequena palavra). A transição entre o “é possível materializar o saber com o corpo?” para “como o corpo materializa o saber?” ou quaisquer variações dessa indagação pode apresentar um campo fértil de criação de epistemologias. Qualquer pergunta cuja resposta se restrinja entre o sim e o não parece oferecer pouco aporte criativo. Ao dançar, Débora torna visível - apresentar ou tornar aparente foram termos que apareceram nos debates também - não apenas por uma lógica de tradução sígnica, mas por pesquisar a partir do movimento quais conhecimentos e formas de resistência estão carnificadas ancestralmente ou “fabularmente”.

 

A quem desejar, poderá ler os diários críticos sobre os dois dias seguintes da Mostra de Processos aqui e aqui, onde esses debates continuam e se expandem.


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Nota de Rodapé 1. Nos textos críticos que produzirei para a Mostra de Processos do Mulheres em Cena, tentarei replicar a mesma estratégia que foi usada para dialogar sobre crítica nas artes cênicas durante o Laboratório de Escritas Críticas - Artes da Cena que ministrei juntamente com as artistas-pesquisadoras e críticas de arte Ana Cristina Teixeira (RS/SP) e Deise de Brito (BA), durante os dias 13, 14 e 15 de setembro na Oficina Oswald de Andrade, na cidade de São Paulo. Na ocasião, compartilhei três possibilidades de relação com o objeto - a definição, a descrição e a análise. O que está diante de mim? Como descrevo o que está diante de mim? O que seria, então, analisar criticamente o que está diante de mim? Que perguntas complexas posso oferecer ao que está diante de mim? Longe do objetivo de definir algum tipo de método de análise crítica, buscamos experimentar formas de observação do objeto para poder entender, juntas, o que seria o pensamento crítico que se desenvolve pela matéria da escrita.

Nota de Rodapé 2. O projeto Mulheres em Cena consiste em uma mostra de espetáculos de teatro, dança e performance, idealizada pela coreógrafa Vanessa Macedo (RN/SP) e produzida pela Cia. Fragmento da Dança que ela dirige em São Paulo (SP). Neste ano de 2023, estamos na sétima edição desse projeto que elabora sua programação com trabalhos criados e conduzidos por artistas mulheres de várias partes do país, integrando também algumas participações internacionais; tendo o apoio do Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa - PROAC n.34/2022. Essa edição está sendo realizada entre os espaços culturais da Oficina Oswald de Andrade, no bairro do Bom Retiro (SP) e no Kasulo Espaço de Arte, espaço-sede do grupo idealizador no bairro da Barra Funda (SP). A programação que se iniciou no dia 13 de setembro e segue até o dia 23 do mesmo mês, contempla uma Mostra de Processos, uma Mostra de Espetáculos, além de palestras, oficinas online e oficinas presenciais. O intuito da idealizadora é fomentar espaços de comunidade com troca de saberes, disseminação e afirmação das práticas artísticas e de pesquisas desenvolvidas por artistas mulheres; tanto que, nesta edição, com apoio da ONG FINAC, o projeto receberá artistas de algumas diferentes localidades para permanecer na cidade de São Paulo durante todo o período do evento e acompanhá-lo integralmente. Com ampla divulgação e atividades totalmente gratuitas, o projeto não se isenta da partilha com a sociedade e busca oferecer atividades artísticas e culturais acessíveis e contínuas.

 

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