Meus pais, dois

Por Ronildo Nóbrega
15/09/2021

Dois pais é um espetáculo sobre flores, homofobia e paternidade. Com direção de Manu Hashimoto e atuação doce de Tauã Delmiro, a obra narra a gênese e as questões de uma paternidade que opera, desde a sua fisiologia, fora das dinâmicas da heterossexualidade (sofrendo, inclusive, as consequências sociais por acontecer fora dessa lógica normativa). Criado pelo Coletivo Macacos Alados, a peça é também um símbolo de como a acessibilidade no teatro pode se transformar numa ferramenta poética de combate ao preconceito de gênero.

O espetáculo-solo se constrói numa simplicidade estonteante. São poucos os elementos concretos que dividem espaço com a grande imaginação de ator-criança, responsável por narrar a sua história ao mesmo em que incorpora as inúmeras facetas de seus pais, Lucas e Márcio. Enquanto arrasta algumas plantas pelo palco, o garoto expõe os fatos que compõem poeticamente a sua adoção. Nesse sentido, apesar de se concatenarem cronologicamente, os elementos da história nos são apresentados ao longo do espetáculo de modo não linear. 

Dramaturgicamente a obra se apresenta como um enquadramento panorâmico de um belo jardim. Esse panorama, que não é dado de imediato, se amplia de acordo com o passeio pelos caminhos e nuances da existência florida do garoto. Um exemplo disso é quando somos apresentados a face-ipê de Márcio, árvore que é associada, na peça, ao fato da personagem possuir uma drag queen. Nos deliciamos ao saber do outro casamento de Márcio; o que ele realizou com o seu lado feminino e que sai sempre nas sextas-feiras depois que chega do trabalho.

Sendo assim, o que Hashimoto compõe é uma verdadeira e delicada jardinagem poética. Em relação à temporalidade da dramaturgia, ela se assemelha àquela da adoção. Não me refiro ao ato de adorar enquanto efeito jurídico, mas ético e, sobretudo, poético. Ser adotado é, para o personagem principal da peça, adotar (também). Gesto duplo. Duplo movimento. Múltiplas implicações. E tudo é disparado pelo amor de ambos, o casal e o garoto, pelas plantas. Há algo mais natural (me refiro aqui ao conceito de natureza que serve de base proibicionista aos fundamentalistas) do que um bom encontro? 

É curioso que o personagem repita ao longo da obra a ideia de que sua história se une e passa a ser a história do casal Lucas e Márcio. O que há aqui é uma referência indireta (e uma oposição) a ideia que liga fertilização com ato gerador da paternidade (como se uma coisa implicasse outra). Sobre isso, é preciso dizer que o mundo no qual existimos, mergulhado em uma matriz heterossexual perversamente excludente, nos ensina constantemente que a paternidade é uma mera equação biológica de receita simples; penetre um espermatozóide em um óvulo e tenha o seu atestado de paternidade garantido. 

Os órfãos sabem, como ninguém, que esta tese universalmente aceita e referendada não passa de uma ficção política orquestrada pelo sistema heterossexual que paralisa outras formas, menos factuais e mais intensivas, de pensar e agir na paternidade. No caso do garoto, a sua relação com Lucas e Márcio e, portanto, a paternidade, não é fecundada pela ordem biológica, mas intensiva. Caminho inverso. O olhar-encontro (do menino para o livro e do casal para o menino e do menino para o casal...) é o ponto de partida. 

Assistir Dois Pais, do Coletivo Macacos Alados, é como explorar o nascimento, o auge e a força de um jardim perante às forças externas que o querem silenciado e derrotado. Metáfora potente para ser difundida em um país onde a homofobia é uma força concreta (apesar dos desejos transbordantes de existir).

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