Gralhas em estado de graça

Por Heloísa Sousa
17/07/2023

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

Em junho de 2023, Letícia Bassit, diretora, dramaturga e atriz do espetáculo “Mãe ou eu também não gozei” retomou a obra com duas apresentações no SESC Carmo em São Paulo (SP). A peça que estreou em 2018 foi criada a partir do livro homônimo da autora, onde uma escrita meio poética, meio prosa, meio manifesto, meio concreta, narra as sensações de um acontecimento real na vida da autora. Bassit vive a sua primeira experiência de maternidade, mas também vive radicalmente uma série de atravessamentos sócio-políticos demarcados pelas desigualdades de gênero, onde a liberdade sexual de uma mulher é sempre marcada como penitência e a liberdade de escolha dos homens é sempre imperativa no mundo. 

Nesse percurso criativo, o episódio na vida pessoal de Bassit gera um livro que gera uma peça teatral. As obras, então, atravessam algo de terapêutico se pensarmos que podem ser tidas como uma maneira de lidar com o ocorrido; mas é algo além, revela uma urgência pessoal-política de expressão.

Tenho tentado escrever e reescrever alguns parágrafos para pensar sobre o dito “teatro contemporâneo brasileiro”. Não para tentar defini-lo ou capturá-lo em algum conceito encerrado a ser reproduzido, mas para entender qual seu posicionamento na história, qual sua política preponderante, o que esse teatro contemporâneo apresenta ou aponta que outras formas teatrais anteriores ainda não haviam investigado. E, principalmente, pensar no que estamos deixando aos que virão, em termos de presenças e ausências. E se há algo que é evidentemente marcante no teatro brasileiro do século XXI é o espaço aberto pelas minorias. Minorias que quando ocupam os lugares que precisam se mostram extremamente múltiplas e variantes. Trazendo para esse texto o recorte de gênero, nunca houveram tantas encenadoras, dramaturgas e autoras mulheres no front do teatro brasileiro simultaneamente, alcançando tanto (ou mais) espaço e notoriedade quanto os antigos nomes de homens consagrados pela história do teatro nacional. Nitidamente, estamos escrevendo a história deste ponto em diante, e, dessa forma, reescrevendo cenários. Com isso, não quero dizer que não houveram outras mulheres em décadas passadas que criaram e articularam teatros, mas sim, que essas além de serem frequentemente apagadas, surgiam como pontos individuais que emergiram em um cenário violentamente desigual. 

O que vemos hoje no teatro brasileiro, tanto em termos de dramaturgia quanto em termos de encenação, não são mais trajetórias individuais que despontam algo, mas algumas constelações de artistas que parecem dizer coisas de modos semelhantes, construindo assim, uma paisagem de algo a ser observado mais atentamente. Falando assim, talvez soe que estou indicando não haver mais desigualdades ou violências no campo da arte teatral, seja em termos estéticos, simbólicos ou de mercado de trabalho. O que quero dizer é que temos uma barricada com tamanho suficiente para não ser mais ignorada.

Em 2016, a atriz, dramaturga e encenadora Grace Passô (MG) estreia “Vaga Carne”, onde um “ser” nos fala da experiência de tomar o corpo de uma mulher. Tornar-se um corpo, a experiência radical de ser uma condição, de estar enclausurada em si e no mundo, de ser casa. Não à toa uma das frases mais repetidas do movimento feminista é “o pessoal é político”, uma tentativa de desenclausuramento, de tornar visível o que está cercado para dentro. Também em 2016, a atriz e performer Laís Machado (BA) estreia “Obsessiva Dantesca” onde se embriaga por duas horas e fala continuamente sobre muitas coisas, inclusive sobre aborto. Um ano antes disso, em 2015, Lua Menezes (RN-CE), atriz e dramaturga, abria espaço na cena natalense para colocar o erotismo no centro, a partir do corpo de uma mulher. Seguimos para 2018 e a atriz, escritora e diretora Letícia Bassit (SP) estreia “Mãe ou eu também não gozei” onde a experiência da maternidade e do abandono paterno é trazido ao espaço de cena. No ano seguinte, 2019, a atriz, dramaturga e diretora Janaína Leite (SP) crava um marco na história do teatro brasileiro com a peça-documental “Stabat Mater” protagonizada junto com sua mãe, evidenciando seu interesse pelo cruzamento entre a pornografia, a santa mãe, a puta e todos esses atravessamentos reais e simbólicos que tomam o corpo da mulher como sacrifício. Voltemos para 2016 mais uma vez, para citar que a diretora Natalia Mallo e a atriz Renata Carvalho estreiam no Brasil um texto dramatúrgico da escocesa Jo Clifford, chamado “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, onde Jesus retorna entre nós, plateia, no corpo de uma travesti. Ano passado, em 2022, a atriz, dramaturga e diretora Soraia Costa (SP) estreia "Sete Cortes até Você" junto com seu filho adolescente, onde acompanhamos a sua decisão de parir e acompanhar sucessivas cirurgias de seu filho que nasce com uma fissura labial. Cheguemos então, ao ano atual, 2023, e a atriz, dramaturga e encenadora Carolina Bianchi (RS) estreia no Festival de Avignon, a peça “Cadela Força - Capítulo 01: A Noiva e o Boa Noite Cinderela” onde se questiona o que acontece com uma mulher depois de um abuso sexual, quando é retirado de seu corpo qualquer possibilidade de reação, quando se está no limite. A mulher está, quase sempre, no limite.

