E a criança fez o verbo!

Por Heloísa Sousa
31/03/2023

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

“No princípio era o Verbo,

o Verbo estava com Deus,

e o Verbo era Deus.

O Verbo se fez carne”.

Trecho Bíblico.

 

Em março de 2023, o espaço cultural Galpão do Folias (SP) recebe a temporada de estreia do espetáculo “BLAIHAIT! E outras perguntas para inventar um idioma” do Coletivo Karenin, grupo de teatro independente e que atua na capital paulista desde 2017. A peça tem direção de Marcus Garcia e dramaturgia de Giu de Castro, e teve seu projeto contemplado com o Edital ProAc 2022 que permitiu a realização do processo criativo e apresentação da obra.

Há um primeiro ponto de partida evidenciado pelo Coletivo para a criação dessa obra, e esse ponto de partida é compartilhado com o público. Seja pela divulgação quando você ouve falar da peça e isso te leva ao teatro para assisti-la, seja pelo próprio prólogo da obra que fala sobre a questão.

 

Como se inventa um idioma?

 

Coloco a questão no presente, porque o que os artistas fazem é presentificá-la. Os idiomas já existem e poderíamos fazer uma pesquisa antropológica ou linguística para compreender como os idiomas foram inventados (provavelmente, essas pesquisas já existem aos montes, não sei ao certo, mas devem existir). Não precisamos, necessariamente, do teatro para responder essa pergunta e provavelmente, mesmo que tentássemos responder através dele, haveria lacunas significativas para a compreensão do surgimento desse “fenômeno”. Ainda assim, o Coletivo Karenin é um grupo de teatro, e confronta a questão acima com sua própria prática, reformulando a questão: como fazer uma peça de teatro a partir dessa pergunta de como se inventa um idioma?

Desse ponto em diante, as questões começam a se multiplicar, sejam elas questões do campo do teatro ou questões do campo linguístico/oral/antropológico, e ainda mais, questões que habitam a intersecção entre esses dois campos. 

 

E se inventássemos um idioma para criar uma peça teatral?

E se inventássemos um idioma durante a experiência teatral?

E se a peça mostrasse um idioma sendo inventado?

Mas afinal, para quê serve um idioma?

O que é necessário para se inventar um idioma?

O que aconteceria se as palavras ainda estivessem por existir?

 

É um exercício complexo e intenso de suposições. Mas, são essas suposições que parecem operar a criação da obra e a estruturação da experiência estética a ser compartilhada. Desde que li a dissertação de mestrado “Da pergunta à cena: perspectivas metodológicas para a prática teatral como pesquisa” (USP, 2022) de autoria do ator, dramaturgista e pesquisador Mateus Fávero; que a ideia de um teatro de pesquisa vem se reposicionando na minha cabeça. 

“A prática como pesquisa aborda, de forma prática, as perguntas. Nesse processo, inventam-se métodos e hipóteses. A metodologia conforma todos os passos necessários para tratar de responder a pergunta. [...] Portanto, as perguntas inventadas na pesquisa em artes são aquelas que orientam a própria prática artística. São problemas e desafios identificados e formados pelas necessidades da prática e dos pesquisadores práticos”. (FÁVERO, 2022, p. 58).

Trago a citação não para que esse texto sirva como determinação ou classificação da obra analisada enquanto um teatro de pesquisa ou não. Me interessa mais pensar a partir da questão, assim como o Coletivo Karenin e considerar a possibilidade de que a crítica teatral possa se desafiar a pensar um percurso retroativo ao assistir uma obra. Diante da experiência de recepção de um espetáculo, a depender do espetáculo, consigo visualizar as questões com as quais os artistas se depararam no processo criativo e perceber o modo como eles teatralizaram as questões e as possíveis respostas? Tentarei escrever esse texto crítico por esse viés, e percebo que talvez seja a primeira vez que vou escrever sobre uma obra tentando dialogar diretamente com o processo criativo dela, mesmo sem ter acompanhado absolutamente nenhum ensaio do grupo, apenas tentando pensar sobre o que a obra me revela do seu percurso. E faço isso não por uma vontade pessoal, mas porque essa obra, em si, me convida ao confronto com a própria questão. 

