Daquilo que Resta

Por Ronildo Nóbrega
14/09/2021

O Teatro do Concreto é um grupo brasileiro que, desde 2003, tem transformado os múltiplos territórios das cidades em um dos eixos de sua produção material e poética. De lá pra cá foram muitos espetáculos que, direta ou indiretamente, ocupam a rua, perpassando e problematizando questões associadas à urbanidade. Festa de Inauguração, nona montagem do grupo, dirigida por Francis Wilker e com dramaturgia de João Turchi, é um dessas obras que, ao se debruçar sobre os cacos e os escombros, se inscreve como uma poética do resto.

Segundo o dicionário Oxford Languages, a palavra resto significa; a) o que sobra, o que fica de um todo de que se retirou uma ou várias partes, b) aquilo que resta, que permanece; remanescente. Existência mínima. Traços de algo que outrora existiu enquanto completude. O termo resto é bastante complexo e guarda em si um movimento de forças contrárias; se por um lado ele é sinônimo daquilo de que não podemos contemplar em sua inteireza, por outro ele é o resquício daquilo que não conseguiu ser completamente apagado e que, portanto, reivindica a sua existência.

Os artistas são, geralmente, bastante eficientes ao lidar com os restos. Isso porque eles contemplam as sobras ao mesmo tempo em que as reinscrevem no tempo. Este é o caso de Festa de Inauguração, espetáculo que nasce da necessidade dos artistas brasilienses de descobrir o que estaria por trás de mensagens deixadas por trabalhadores que construíram o Congresso Nacional nos anos de 1950. Descobertas por acaso durante uma reforma no salão, as frases se apresentam carregadas de esperança de um futuro melhor e democrático para o país.

O espetáculo que tematiza essas mensagens e a ruína chega à décima quarta edição do Festival Velha Joana através de uma desmontagem (prática em que os artistas elaboram as nuances do processo de criação). Se não há dúvida sobre a potência poético-arqueológica do Teatro do Concreto ao lidar com os materiais encontrados em suas pesquisa, o que conseguimos perceber aqui, além de pequenas cenas que compõem o espetáculo, são os depoimentos das artistas que conseguem revelar algo para além da cena que constroem e apresentam ao público.

Nesse sentido, o que assistimos é uma sucessão de encontros; dos artistas com a cidade e com as frases sucumbidas dos trabalhadores, dos artistas consigo mesmos e com a sua obra etc. Trata-se de um mar de atravessamentos que, se por um lado não deixa de transbordar ao longo do espetáculo, reaparece aqui em primeiro plano sob a força poética da desmontagem que, diga-se de passagem, não deixa de reforçar como a história se inscreve como um território de disputas.

É bastante claro, portanto, como os artistas de teatro, atravessados por esses fatos e mergulhados em uma ação política, são capazes de desenterrar os restos não para materializar a totalidade de um acontecimento (neste caso a própria criação do espetáculo), mas para gerar outras camadas de sentido para uma operação que se debruça sobre o próprio ato de esquecer/destruir. Sendo assim, a desmontagem que aparece para nós sobretudo a partir das atrizes Gleide Firmino e Micheli Santini se inscreve na mostra mato-grossense de teatro como um depoimento sincero sobre o ato de criar/construir teatro.

É através de passagens carregadas de emoção, de gestos e relações pela e com a cidade de Brasília que conseguimos perceber a poesia por trás da criação do espetáculo Festa de Inauguração. Em um dos momentos mais reveladores da desmontagem, Firmino apresenta a discrepância das falas que dá origem ao espetáculo. Enquanto as falas e as frases dos trabalhadores seguiram apagadas e invisibilizadas por anos “todos os outros textos eram ditos em voz alta no salão verde do Congresso Nacional”, diz a atriz.

E todos nós sabemos (quer dizer, alguns tem mais consciência que outros) quais são os textos que são ditos/microfonados e reverberados na Câmara dos Deputados. Mas nós sabemos também como o teatro e a desmontagem consistem em ferramentas poético-políticas potentes para lidar com os restos, isto é, para dar um novo gás ao jogo entre visível e invisível, àquele que detém o direito de falar e aquele a qual esse direito fora negado e ao qual resta apenas sonhar.

Clique aqui para enviar seu comentário