Esses são apenas alguns pontos que estou destacando aqui de produção em um país de dimensões continentais e que deve ter sido atravessado por mais algumas dezenas de obras semelhantes a essas. O que quero dizer é que há coisas que se repetem e não serão meras coincidências, há um movimento que ganha cada vez mais proporção e que marca uma guinada histórica. Recentemente, a jornalista Andreu Gomila publicou uma matéria no site La Vanguardia (Espanha) intitulada “Las Vanguardias de las Mujeres” onde tenta observar o mesmo movimento em encenadoras no contexto europeu. 

Existem alguns pontos que se repetem. Simultaneamente, com uma expansão no Brasil de obras cênicas com caráter documental e autobiográfico, muitas artistas mulheres trazem o próprio corpo como protagonista ou como encruzilhada, para usar os termos de Bassit. Mas não uma protagonista-objeto de uma linha dramática pensada a partir dos desejos e expectativas de um homem dramaturgo legitimado. Mas, sim como uma existência-objeto silenciada. Se essa existência explode em contexto políticos e invade, queima, grita, se despe, trepa, se rebela, aborta, cospe, engole, reivindica. Essa existência também explode em cena. E o que acontece quando ela explode? Mulheres tomam a própria vida para falar algo para além de si, pois com a liberdade circunscrita, nos resta certos “fatalismos” impostos e essa coisa que “eu vivi” deixa de ser minha para ser “coincidentemente” muitíssimo parecida com a de muitas outras. Então, o autobiográfico aqui não serve a narração de uma vida a ser vista como exemplo de qualquer coisa, nem para dar notoriedade a uma figura particular; mas sim, como uma elaboração de algum tipo de “personagem fictícia-simbólica-real” que arregaça assuntos non gratos. E tem assuntos dos quais nem todo corpo é capaz de dizer, sentir, se quer imaginar. E aqui vem o risco, também citado por Gomila na sua matéria (e talvez o risco tão citado também por Erika Fischer-Lichte para traçar os contornos de uma estética do performativo), onde é o próprio corpo da artista que condensa sujeito, objeto, matéria, discurso, símbolo e realidade. E o que interessa ao teatro são modos de teatralizar essa condensação e que outras coisas tornam-se perceptíveis a partir da experiência estética que o teatro pode promover.

Não quero dizer aqui que absolutamente qualquer peça teatral escrita ou dirigida por uma mulher e que a coloque como protagonista na cena é uma peça relevante para esse contexto. A análise crítica sobre o que é produzido deve ser mais aguçada ainda pois o risco é grande de se cair em estereótipos, maniqueísmos, binariedades, ritos-ao-sagrado-feminino-entediante ou criações excludentes e segregadoras que, no próprio trato superficial com o feminismo tende a reproduzir as hierarquias entre os gênero enquanto discursa sobre igualdade e preza pela exacerbação de uma classe política que só faz sentido ser destacada para ser eliminada (ler Monique Wittig). Também não quero dizer que a teatralidade contemporânea desta cena esta circunscrita no assunto, mas nos modos teatrais que se expandem e tornam-se visíveis quando esses corpos com esses assuntos criam.

Nesse mesmo sentido, não concordo com o entendimento de que temos um “teatro feminista” em voga e menos ainda uma “cena feminina”; e acho que já está nítido aqui que quando falo “mulheres” não as penso como equivalentes de “bucetas”. Estamos falando de artistas que também são mulheres como categoria política - categoria inventada para sustentar um sistema imposto. Nesse sentido, a discussão sobre “algo feminino” me parece absolutamente inútil e cafona; e caracterizar algum teatro como feminista não me parece auxiliar na articulação política deste último, mas sim reduzir o teatro a uma simples ilustração do ideal ou denúncia do real. E o teatro pode mais do que isso.  

Precisei fazer essa longa introdução para poder dissertar sobre o trabalho de Bassit porque venho cada vez menos desacreditando da possibilidade de se analisar criticamente uma obra teatral sem observá-la em perspectiva com outras obras e com o contexto. 

Em “Mãe ou eu também não gozei” a atriz ocupa o centro do espaço, na maior parte do tempo, com um microfone, olha para o público e fala para ele. Talvez essa seja a imagem mais repetida e mais comum quando se pensa no “teatro contemporâneo”. Mas, aqui, o centro é a única posição possível a ser ocupada porque a estratégia da cena é falar. Bassit escreve um livro quando descobre-se grávida e abandonada, embora em companhia de um ser-embrião-vindo; e destaca a escrita como urgência, como uma forma de lidar com o vazio, com a ausência, com a sua própria condição, como abismo recorrente. A mesma urgência que é tão destacável quando lemos Virgínia Woolf, Sylvia Plath, Anais Nin, Clarice Lispector. Não é incomum se identificar com essa necessidade absurda da palavra. Bassit tem consigo um fato, e um fato que é excluído dos círculos sociais, do teatro, do compartilhamento com o outro: a maternidade. Assim como a velhice. Será essa a outra fase da vanguarda das mulheres no teatro daqui quarenta anos? Assuntos non gratos de personas non gratas.