O segundo ponto de partida que devemos esclarecer é que a obra não é sobre tradução. Quando eu soube que haveria legenda para que os espectadores pudessem acompanhar a peça, logo me questionei se o grupo teria optado por apresentar uma história qualquer em um idioma X, e eu apenas iria acompanhar tudo pela legenda. Mas, não é isso. Primeiro porque, se fosse isso, não haveria nenhuma diferença entre apresentar uma obra em alemão, por exemplo. E assim, eu teria a mesma experiência que tenho ao assistir espetáculos internacionais em um festival de teatro. Segundo porque a tradução é uma outra questão. Implicaria diferentes perguntas e outras formas de teatralizar isso, o que geraria um espetáculo completamente diferente. 

O terceiro ponto de partida é que, na pergunta, indaga-se sobre a possibilidade de criação de uma peça teatral a partir de e não sobre. Faço esse destaque, tentando pressupor a pergunta do grupo, porque percebo que não é sobre temática, um seminário sobre os idiomas e suas origens. Pensar a partir de desenha um ponto de partida que mobiliza uma caminhada, uma pergunta de pesquisa pressupõe uma falta, uma ausência, uma lacuna, uma curiosidade sobre algo que ainda não está mas que parece necessário que esteja. Portanto, sugere que se caminhe para além da pergunta, para que encontremos (fora dela) algo que possa retornar a preenchê-la. 

Confrontar-se com a invenção do idioma indica elaborar uma experiência que apresenta um caminho entre dois pontos. Do não saber ao saber. A invenção só é visível no percurso, quando percebemos o que acontece na ausência do idioma, notamos a necessidade dele e o que se transforma depois que ele é inventado. Penso que uma das possibilidades que o grupo poderia ter escolhido operar é pela performatividade, e nesse caso, não penso a que a obra performativa se reduza a falar com o público, tocar nele ou oferecer souvenirs, ações que apenas deslocam a ilusão da quarta parede do teatro e que arranham a superfície da recepção da obra, mas que, por vezes, a mantém na lógica contemplativa. A escolha pela performatividade poderia ter se dado se a invenção do idioma fosse uma experiência integralmente compartilhada entre artistas e público, nós inventamos juntos a partir de nossas próprias regras e vontades, o final desse percurso seria imprevisível, independente dos artistas e dependente da comunidade instaurada a cada apresentação. Sem hierarquizar possibilidades, é perceptível que “Blaihait!” não é uma obra performativa, a opção adotada aqui é a outra: a de narrar/descrever a invenção de um idioma. O público, portanto, torna-se testemunha dessa encenação, o que não nos impede de, individualmente, espelhar em nosso corpo os desafios com os quais as artistas se deparam. Isso porque, enquanto seres sensoriais, somos afetados pelas sonoridades e findamos por compartilhar com os deslocamentos promovidos pelas atrizes em cena. 

Se a escolha se dá pelo campo narrativo, o Coletivo escolhe trazer à cena, com muita coerência, o mito.

Talvez, uma das coisas mais interessantes da obra e que afeta diretamente sua percepção, é que ela mexe com nosso interesse e inquietação pelas origens. Existimos no mundo, como seres humanos, há milhares de anos e as coisas que nos rodeiam, sejam elas visíveis ou invisíveis, também tem histórias curtas, longas e longuíssimas. Determinadas estruturas são tão antigas que não conseguimos mais reconhecer suas origens e, ainda mais, tomamos como naturais. Como se sempre tivesse sido assim, ou como se não tivesse outro modo de ser, ou como se o desenvolvimento das coisas fosse simples fatalidade imutável. Talvez, aí, resida uma possibilidade (política) fundamental da arte: estranhar aquilo que tomamos como natural, habitual ou automático. Victor Chklóvski escreve bem sobre isso em “Arte como Procedimento” (1917), onde reitera que “a automatização engole os objetos, as roupas, os móveis, a mulher e o medo da guerra” (p. 91), e que a arte poderia nos devolver a sensação sobre as coisas. Algo semelhante a ideia de profanação elucidada por Giorgio Agamben, que talvez tenha mais a ver com “tornar sensível” do que com “desobedecer”. 

