A memória viva

Por Diogo Spinelli
31/07/2022


[para ler ouvindo a trilha sonora do espetáculo, disponível aqui]

Vem ver o nosso boi brincar: uma homenagem ao cantador Arnoldo Cueca, da Cia. Experimentus Teatrais, de Itajaí (SC), como já é possível antever por seu subtítulo, é um tributo ao legado de Arnoldo José Pereira, popularmente conhecido por Arnoldo Cueca. Brincante de Boi de Mamão por mais de quatro décadas, Cueca foi fundador e mestre do Grupo Folclórico Boi de Mamão e Dança Portuguesa de Itajaí.

Essa reverência se torna ainda mais relevante quando sabemos que a atriz Natália Pereira, que divide a cena com Vinícius Ferreira, é neta de Arnoldo Cueca. Assim, a obra apresenta a história do mestre não sob um ponto de vista estritamente documental, mas pelo olhar afetuoso e implicado de sua neta que aprendeu a brincar observando e participando das brincadeiras do avô. Ao trazer à cena a história de Arnoldo Cueca e de seu Boi de Mamão, Vem ver nosso boi brincar vincula-se assim a vários dos trabalhos que compuseram a grade do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha que possuem a memória como procedimento de criação, disparador, ou até mesmo, temática, sendo esse um dos eixos que perpassou a programação de forma transversal.  

No espetáculo, entremeado por cantigas do cancioneiro popular tocadas e cantadas ao vivo pela dupla de atores, somos levados a conhecer um pouco da história de vida e de como surgiu a ideia de Mestre Cueca em retomar a tradição popular do boi. Além disso, Natália reperforma o Boi de Mamão do avô, ao trazer à cena – ou como diríamos na linguagem da cultura popular, ao botar – cada uma das figuras que compõem/compunham essa brincadeira.

Transformadas agora em pequenas figuras de barro, são apresentadas, além do próprio Boi, as figuras do Toureiro, do Cavalo Meirinho, da Tirolesa (ou Maricota) e também da Bernunça.  Mesmo apresentando essas figuras em tamanho de bolso, o trabalho consegue instaurar junto à plateia – sobretudo, a mirim – a mesma sensação de medo, assombro e encantamento instaurada pela brincadeira tradicional do Boi de Mamão. O reconhecimento da Bernunça por parte de uma das crianças, assim que ela foi apresentada, também parece demonstrar o quanto o universo das tradições populares  e do folclore continua presente no imaginário infantil da região, sendo passado de geração a geração. Essa figura, uma espécie de papão próxima do que seria a figura do Jaraguá nos Bois de Reis potiguares – com a diferença de que a Bernunça come de verdade uma criança cada vez que entra na roda – é a responsável, aliás, por um dos momentos mais divertidos do espetáculo.    

Se o trabalho causa diversão, em outros momentos evoca uma atmosfera nostálgica, movendo-se entre e singeleza a poesia, como nos quais nos são apresentadas outras manifestações populares da região, como a dança do Pau de Fitas (também convertida em miniatura) e o Terno de Reis. Porém, são os causos do próprio Mestre Cueca, presentificado no trabalho através de áudios de gravações de conversas, que fazem com a obra fale ainda mais diretamente aos nossos afetos e às nossas saudades.   

É de grande beleza perceber como em Vem ver o nosso boi brincar Natália faz com que o Boi de Mamão de seu avô siga vivo e brincante. Igualmente emocionante é ouvir no pé do ouvido algumas pessoas mais velhas da plateia acompanharem baixinho algumas das canções que compõem o espetáculo, e identificar que a obra realmente fala para todos os públicos: apresentando a tradição para os mais jovens, e evocando as memórias dos mais antigos.  

Termino esse texto com uma passagem de Câmara Cascudo – vinculando o Rio Grande do Norte à Santa Catarina, nessa despedida da nossa cobertura desta edição do Festival – que é citada na dramaturgia do espetáculo. Neste trecho, Cascudo diz que o cantador é o “[...] registro, a memória viva, [...] a presença do Passado, o vestígio das emoções anteriores, a História sonora e humilde dos que não têm história” (CASCUDO, 2005, p.128). Em Vem ver o nosso boi brincar, a Cia. Experimentus presta uma homenagem não apenas a Arnoldo Cueca, mas à história de todos aqueles que vieram antes de nós e que seguem vivos brincando em nossos corpos, em nossas vozes e em nossos corações.

[Caso não tenha ouvido a playlist, recomendo fortemente que você ao menos escute agora a essa canção].

 

Referência Bibliográfica:

CASCUDO, Câmara. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.

 

Para acompanhar as críticas dos demais espetáculos do 7º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, clique aqui.

 

Foto do banner: Zé Paiva.
 

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