Bassit então fala, fala bastante. E mais impressionante ainda é que ela realmente fala o livro que escreveu. E nesse ponto temos uma contribuição muito importante a esse teatro que tentei falar acima. Bassit compreende que a palavra é mais significante do que significado, ela que pariu e viu de perto uma criança aprender a falar. As duas, mãe e filho aprendendo a falar. E a fala diz mais pelo seu esforço e pelo vínculo que se instaura do que pelo significado das palavras ditas. O discurso é material. Precisamos voltar a dar atenção devida à palavra no teatro. A palavra como matéria, como presença. Bassit evoca a sonoridade, a cacofonia, as onomatopeias, os gritos e sussurros, as pancadas da bateria tocada pelo percussionista que a acompanha, as palavras grafadas no telão ao fundo como paisagem. Ela consegue pensar na experiência de materializar a poesia, o grito e o respirar fundo. E, nessa obra, especificamente, a experiência de estar no limite (daí, pense que eu também vejo esse limite o tempo inteiro em cada uma das peças que citei acima - Leite atua uma cena com uma corda envolta na cintura e fala sobre o filho no limite de uma mureta, Bianchi desmaia na própria encenação, Menezes pede para gozar, Carvalho é ameaçada pela sua peça, Costa adentra incontáveis salas de cirurgia, Passô é uma alma adentrando uma pele, Machado está se embriagando). É mais sobre perceber o que está sendo dito do que entender o que está sendo dito; mas quando a teatralidade em torno do dizer é bem pensada, a compreensão alcança outros patamares. E em “Mãe ou eu também não gozei”, há, simultaneamente, a experiência da compreensão pela percepção. É explícito. Mulheres são, frequentemente, explícitas.

A peça de Bassit - gosto de dizer assim, peça, parece pedaço de alguma coisa, do teatro, da performance, do livro, de um manifesto, não sei…

A peça de Bassit se assemelha muito às performances da norte-americana Karen Finley que entre as décadas de 1970 e 1980 declamava seus próprios escritos explorando vocalidades singulares e que assustavam às expectativas em torno do comportamento de uma mulher e, ao mesmo tempo, a trazia como protagonista da experiência limite do desespero, da raiva e da loucura. Ou seja, Bassit e Finley ao centralizar a palavra e a fala em suas obras, mostram que a teatralização e a performatividade dessas coisas estão nas suas materialidades - o som, a imagem, a paisagem, as grafias. Então, na realidade, um teatro de palavras deve ser um teatro sonoro antes de tudo.

Se pensarmos sobre a política da obra, penso que nem o livro e nem a peça são respostas a nada e nem reparam nenhum dano. Não é da ordem da catarse e tampouco do expurgo, não livra a figura-mãe-puta de nenhuma impureza. É da ordem da profanação; põe o fato em nossas bocas e memórias. E lida com a maternidade transitando entre as sensações da radical experiência e do assunto de uma palestra-performance; ela nos apresenta algumas informações jurídicas sobre o modo como o estado compreendia-compreende as relações entre maternidade, paternidade e a criança. E já nos adianta, logo no prólogo, o final de tudo: que seu filho tem um pai (destacando que pai é diferente de progenitor) e que “o que é imprescindível para formar e constituir um sujeito é o amor dedicado a ele”. A peça sugere que é muito mais sobre o que silenciamos do que sobre o que não sabemos. Daí, não posso evitar de pensar nos homens ausentes na plateia, dos homens ausentes como leitores do livro. Homem como ausência. Quando poderemos assistir aos homens falarem de seus próprios sumiços? 

Penso que essa cena brasileira emergente não torna a figura da mulher sujeito de nada - porque qualquer matéria dentro da cena é objeto por excelência. Mas, traz outros contornos, expectativas e lacunas para essa figura. O que está em questão é o modo contemporâneo de lidar com a figura da mulher, olhando para suas escuridões, aos moldes agambenianos; mas, sem vacilar na identificação comum com os frases de efeito pseudofeministas que entoam nas redes sociais. Assim, essa cena não denuncia nem repara coisa alguma. Primeiro porque não há nada que o teatro “denuncie” hoje que já não saibamos por outros meios; e segundo porque a reparação do teatro só se dá como símbolo e isso não é amplo e nem suficiente. O que essa cena e o teatro podem fazer é reescrever o imaginário e a estética das discussões. Nos impele a falar sobre mais uma vez, nos estranha o olhar e os ouvidos, instaura outros hábitos, modifica nossos corpos - relacionais. Até que seja possível ver, ouvir e lidar com a puta-mãe.

 

Foto do Banner: André Cherri.

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