Nos interessamos pelas origens porque elas são carregadas de mistérios e fazem ecoar aqueles antigos pensamentos fantasmas que nos perseguem “de onde viemos e para onde vamos”. Para além das possibilidades científicas que atestam, quando possível, certas origens, há também nossa capacidade de imaginação, narração e analogia que tenta materializar nossas vivências e necessidades através de mitos (incluindo aqui a religião) que servem à constantes reinterpretações e descobertas, que parecem carregar eternas lacunas que podem ser preenchidas continuamente ao longo dos tempos. Em termos de recepção, me parece semelhante ao fascínio gerado por algumas séries televisivas norte-americanas como “Lost” (2004) ou “The Walking Dead” (2010). A partir de alguma catástrofe (ou ruptura, explosão, estalo), os indivíduos se deparam com a ausência de coisas fundamentais, embora essa ausência não seja equivalente ao nada. Coisas existem no mundo para além de nós, o que nos mobiliza a criar é nossa necessidade de interação, organização, afeto e sobrevivência. O que criamos primeiro? O que é primordial? Em “Blaihait!”, algumas palavras ainda não existem, mas existe o som (voz) e existem as coisas do mundo. Além disso, existem pessoas com desejos - de interação e de memorização. Como se no mundo já existisse a madeira, e o ferro… mas existe também o desejo/necessidade de sentar e quando essas materialidades se cruzam, passa a existir a cadeira. Só que ao reapresentar essa narrativa da experiência, o que se torna evidente é o desejo/necessidade em si - porque é isso que nos interessa. Nesse sentido, talvez o inventar de Blaihait! seja mais importante do que o idioma. Apesar do idioma ser uma materialidade que também nos apresenta outras questões para além da sua invenção.

Destaco na obra, o fato de serem duas atrizes em cena. Apesar da dramaturgia escrita por Giu de Castro não determinar o gênero das duas personagens como fundamentais para a peça, o que a torna possível de ser atuada por dois atores. Mas, o mito, inventado pelo grupo e narrado no livro publicado por eles, coloca uma criança como sendo a primeira a falar um idioma, enquanto brinca com sua curiosidade e sua própria voz. Na narrativa bíblica cristã, Deus faz o verbo que se materializa nas palavras (logos). O homem domina as palavras e organiza o pensamento. São duas figuras masculinas. O logos é de domínio do homem. Mulheres, crianças e animais não têm acesso a isso; apenas sonorizam, balbuciam ou precisam lidar com a privação dos meios de registro das palavras (escrita) e, portanto, da história e das leis. O Coletivo Karenin experimenta centralizar essa invenção na figura da criança e teatralizar essa narrativa com duas mulheres. Essa escolha não modifica radicalmente a recepção da obra, mas desnaturaliza aspectos da narrativa e promove outras identificações. 

Foto de Paula Halker.

Na peça, as duas atrizes falam o idioma inventado, se comunicam, mas não sabem todas as palavras e se deparam com a angústia de querer dizer, nomear ou descrever algumas coisas, sendo que certas palavras não existem ainda. Se hoje, as palavras adquiriram um nível de rebuscamento, onde a significação consegue estar contida nela mesma (estou aqui, ignorando as outras materialidades da comunicação, apenas como exercício de visualização) ao ponto de ser possível se fazer entender com a pura emissão da voz, sem a gestualidade (audios de whatsapp); no princípio, talvez a gestualidade e marcação de signos por outros aspectos corporais fossem fundamentais para construir esse idioma, pois trata-se de um período de transição (como a criança que aponta algo enquanto tenta falar uma palavra nova para se fazer compreendida). Temos então um estilo de atuação marcado. As atrizes precisam transitar entre o desejo maduro de expressar a complexidade daquilo que sente e pensa, junto com uma ação vocal infantil, de quando estamos aprendendo a falar. Para alcançar a veracidade desse esforço, a dramaturgia indica que as palavras que faltam devem ser inventadas pelas atrizes durante a encenação. Apesar dessa estratégia colaborar significativamente com as duas artistas em cena, esse não é, necessariamente, um aspecto identificável pelo público. Percebemos como uma representação do esforço, e o fato de compreendê-lo como um esforço real não modifica a percepção, embora pareça fundamental para a operação das artistas. Nesse ponto, Giu de Castro e Sofia Maruci atuam com precisão e manejam o jogo da encenação sem que haja riscos (acreditamos que, haja o que houver, o idioma será inventado). 

