[Para vibrar memórias...]

Por Heloísa Sousa
02/08/2022

O aparecimento das vanguardas artísticas europeias e todas as transformações estéticas e filosóficas surgidas no início do século XX influenciaram diretamente o teatro e a dança que se seguiram no Ocidente depois desse marco temporal. O surgimento da arte da performance, enquanto linguagem artística, também atravessa essas expressões e apresenta o que passamos a nomear como cena contemporânea ou cena pós-dramática, por alguns. Algumas características tornam-se marcantes como a aproximação radical entre arte e vida, afastamento das formas excessivamente representativas e miméticas, valorização da fragmentação na cena e outros ritmos, e assim por diante. Aspectos como narração e personagem dão espaço para uma cena mais imagética e sensorial; assim como, no Brasil, expressões da cultura popular parecem se tornar cada vez mais distantes de uma cena contemporânea e performativa que centraliza outras questões em cena. Embora haja muita performatividade, visualidade e interação naquilo que nomeamos como tradição.

O excesso de virtualidade e formas de interação mediada por telas também colabora para um apagamento das tradições populares que costumam se manifestar no aqui-agora, na presença, na brincadeira, na rua e na oralidade. É notável o esforço de muitos artistas, pesquisadores e pesquisadoras em continuar se debruçando sobre os brincantes e suas práticas na tentativa de que essa cena não desapareça e apague uma memória importante da nossa base cultural.

A Cia. Experimentus (SC) escolhe, então, fazer isso através do próprio teatro. No espetáculo “Vem ver nosso boi brincar”, a atriz e musicista Natália Pereira faz uma homenagem ao seu avô, o cantador Arnoldo Cueca, um dos grandes nomes da cultura popular brasileira e um dos responsáveis por sustentar a tradição e brincadeira do Boi de Mamão em Santa Catarina. A encenação opta por um formato simples de contação de histórias. Em uma relação frontal, Natália, em parceria com o ator e musicista Vinícius Ferreira, apresenta a história do seu avô de modo tão singelo que parece uma conversa íntima com o público sobre uma parte importante da sua vida. Eles apresentam algumas músicas, as personagens da brincadeira, a história que se brinca no Boi de Mamão, intercalado com a reprodução da voz do próprio Arnoldo contando algumas memórias e impressões. A narração tem uma abordagem implicada, não é apenas uma história narrada em terceira pessoa; é uma memória que está sendo compartilhada com o público. E essa memória compõe um imaginário de um povo, mas também compõe o imaginário de uma menina que cresceu vendo tudo isso de perto. É essa ponte entre o coletivo e o íntimo da memória que constrói a afetividade da obra.

Como mulher nordestina me impressiona as semelhanças estéticas e narrativas entre as brincadeiras com os bois. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, aquela obra me mostrava figuras brincadas na Região Sul e que me faziam acessar as memórias precárias que tenho sobre as tradições populares com os bois da Região Nordeste. As vestimentas, os bonecos de barro, as histórias, as sonoridades, as cores e estampas. Ao mesmo tempo, tudo marcado por um outro sotaque e uma outra infância. Penso, como são tão distantes e tão parecidos? É que as migrações e trocas também caracterizam esse país e o povo da minha região sempre foi muito andarilho. E de repente, eu nordestina me sentia tão próxima daquela mulher sulista.

Falo de minha própria memória como precária porque, nascida na capital potiguar, nunca havia tido contato com manifestações da cultura popular do meu estado antes de ingressar na universidade; qualquer menção anterior a esse período era folclórica, distanciada e estigmatizada. Pensei em como eu gostaria de ter assistido um espetáculo como aquele na minha infância. E em como isso teria sido importante para minha formação como sujeito no mundo em relação com os aspectos culturais que me rodeiam e que atravessam diretamente meu contexto, ao invés de apenas tomar como referência, obras, fazeres e artistas importados.

Nessa obra, a Cia. Experimentus traz a contação de histórias e apresentação de personagens como escolhas centrais. Interessante começa a ver essa teatralidade tornar-se presente novamente após sucessivas explorações de dramaturgias sensoriais, onde as histórias e seus desenvolvimentos dramáticos não eram os principais, além de uma afirmação das narrativas pessoais ou das composições imagéticas sem o apoio do texto verbal. Enquanto espectadora de muitas ditas cenas contemporâneas, assistir essa outra abordagem que parecia ter se perdido em algum tempo passado, sinto uma oxigenação da cena quando esses aspectos retornam, quase anacronicamente, mas se apresentam com outra energia após repetitivos formatos documentais ou com uma “performatividade” engessada.

É que contar histórias é também um dos princípios da fabulação e da elaboração de memórias, e, enquanto comunidade, precisamos de ambas para sublinhar um passado e projetar algum futuro. E essa escolha parece visível nas cenas apresentadas nesta edição do Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha. Espetáculos da mostra local escolhem narrar histórias que foram quase apagadas em nosso país como faz a Cia. Mútua (SC) com “Contestados”, ou ainda a possibilidade de criar ficções ou narrações a partir de depoimentos reais onde a história dos artistas e de outras figuras imaginadas (ou não) parecem se cruzar como em “Rinha” do Grupo Risco de Teatro (SC) e “Homens Pink” da Cia. La Vaca (SC). A mostra nacional também faz reverbera isso, assistimos personagens e ficções em “Tragédia” do Quatroloscinco Teatro do Comum (MG) de um modo que fazia tempo que eu não via em festivais de teatro, ou ainda na instalação cênica “Biblioteca de Dança” da Dimenti Produções (BA) que abre mão de praticamente qualquer artifício cênico material para construir presença com narrações e memórias.

Em “Vem ver nosso boi brincar”, a simplicidade da encenação que se apoia em soluções mais convencionais de apresentação da história não deixa de emocionar a plateia. Engraçado como colocar essa frase em uma crítica de teatro também me parece anacrônico e esquisito. Exploramos tão radicalmente outras formas estéticas que parece que palavras como “personagem, “história” e “emoção” não seriam mais capazes de nos gerar uma experiência. Mas, a história do cantador Arnoldo Cueca emociona; e o faz pelo reconhecimento das imagens que se apresentam, pelo esforço daquele homem em manter as brincadeiras, pelo desejo daquela menina em tornar o avô presente, pela relação humana com a ludicidade, pelo percurso e pelas pessoas envolvidas.

É quando o teatro gera comunhão.

 

Para acompanhar as críticas dos demais espetáculos do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, clique aqui.

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