É na situação vivida pelas duas atrizes-personagens que nos deparamos com todas as outras questões em torno das palavras. A necessidade de registrar para memorizar, a criação de gráficos para o registro, o conceito como uma explicação da coisa e a materialização deste em verbetes, a necessidade de nomear para identificar e reconhecer, o esforço da curiosidade e da vontade de estabelecer relação. Entretanto, essas questões não são apenas ilustradas pelas atrizes, ao observar o percurso que elas encenam, o espectador entra no jogo individualmente e mentalmente. Eu também me deparei com a necessidade de que elas registrassem para que eu lembrasse, eu também esquecia as palavras no meio mesmo que estivessem anotadas, eu também perdia os significados e tentava entender por contexto, eu também tive minha audição adaptada para tornar sensível e familiar o novo idioma, eu também me esforcei para compreendê-las e eu também nomeei coisas na hora em um esforço de tentar descobrir do que elas estavam falando. O mais interessante é que as lacunas se mantêm, como em todo processo de comunicação. Quando os verbetes aparecem projetados e as atrizes encontram uma palavra para definir aquele conceito dentro do idioma inventado, eu mesma também tento escolher uma palavra (em português) para encaixar naquela definição. Tenho certeza de que o público, em sua diversidade, encontra palavras diferentes. Na mesa do bar, depois da apresentação da peça, o assunto pairava entre “como você nomeou aquela ideia?”.

Foto de Paula Halker.

Nosso esforço em nos adaptarmos à sonoridade do novo idioma e tentarmos compreender sua lógica de invenção e organização, instaura uma relação comunitária, no sentido de vibrar algo em comum. É curioso que um esforço tão basilar quanto organizar um som para indicar uma palavra, mobilize um esforço por parte do público em entrar no jogo, mesmo que o jogo não dependa dele para se concretizar. Tanto que, quando a fala em português foi retomada na peça, meus ouvidos estranharam o som, como se a mente tivesse que desacelerar depois de todo esforço em me adaptar ao novo idioma. Esse choque, que é sentido fisicamente no corpo, torna-se parte significativa da experiência estética promovida. 

Mas, para que criar algo a partir dessa questão? O que a obra me apresenta a partir dessa experiência estética? Viver corporalmente uma experiência de origem só é possível através da arte, porque diz da possibilidade de tornar vibrátil no corpo, alguns desejos, impulsos, formas de organização e pensamentos talvez adormecidos em nós quando não há mais certas necessidades inventivas. Criar um idioma não é, na atualidade, uma demanda real. Mas, nos debruçar sobre essa forma inventiva, seja através do jogo ou da narrativa, faz ativar algumas de nossas capacidades intrínsecas para que possamos aplicá-las em outros contextos. Como se inventa algo? torna-se uma questão paralela que não se reduz ao alcance de um manual de instruções sobre algo, mas sim dos desejos, das utilidades e das consequências. 

Em certo momento, algo que parecia tão útil e fundamental, volta-se contra as próprias figuras. No mito inventado pelo Coletivo Karenin, a figura que anota as palavras (escrita) finda por esvaziar o mundo do devir das coisas, a grafia vacila enquanto forma de captura e determinação. Como posso eu, Heloísa, carregar o mesmo nome de quando eu tinha cinco anos de idade, sendo que eu e essa criança somos pessoas e corpos bem diferentes? As palavras são signos que remetem às coisas; as indica, mas não as reduzem. Possuem maleabilidade, inclusive. Mesmo que, por vezes, a gente trate as palavras como imutáveis e redutoras. As palavras e as coisas carregam ainda histórias. Uma cadeira, não é apenas uma cadeira por si só, é um percurso até ela. O que nomeamos Heloísa, talvez não seja meu corpo - tão diferente do corpo da menina de cinco anos - mas sim, a minha trajetória, a linha que conduz a menina de cinco anos até a mulher de agora sentada no sofá enquanto escreve esse texto diante de um notebook aos trinta e um anos de idade. 

“Blaihait!” é uma obra que narra o primordial, que traz aos corpos a experiência da infância com a consciência da fase adulta. É uma peça que se propõe esquecer os idiomas já inventados, esquecer a forma apurada de comunicação que já temos, para podermos nos intrigar com o percurso de uma invenção.

 

Fotos de Divulgação: Paula Halker. 

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